Benoni Melo e Morais da Rosa: A ‘natureza e quantidade da droga’

Este artigo trata da controversa forma de aplicação da pena nos casos de tráfico de droga (Lei 11343/06, artigo 33 e seguintes]. Estabelecidas as premissas (fática e normativa), segue-se a inferência quanto à atribuição da culpa (silogismo judicial), com a subsequente aplicação da pena.

Embora com fundamento na equidade, o Princípio Constitucional da “Individualização da Pena” (CR, artigo 5º, XLVI e XLVII) orienta-se ao ajuste contextual entre a pena abstrata e o caso concreto, abertura normativa que a atitude autoritária se aproveita para agravar a situação jurídica do acusado de modo abusivo. Justo o contrário, deve-se avaliar a justificativa da eficácia contextual da punição, tendo em vista a necessária adequação dos meios aos fins pretendidos (juízo de proporcionalidade em concreto).

De qualquer forma, o problema do quantum da pena é permanente diante da ausência de tabelamento e da ausência de padrões reconhecidos e aceitos, aceitando-se ampla dispersão quanto aos critérios temporais de aplicação da pena, sob o argumento inválido da existência de espaço discricionário, a partir das variáveis objetivas e subjetivas previstas no artigo 59 do Código Penal e do artigo 42 da Lei 11343/06.

Na aplicação da pena prevalece o critério trifásico: [a] pena base; [b] atenuantes e agravante; e, [c] causas especiais de diminuição e/ou aumento. A exigência de motivação e fundamentação conferem, em tese, a possibilidade de escrutínio quanto aos critérios utilizados para adequação da pena ao caso concreto.

No regime geral do Código Penal, a primeira fase valora as circunstâncias judiciais do artigo 59 do CP, enquanto no regime da Lei de Drogas, a teor do artigo 42 da Lei 11343/06, deve-se considerar somente: “Artigo 42. O juiz, na fixação das penas, considerará, com preponderância sobre o previsto no artigo 59 do Código Penal, a natureza e a quantidade da substância ou do produto, a personalidade e a conduta social do agente”.

“A natureza e a quantidade da substância ou produto”. Em consequência, no caso da Lei de Drogas, especialmente tráfico (artigo 33), a lista de circunstâncias judiciais é composta por: 1) Culpabilidade; 2) Antecedentes; 3) Conduta Social; 4) Personalidade do Agente; 5) Motivos; 6) Circunstâncias do Crime; 7) Consequências do Crime; 8) Comportamento da Vítima; 9) Natureza da Substância ou Produto (Tipo); e, 10) Quantidade da Substância ou Produto.

A lista é composta por cinco circunstâncias relacionadas ao acusado (culpabilidade; antecedentes; conduta social; personalidade; motivo); uma aos efeitos e externalidades positivas e/ou negativas (consequências do crime), uma direciona-se à vítima (comportamento da vítima; somente pode favorecer o acusado) e duas ao objeto ilícito (corpo de delito: natureza e quantidade da substância ou produto).

A par de outras controvérsias (v.g. o padrão de 1/6; redução do artigo 33, §4º), o objeto do artigo é a especificidade prevista na Lei de Drogas, segundo a qual na fixação das penas o juiz considerará, “com preponderância” sobre o previsto do artigo 59 do CP, “a natureza e a quantidade da substância ou produto”, desde que a droga esteja contida no preceito primário.

A questão é: a natureza e a quantidade da Substância ou Produto podem ser fundamentos preponderantes para a fixação da pena em todos os crimes previstos na Lei nº 11343/2006?

Para devida compreensão da objeção proposta, recapitulando que a Lei 11.343/2006, trouxe uma peculiaridade no processo de definição da pena-base, estabelecendo que a preponderância da “natureza e a quantidade da droga” sobre aquelas circunstâncias judiciais previstas no artigo 59 do Código Penal.

Entretanto, o que se verifica na prática é que quando há uma condenação por qualquer crime da Lei de Drogas os juízes aplicam a pena e preponderam a natureza e a quantidade da substância ou produto na Primeira Fase, qualquer que seja a incidência penal, independentemente de a “droga” compor a elementar do tipo.

A Lei de Drogas possui oito tipos penais, incluindo o artigo 28, que tem sua constitucionalidade questionada no Recurso Extraordinário 635.659, no âmbito do Supremo Tribunal Federal. O julgamento caminha no sentido da alteração da abordagem estatal, isto é, com o abandono do direito penal e a prevalência da questão de Saúde. Até porque se o bem jurídico protegido é a vida ou a integridade física, o sujeito ativo se confunde com a própria vítima que se coloca em risco e, por outro lado, se for a difusa incolumidade pública, aplica-se a insignificância porque salvo se a houver uma hipersensibilidade da incolumidade pública, o efeito da posse de droga nunca terá a magnitude necessária à criminalização.   

O crime de associação para o tráfico, previsto no artigo 35 da Lei de Drogas (Lei 11343/2006), por exemplo, criminaliza a conduta de “Associarem-se duas ou mais pessoas para o fim de praticar, reiteradamente ou não, qualquer dos crimes previstos nos artigos 33, caput e §1º, e 34 desta Lei”. Assim é que é considerado um crime autônomo e distinto do tráfico de drogas (artigo 33 da mesma lei). Além de autônomo e independente, a natureza do crime de associação para o tráfico é de perigo abstrato e formal, uma vez que não é necessário que o crime de tráfico de drogas efetivamente ocorra para que o delito de associação para que o tráfico se configure. É dizer: pode haver a consumação do delito de associação para o tráfico (artigo 35), sem que ocorra a mercancia de drogas (artigo 33).

Assim, o simples fato de se associarem para tal finalidade, desde que haja dolo de se associar, vínculo estável e permanência, a depender da dinâmica contextual, já configura o crime previsto no artigo 35.

O mesmo ocorre com o delito previsto no artigo 37, que criminaliza a figura do informante, prevendo que “Artigo 37. Colaborar, como informante, com grupo, organização ou associação destinados à prática de qualquer dos crimes previstos nos artigos 33, caput e §1º , e 34 desta Lei”. Conforme sabido, o informante não integra efetivamente o grupo e não toma parte no tráfico, mas passa informações ao grupo, organização ou associação voltados ao tráfico [modalidade de favorecimento].

Porém, o fato é que a “natureza e quantidade de droga” é irrelevante para a tipicidade do tipo previsto no artigo 37, pois também se trata de crime autônomo e independente.  

Dessa forma, nota-se que a “natureza ou a quantidade de droga” não é elementar e nem circunstância do delito de associação para o tráfico, nem do artigo 37, que pune o informante.

Ora, se a quantidade e natureza da droga é irrelevante para a própria tipicidade desses delitos, essa mesma natureza e quantidade de droga não pode ser empregada para fins de exasperação da pena-base aplicada, sob pena de se fazer uma analogia em desfavor do arguido.

Mais do que isso.

Observe-se que dos artigo 40 até o artigo 47 da Lei de Drogas, nos quais há previsão de causas especiais de aumento e diminuição de pena, quando há interesse do legislador em aumentar a pena dos crimes previstos na lei de drogas, ele o faz expressamente:

Previsão expressa de aumento de ⅙ a ⅔ somente aos crimes previstos nos

Artigo 33 a 37

Artigo 40. As penas previstas nos arts. 33 a 37 desta Lei são aumentadas de um sexto a dois terços, se:

 

Previsão expressa sobre a utilização da natureza e quantidade da droga na fixação da pena de multa aos crimes previstos nos

Artigo 33 a 39

Artigo 43. Na fixação da multa a que se referem os artigos 33 a 39 desta Lei, o juiz, atendendo ao que dispõe o artigo 42 desta Lei, determinará o número de dias-multa, atribuindo a cada um, segundo as condições econômicas dos acusados, valor não inferior a um trinta avos nem superior a 5 (cinco) vezes o maior salário-mínimo.

Previsão expressa dos crimes que são inafiançáveis e insuscetíveis de sursis, graça, indulto, anistia e liberdade provisória, vedada a conversão de suas penas em restritivas de direitos, aos crimes previstos nos artigos 33, caput e §1º , e 34 a 37

Artigo 44. Os crimes previstos nos arts. 33, caput e §1º , e 34 a 37 desta Lei são inafiançáveis e insuscetíveis de sursis, graça, indulto, anistia e liberdade provisória, vedada a conversão de suas penas em restritivas de direitos.

Todavia, quando o legislativo estabelece em seu artigo 42 o que “na fixação das penas, considerará, com preponderância sobre o previsto no artigo 59 do Código Penal, a natureza e a quantidade da substância ou do produto, a personalidade e a conduta social do agente”, a disposição não declara expressamente o rol de tipos penais que incide.

Significa dizer: a natureza e a quantidade de drogas poderão ser utilizadas como preponderantes, sobre aquelas previstas no artigo 59 do CP, quando o delito demandar a “importação, exportação, preparo, fabricação, transporte, venda, etc.” de droga, ou seja, nos quais o preceito primário exigir a presença da elementar droga.

Observe que a legislação não faz qualquer menção explícita à utilização da quantidade de droga para a fixação da pena-base no delito de associação para o tráfico (artigo 35), justamente porque a apreensão de droga é contingente e irrelevante à configuração da conduta descrita.

Estabelecidas essas premissas, pode-se concluir que a utilização da “natureza e quantidade da droga” como preponderantes na fixação da pena-base dos crimes nos quais a droga não é elementar do tipo [artigos 35 e 37 da Lei 11343/06] configura analogia in malam partem, com a violação do Princípio da Legalidade, o artigo 5º, XXXIX, da Constituição, dada a ausência de previsão expressa nesse sentido, além de individualizar para pior, por meio do uso reverso da analogia aceita pelo domínio do Direito Penal. Do contrário, utiliza-se critério inválido para majorar a pena dos crimes dos artigos 35 e 37 porque sequer compõe o preceito primário dos tipos penais, motivo pelo qual são critérios neutros na aplicação da pena dos referidos tipos penais. Daí a objeção, lógica, ademais.

Philipe Benoni Melo e Silva é advogado e presidente da Abracrim (Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas) do Distrito Federal.

Alexandre Morais da Rosa é juiz de Direito de 2º Grau do TJ-SP (Tribunal de Justiça de Santa Catarina) e juiz instrutor no STF (Supremo Tribunal Federal), doutor em Direito e professor da Univali (Universidade do Vale do Itajaí).

Consultor Júridico

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