Em 1969, o economista Harold Nemsetz escreveu um artigo denominado “Informação e eficiência: um outro ponto de vista” (tradução livre), no qual acusava seu colega Kenneth Arrow de adotar a “abordagem do Nirvana”. O artigo de Nemsetz, um ferrenho crítico da lei antitruste, tratava da intervenção do governo no mercado em contraposição a um mercado livre que, segundo Arrow, ofereceria pouca inovação.
Neste artigo, o professor Demsetz cunhou a expressão “Falácia do Nirvana” para se referir a quem adota o ponto de vista do Nirvana, ou mundo perfeito, para criticar o mundo real.
Desse modo, tal falácia cria uma falsa dicotomia que apresenta uma opção que é, obviamente, vantajosa — e, ao mesmo tempo, completamente implausível.
Assim sendo, ela ignora que qualquer proposta de possível melhora para determinado problema é, frequentemente, preferível em detrimento de uma outra solução que sequer possui meios de se concretizar.
Em outras palavras, muitos críticos da solução julgam sua eficiência em comparação a alguma utopia imaginada.
Ainda agora em setembro um juiz da Justiça do Trabalho de São Paulo julgou procedente uma ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público do Trabalho do Estado acolhendo os pedidos para determinar que a empresa Uber proceda o registro trabalhista de todos os motoristas que trabalham conectados à plataforma. Além disso determinou o pagamento de um valor a título de danos morais coletivos no valor de R$ 1 bilhão de reais. Desta sentença cabe recurso.
A ação faz parte de um conjunto de ações civis ajuizadas pelo Ministério Público do Trabalho contra outras plataformas de intermediação de trabalho de entrega e transporte. Nestas há decisões contrárias.
Não pretendo aqui neste espaço rebater os termos jurídico da sentença, construída com respeitáveis argumentos e erudição apurada ao longo de quase uma centena de páginas, o que certamente será feito com competência pelos advogados da empresa. Já oferecemos aportes teóricos em outras obras de nossa autoria (em sentido contrário, aliás, ao decidido).
A primeira crítica vai à inoperância e inércia do legislador que remete ao próprio judiciário o protagonismo sobre o tema enquanto o correto seria o contrário. No próximo ano, 2024, completa-se uma década de trabalho plataformizado no Brasil (o Uber se instalou no Brasil em 2014, ano de copa). Tramitaram no legislativo nacional mais de 120 projetos de lei sobre o tema que não chegaram nem próximos de serem votados. O próprio grupo de trabalho tripartite formado pelo governo para tentar oferecer soluções legislativas tem demonstrado mais desarmonia do que consentimentos.
A inadequação regulatória fica latente. A CLT não se aplica sem uma distante ginástica hermenêutica. Jornada de trabalho, salário mínimo, férias, previdência social, CIPA, percentuais de aprendizes, praticamente tudo terá que ser repensado, adaptado, interpretado ou criado do zero, como nos casos do direito à transparência algorítmica ou indenização pelos dados criados. Estes novos trabalhadores se somam a tantos outros localizados na chamada “zona cinza” do Direito do Trabalho, uma zona intermediária entre o trabalho formal, aquele subordinado, e o trabalho autônomo.
São vítimas de um cruel sistema binário, criado ainda no início do século 20 que tinha como paradigma o trabalho manual de chão de fábrica e rural, que enxerga e estabelece proteções somente ao trabalhador subordinado, com contrato formal regido pela Consolidação das Leis do Trabalho e relega à própria sorte mais da metade da força de trabalho do Brasil. No momento em que uma demanda chega à justiça é esta a escolha que o julgador se obriga a fazer porque é a lei que lhe é dada.
Mas, como ao judiciário ainda cabe o protagonismo da definição da natureza jurídica da relação e toda decisão judicial tem externalidades, ou seja, efeitos que se espraiam para fora dos autos, na sociedade, estes devem ser analisados também.
As externalidades são muitas. Basta dizer que São Paulo é o maior mercado do Uber no mundo. Afinal, de forma pragmática, quais as consequências do vínculo? Estaremos a frente de uma Falácia do Nirvana eis que a solução que se apresenta não é implausível?
Nos parece que sim. Primeiro porque o vínculo de emprego é matematicamente incompatível com o modelo de negócio deste trabalho plataformizado. Em resumo: Da forma como existe hoje, o vínculo impede o modelo de negócio. Este argumento, aliás, está em todas as decisões do Tribunal Superior do Trabalho que rejeitaram o vínculo (ex: “…o motorista percebe uma reserva do equivalente a 75% a 80% do valor pago pelo usuário. O referido percentual revela-se superior ao que esta Corte vem admitindo como bastante à caracterização da relação de parceria entre os envolvidos, uma vez que o rateio do valor do serviço em alto percentual a uma das partes evidencia vantagem remuneratória não condizente com o liame de emprego” — TST-Ag-AIRR-1001160-73.2018.5.02.0473).
Considerando que o vínculo gera cerca de 62% de outras verbas a serem recolhidas sobre o salário (desconsiderando outras indenizatórias) — sendo este “80”, gera um custo de “50”, portanto. Não é preciso grande conhecimento matemático para saber que se gasta “50” pra faturar “20”, inviável é o modelo de negócio pois não proporciona lucro.
Ou o custo é repassado no preço (o que torna a plataforma menos atrativa ou até impraticável) ou é descontinuada, como aconteceu na Espanha.
Segundo porque muda o processo de entrada tornando infinitamente mais difícil. Para o cadastro na empresa Uber, por exemplo, é necessário uma CNH com a inscrição de exercício de atividade remunerada, verificação de segurança, o cadastro e envio de uma foto — do registro do automóvel e do motorista. O processo pode ser feito através do smartphone e não leva mais do que alguns minutos.
Já a contratação de um empregado peca pelo excesso quase infinito de burocracia. Aliás, o Brasil, inclusive, já foi considerado como recordista mundial de regulação trabalhista. A iniciar pelo custoso e demorado processo de admissão. É uma das principais rotinas de departamento pessoal das empresas e envolve uma infinidade de processos — documentos, procedimentos de entrada, exames, definição do tipo de contrato (por tempo determinado, por tempo indeterminado, temporário, intermitente, menor aprendiz), definição de local de trabalho, salário, benefícios, horários e necessidades técnicas, divulgação da vaga e requisitos necessários para a vaga.
Após o recebimento das inscrições ou dos currículos, deve ser realizada a triagem dos com a entrevista do candidato. Escolhido, deve apresentar a sua documentação, para que ele possa ser, de fato, admitido na empresa. A isso se segue uma criteriosa análise do automóvel, cuja locação deve ser formalizada.
A última etapa legal é o seu registro, conforme previsto no artigo 41 da CLT que determina que devem ser anotados todos os dados relativos à admissão, duração, efetividade, férias, acidentes e demais que interessem à proteção do trabalhador.
É uma externalidade, do custo financeiro, físico, estratégico e de pessoal que afeta características de adesão, rapidez e facilidade de criação de renda de forma quase imediata através de um processo de adesão espontânea por regras e requisitos pré informados e conhecidos.
E essa externalidade não afeta somente a plataforma, mas também trabalhadores que devem passar por todos estes procedimentos, candidatando-se a posições, participando de processos seletivos complexos, demorados e nem sempre justos, além de reféns de uma seleção baseada em currículos tradicionais construídos a partir de uma sucessão de experiências anteriores que nem sempre existirão.
Isso sem falar daqueles trabalhadores que aderem para acionamentos furtivos, esporádicos, com intuito de complementar renda através de uma segunda ou terceira fonte de renda, cujo interesse pode ser incompatível da empresa da plataforma que somente funcionará como negócios se construir uma oferta segura em cada um dos horários.
Aliás, o formato da contratação e do próprio contrato é absolutamente incompatível com a atual versão do complexo sistema e-social, pesadelo dos departamentos de RH das empresas, que coleta informações trabalhistas, previdenciárias e tributárias, armazenando-as em um Ambiente Nacional Virtual. O sistema, que é obrigatório, teria que ser completamente reprogramado para se adaptar às inúmeras particularidades desta relação, especialmente para aquele trabalhador de conexão esporádica.
Muito se fala que o vínculo não impede o acionamento furtivo do trabalhador. De fato, tecnicamente não, mas dificulta o modelo de negócio que permite a liberdade de auto acionamento. O modelo de plataforma funciona na base da “escala” que planifica engajamento em ambos os lados da relação trabalhador — requerente, pois não havendo um dos lados o outro perde o interesse e se vai. A tal “liberdade” dos trabalhadores só é garantida por conta do modelo de remuneração, algorítmica, que incentiva um maior engajamento em horários de maior movimento. Com o vínculo e as obrigações decorrentes, deixa de ser interessante o modelo “livre” já que deixa de existir o modelo de “escala”.
A plataforma então se obriga a designar os trabalhadores em determinados horários podendo proibir, inclusive do trabalhador se conectar em mais de uma plataforma. Lembramos que o vínculo não serve somente para gerar direitos, mas também obrigações e deveres para ambos os lados.
Mas como a plataforma mantém o serviço? Pelo engenhoso sistema de “curadoria externa” (aquela avaliação do profissional) e o sistema de governança que garante escala e confiabilidade de que requisitos mínimos de qualidade serão obedecidos (o que muitas vezes é confundido com traços de subordinação).
Mas vamos além. O vínculo melhorará o mercado e os fará ganhar mais? Já está mais do que provado por uma infinidade de estudos que lei não faz ninguém ganhar mais. Crescimento econômico, educação e consequentemente melhores oportunidades sim. Porque o Uber não expande no Japão? Com uma força de trabalho altamente qualificada e bem educada, não há contingente de trabalhadores aptos a este trabalho, mal remunerado e desprotegido. Já na Europa e nos Estados Unidos, o trabalho absorve basicamente imigrantes pouco qualificados. Abrindo oportunidades para gente que tem as dificuldades óbvias de quem chega em um país estranho.
O mesmo acontece no Brasil, com uma população que não encontra no mercado formal as oportunidades que precisa. Seja de mão de obra jovem, com pouco estudo e/ou desqualificada, o formato do trabalho plataformizado como foi desenhado é apto a absorver esse contingente de forma fácil e rápida. Ora, sem que esta opção esteja disponível para onde vai toda essa massa de trabalhadores?
Isso sem falar do impacto para além do negócio, como impostos, no transporte público das cidades e nas oportunidades de comércio que se aproveita e/ou até depende para serviço de entrega, aquilo que raramente entra na conta dos críticos.
Repito: O que muda a vida das pessoas é crescimento econômico, educação e oportunidade. O IBGE aponta que a renda média do trabalhador formal entre 18 e 24 anos (idade média do trabalhar vinculado a plataformas) era, no primeiro trimestre de 2020 de R$ 1.235,00. A taxa de desemprego neste mesmo período para esta faixa de idade era de 27,1%. Lembre-se que este perfil representa 68,8% da força de trabalho.
Precário e indecente é o salário mínimo. E isso seja lá qual for a natureza do vínculo.
Além disso o Magistrado entendeu que o que a Uber faz é tão grave que merecia ser condenada a pagar R$ 1 bilhão (com B) de reais. Quanto é 1 bilhão? São dez dígitos. Se uma pessoa resolvesse guardar 100 reais por dia, sem pular nenhum, levaria R$ 10 milhões de dias para alcançar um bilhão. Isso dá um total de 27.397 anos ou 304 gerações vivendo 90 anos cada uma. Sem pular um dia. Essa foi a condenação.
Ocorre que a solução promovida pelo MPT paulista e chancelada pelo judiciário trabalhista da 4ª Vara de São Paulo se baseia em uma das possíveis interpretações da lei posta. Interpretação que nem mesmo os tribunais superiores, quando chamados a fazê-lo, então completamente de acordo. Sabemos que essas indenizações por danos morais têm dupla função: punitiva e pedagógica. A empresa então foi severamente punida por descumprir uma das várias interpretações da lei. E haverá o estímulo correto então pra formalização do contrato? Volte ao início deste artigo e releia.
Mas isso significa que as plataformas são salvadoras da pátria e merecem ser celebradas? Não, muito longe disso. Atuam em uma zona escura e aproveitam-se da inércia do legislador “fazendo sua própria lei” explorando a força de trabalho alheia como bem entendem. Caberá ao legislador, sem demora, ouvindo as partes porém sem esperar uma completa concordância, acabar com essa insegurança jurídica e apresentar soluções possíveis dentre as quais arrisco a sugerir: criação de um conceito claro de trabalhador coordenado por plataformas, reconhecimento como uma relação de trabalho, reconhecimento da possibilidade de organização coletiva destes trabalhadores para fins de negociação coletiva (são mais de 100 modelos de negócios diferentes no Brasil nas plataformas, lembre-se), salário mínimo com métricas claras para o cálculo do tempo conectado e online, tempo de conexão com limite de 10 horas conforme previsão constitucional, seguros obrigatórios, recolhimento previdenciário tripartido, competência da Justiça do Trabalho e obrigação de transparência de decisões algorítmicas.
O “nirvana”, mundo perfeito do trabalho plataformizado não existe. Nem existirá. E definitivamente a decisão da Justiça do Trabalho não leva a ele. É fato que novos tempos exigem novas soluções.
André Gonçalves Zipperer é advogado, doutor em Direito pela PUC-PR, professor, pesquisador da USP-Getrab. Autor do livro “A intermediação de trabalho via plataformas digitais: repensando o Direito do trabalho a partir das novas realidades do século XXI” pela editora LTr.