Ana Luiza Liz: IA, Poder Judiciário e os executivos fiscais

A realidade contemporânea indica a existência de significativos níveis de congestionamento processual no âmbito do Poder Judiciário brasileiro. Esta conjuntura, por sua vez, reflete na morosidade do andamento dos processos e, por consequência, na adequada e efetiva prestação jurisdicional.

O Conselho Nacional de Justiça e os tribunais em todo país não desconhecem a situação, motivo pelo qual estão continuamente em busca de soluções e alternativas para aperfeiçoar a prestação da justiça e minimizar os prejuízos. Esta circunstância, de igual modo, desperta a atenção do pensamento acadêmico e doutrinário, que reforçam a necessidade de ampliação de discussões jurídico-científicas aptas encontrar alternativas que busquem soluções aos problemas.

Em paralelo a isso, o avanço tecnológico é realidade presente, de modo que a era digital protagoniza uma constante reestruturação das relações pessoais, sociais, econômicas, políticas e culturais, as quais, por sua vez, necessariamente impactam o Direito. Quer dizer, diante do fenômeno tecnológico, a ciência jurídica, inclusive por decorrência do seu elemento social, deve acompanhar as transformações da sociedade.

A inteligência artificial, inserida neste contexto, está cada vez mais presente na vida das pessoas, ainda que de forma imperceptível para muitos, que ainda pensam tratar-se de “coisa do futuro”. Significa dizer, milhares de pessoas que se utilizam de ferramentas como identificação facial em seus celulares, ou aplicativos de rotas com previsão de chegada, estão rotineiramente se utilizando de inteligência artificial, ainda que não façam a devida correlação entre o nome e a funcionalidade.

Unificando as temáticas, chega-se na relevância do uso de mecanismos tecnológicos, e, nomeadamente, de inteligência artificial, no âmbito do Poder Judiciário. De forma mais específica, alcança-se a necessidade de estudo sobre a utilização de inteligência artificial para o deslinde dos processos de execução fiscal, especialmente porque visam o adimplemento de obrigações que não foram devidamente cumpridas na esfera administrativa, repetindo tentativas frustradas e buscando a satisfação de créditos com menor probabilidade de recuperação.

No Brasil já há diversas ferramentas de inteligência artificial implementadas nos órgãos públicos e, de forma específica, no Poder Judiciário, o que ocorre desde meados de 2017, para auxiliar em tarefas específicas e otimizar operações. Esta realidade confirma a importância da modernização do Judiciário, que deve superar o conceito primário de que eficiência e efetividade estão exclusivamente atreladas à criação de cargos e espaços físicos, passando a racionalizar os trabalhos com alocação de servidores nas áreas mais carentes e capacitação de pessoal, para atingir máxima eficiência operacional e automatização do processo, quando a tecnologia atua como ferramenta indispensável [1].

O Supremo Tribunal Federal já conta com três ferramentas de inteligência artificial: o Victor (nome em homenagem ao ministro Victor Nunes Leal, principal responsável pela sistematização da jurisprudência do STF em súmula), que foi implementado no ano de 2018, com o objetivo de aumentar a eficiência e a velocidade de avaliação judicial dos processos que chegam ao tribunal, a partir da análise de temas de repercussão geral na triagem dos recursos; o Rafa 2030 (que significa Redes Artificiais Focadas na Agenda 2030), implementado em 2022, com objetivo de classificar as ações de acordo com os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas; e a VitórIA, implementada em no corrente ano de 2023, que realiza o agrupamento dos processos por similaridade de temas, mas que tem capacidade para atuar em outras etapas da tramitação processual.

A crescente integração da inteligência artificial está em aprimorar o acesso à justiça, acelerar a prestação jurisdicional, dar maior eficiência ao cumprimento das ações e desafogar o sistema processual, privilegiando a desburocratização e a celeridade, até porque a morosidade processual é tida como mais marcante elemento de ineficiência do Judiciário [2]. Assim, pelo eixo do princípio da eficiência, a tecnologia desempenha papel determinante nos avanços da gestão pública [3].

Nesse contexto, a temática do uso de inteligência artificial nos processos judiciais de execução fiscal é de extrema relevância e atualidade, mormente porque no relatório Justiça em Números de 2022, organizado pelo CNJ referente ao ano-base 2021 [4], foi identificado que de todos os processos que tramitam no Poder Judiciário brasileiro, 53,3% referem-se à fase de execução. Quer dizer, mais da metade de todos os processos que tramitam, são processos executivos, o que inclui execuções judiciais criminais, não criminais, execuções de títulos extrajudiciais não fiscais, e execuções fiscais.

Ainda outro ponto importante de consideração diz com o fato de que são ajuizados quase duas vezes mais processos de conhecimento, em comparação com os de execução, mas no acervo, a quantidade de processos executivos é 38,4% maior. Ademais, tem-se que de todos os processos em fase de execução, 65% correspondem aos executivos fiscais, o que confirma que são os principais responsáveis pela elevada taxa de congestionamento do Poder Judiciário, representando 35% do total de processos pendentes e um congestionamento de 90%.

Por estes dados, resta demonstrada a justificação para o uso de mecanismos de inteligência artificial, especialmente no âmbito dos executivos fiscais, a fim de aperfeiçoar e acelerar, dentro do possível e dos limites legais e constitucionais, a prestação jurisdicional.

Em termos práticos, emblemática é a experiência do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, que desenvolveu ferramenta de inteligência artificial a ser aplicada na 12ª Vara da Fazenda Pública da Cidade, para os executivos fiscais municipais, escolhidos pelo alto impacto e por representarem casos simples e repetitivos. O sistema tinha por propósito, primeiro, analisar processos com citação positiva, mas sem pagamento ou indicação de bens à penhora, quando a IA deveria buscar no banco de dados do município o valor atualizado da dívida e identificar a natureza do tributo, para então tentar a penhora no sistema BacenJud, aguardar o prazo e ler o resultado: em sendo penhorada a totalidade da dívida, deveria proceder à transferência do valor para a conta judicial e desbloquear eventual excedente; em sendo negativa ou parcial a penhora de valores, deveria seguir na tentativa de constrição de veículos automotores via RenaJud e/ou consulta de outros bens via InfoJud, informando, na sequência, a existência, ou não, de bens passíveis de penhora. Em cada etapa, ressalta-se, os servidores e magistrados realizaram uma validação, a fim de cumprir a confirmação humana da atividade realizada pela máquina, inclusive para verificar a acurácia e a utilidade do sistema [5].

Os resultados do teste impressionam. Em três dias, foram analisados 6.619 processos, com média de 25 segundos para cada um, e com precisão de 99,5%, o que significa que dos mais de seis mil, apenas três incidiram em incongruências. A realidade demonstra que, se a mesma atividade fosse desenvolvida por um servidor, teria demorado dois anos e cinco meses — com dedicação exclusiva, o que, como é sabido, não é a realidade, pois cada servidor desenvolve diversas atividades — com média de 35 minutos para cada processo, e com cerca de 15% de equívocos. Quer dizer, a ferramenta foi 1400% mais rápida, e com uma acurácia muito superior.

Outro ponto que alarma diz com a economia de R$ 11.597.923,42, considerados o tempo e o custo médio de cada processo, bem assim com a arrecadação de R$ 2,1 milhões de custas e taxa judiciária para o TJ-RJ, e de R$ 32 milhões para os cofres do município do Rio de Janeiro. O então presidente do TJ-RJ, inclusive, destacou que o uso da tecnologia pelo Direito representa, na atualidade, o instrumento mais eficaz de agilização na distribuição da Justiça, sendo que, nos executivos fiscais, atua como uma verdadeira revolução na gestão pública, seja pelo adequado funcionamento do processo de cobrança, seja pela criação de uma cultura fiscal [6].

Os resultados são fantásticos e o sucesso é indiscutível, porém, é preciso ter cautela. E isso especialmente no que diz com o possível poder decisório da inteligência artificial. O entusiasmo com celeridade, avanços e conquistas não podem tirar a atenção dos questionamentos sobre a constitucionalidade das ações, as quais devem respeitar a dignidade da pessoa humana, o devido processo legal, o contraditório, a ampla defesa, a paridade de armas, o juiz natural, dentre outros preceitos.

É por isso que em muitos casos instaura-se uma espécie de tensão dialética [7] entre o aprimoramento do acesso à justiça e da prestação jurisdicional, e os direitos do contribuinte. Por isso, questiona-se: no exemplo prático da ferramenta desenvolvida e utilizada nos processos executivos fiscais municipais do Rio de Janeiro, a inteligência artificial decide ou indica caminhos?

Como visto, o sistema é voltado para procedimentos de investigação e busca de bens e de valores dos executados. Preliminarmente, é possível defender a ausência de cognição em torno dos elementos da CDA e dos atos que tentam concretizar a cobrança. Em contrapartida, mesmo não sendo decisão em sentido estrito, é inegável que, ao menos até certo ponto, carregam conteúdo material com carga decisória, especialmente porque interferem na esfera patrimonial do executado.

De mais a mais, há que se tomar cuidado com os riscos que decorrem do uso propriamente dito das tecnologias. Isso porque, para realizar suas atividades, as ferramentas precisam ser alimentadas com dados que, se não forem corretamente administrados, podem estar sob risco em termos de vigilância estatal e abuso e uso indevido pelo setor privado. Cabe ao Direito, então, uma proteção ampla em termos sociopolíticos e jurídicos [8]. Nesse contexto, um dos grandes desafios está em identificar os riscos e planejar ações eficazes para evitar — ou minimizar ao máximo — as consequências negativas.

Conclui-se ser indiscutível que o uso de máquinas como substituto da mão-de-obra humana confere celeridade e acurácia na realização de atividades repetitivas e de pouca complexidade, o que incentiva a utilização de ferramentas de inteligência artificial no Poder Judiciário. É essencial, porém, uma atenção redobrada quanto às ações que serão realizadas pelas ferramentas, bem assim sobre a necessária conferência humana quanto aos atos por elas executados, a fim de que sejam garantidos e tutelados os fundamentos constitucionais e os direitos fundamentais dos jurisdicionados. Retomando à experiência do TJ-RJ, tem-se que não há maiores objeções e riscos de violação a direitos fundamentais, pois em cada etapa de ações da ferramenta, os servidores procedem à sua validação.

Estas constatações, em contrapartida, não excluem a urgente necessidade de uma forte e completa sistematização da temática. E isso especialmente porque é preciso conferir segurança jurídica e porque a legislação vigente não dá conta, de forma satisfatória, das demandas que cada vez mais vão surgir no contexto tecnológico, inclusive em razão dos bem-sucedidos resultados.

Por fim, destaca-se a primordial consciência de que não se trata de objetivar, ou defender, a utilização de inteligência artificial em toda e qualquer demanda judicial, das simples às complexas, das repetitivas às inovadoras. Trata-se, sim, de sua incidência no plano de demandas e de atividades repetitivas e com baixa complexidade, capazes de gerar significativos impactos em termos de volume e tempo, sempre com o destaque de que as decisões judiciais derivadas das ações das máquinas devem passar pela supervisão do magistrado competente.


Referências

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Justiça em Números 2022. Brasília, 2022.

HOFFMANN-RIEM, Wolfgang. Teoria geral do Direito Digital: transformação digital, desafios para o Direito. Rio de Janeiro: Forense, 2021.

 


[8] HOFFMANN-RIEM, Wolfgang. Teoria geral do Direito Digital: transformação digital, desafios para o Direito. Rio de Janeiro: Forense, 2021, p. 6.

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