A empresa, o mercado e os contratos na visão de Ronald Coase

Ronald Coase (Londres, 1910/Chicago-2013) teve algumas venturas dignas de nota: viveu por 102 anos e, portanto, testemunhou os mais importantes acontecimentos históricos; residiu em dois continentes (mais especificamente, na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos da América); foi laureado com o Prêmio Nobel em 1991; e conviveu com os maiores expoentes da economia do século 20 e da primeira década do século 21.

O transcurso desse entrecho autêntico, marcado por grandes conflitos bélicos, queda e ascensão de potências e crises político-econômicas, fê-lo, obviamente, para além do reconhecido e premiado economista, um assumido observador das “escolhas humanas” e, por conseguinte, do Direito.

Uma vez positivos os custos de transação das relações econômicas [1], a presença da ciência jurídica torna-se tanto inevitável quanto necessária, afirma Coase. Ao contrário do que muitos economistas e juristas podem pensar, o comércio não recai precipuamente sobre bens considerados em si mesmos, mas sim sobre direitos determinados e geridos pelo direito [2], razão pela qual a economia é sobremaneira impactada por essa relação estabelecida pela lei.

No processo de conversão de insumos em produtos, a opção pela estrutura vertical (centralizadora da cadeia de produção) conhecida como “empresa” seria a alternativa para reduzir os custos de transação, proporcionando uma operação economicamente viável, inclusive diante das muitas imposições legais à atuação no mercado. A empresa seria, pois, uma estrutura opcional mais vantajosa do que a atuação isolada de indivíduos ou do que a transação direta no mercado.

Evidentemente, o formato verticalizado da empresa não é garantia de adimplemento das obrigações pelos agentes, mas é a estrutura mais racional para amenizar o peso das obrigações contraídas por aqueles que atuam na produção de bens e na prestação de serviços, bem como para maximizar os lucros. Em síntese, os custos de transação menores são a antessala para lucros maiores, estes, sim, o verdadeiro estímulo para a presença e o desenvolvimento da atividade empresarial no mercado.

Ademais, as empresas não são autossuficientes, dependendo umas das outras para o desenvolvimento da atividade empresarial, como explica Rachel Sztajn:

“[I]nstala-se o modelo de interdependência que tanto tem razões econômicas, de alocação de recursos, quanto fiscais, de economia tributária, ou logísticas, de distribuição sem investimentos, o que faz com que se conformem negócios de atuação conjunta. No plano jurídico, o fenômeno aparece em contratos de longo prazo nos quais se percebe maior cuidado nas negociações, uma vez que a redação do clausulado deve refletir relações duradouras entre pessoas, relações que se pretende estáveis.” [3]

Contemporaneamente, o formato horizontal (ou menos verticalizado) de empresa também se torna cada vez mais frequente, em especial com a modernização da gestão dos negócios, a tecnologia da informação e o controle da cadeia de suprimentos externa, os quais permitem custos de transação menores e mecanismos de preços mais brandos. Empresas horizontalizadas podem operar, por exemplo, na terceirização e na descentralização de serviços ou na aquisição de insumos de empresas parceiras, de modo a se concentrarem apenas em seu produto ou serviço final.

Por sua vez, o mercado não surge acidental ou automaticamente, mas decorre da vontade humana institucionalizada de suprir as necessidades das relações privadas. O mercado é o ambiente físico ou artificial onde a empresa opera e seus agentes atuam, onde a empresa celebra contratos com outras empresas e com consumidores. O mercado é o locus, genérico ou especializado, onde interagem a oferta e a demanda, onde se negociam direitos de propriedade e ocorre a circulação da unidade monetária.

O mercado é também um sistema evolutivo, com uma face convencional mais conhecida, mas com outra face ainda pouco estudada — e lembrada por Coase , como as bolsas de valores e mercadorias, que, a despeito da regulação governamental, possuem uma autorregulação, além de um particular mecanismo de redução de custos de transação e um elevado volume de negócios [4].

Os contratos de longo prazo podem deparar-se, no decorrer de sua vigência, com a alteração das circunstâncias (a imprevisão) e, portanto, estão sujeitos a maiores custos de transação. Nessa chave, quando a empresa é contratante ou contratada, os atores envolvidos (empresários e gestores) têm alguma segurança diante do eventual aumento dos custos de transação, os quais poderiam ser implacáveis se estes últimos (empresários e gestores) celebrassem os contratos em nome próprio, ou seja, se contratassem fora da estrutura de atividade econômica denominada “empresa”.

Embora com ele coexista, a empresa oferece certa proteção contra as vicissitudes e riscos do mercado. A empresa, conduzida por uma sociedade empresária, é, por assim dizer, uma autêntica estrutura de sobrevivência ao mercado, facilitando a celebração de contratos (mesmo os de longa duração) por seus agentes e fazendo dessa contratação o exercício de sua autodeterminação.

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II — Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFAM).

 


[1] Sobre custos de transação, ver: COASE, Ronald H. A firma, o mercado e o Direito. Tradução: Heloísa Gonçalves Barbosa; revisão da tradução: Francisco Niclós Negrão; revisão final: Otavio Luiz Rodrigues Jr.; estudo introdutório: Antonio Carlos Ferreira e Patrícia Cândido Alves Ferreira. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária/GEN, Coleção Paulo Bonavides, 2022, p. 95-152; e FERREIRA, Patrícia Cândido Alves. Teorema de Coase, custos de transação e negociação entre as partes. Disponível aqui. Acesso em: 02/07/2023.

[2] COASE, Ronald H. Essays on economics and economists. Chicago/London: The University of Chicago, 1994, p. 20-22.

[3] SZTAJN, Rachel. Teoria jurídica da empresa: atividade empresária e mercados. São Paulo: Atlas, 2004, p. 14.

[4] COASE, Ronald H. A firma, o mercado e o Direito…, op. cit., p. 9-10.

Patrícia Cândido Alves Ferreira é pós-doutoranda em Direito Civil e doutora e mestra pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP).

Consultor Júridico

Facebook
Twitter
LinkedIn
plugins premium WordPress

Entraremos em Contato

Deixe seu seu assunto para explicar melhor