A década de 1990 chegou ao fim e trouxe consigo desafios significativos no combate da criminalidade organizada. Naquele período, as autoridades perceberam que prender e substituir membros das organizações criminosas não era suficiente para deter o avanço do crime, pois a estrutura dessas organizações permanecia intacta, permitindo que o tráfico de drogas e outros crimes continuassem gerando lucros substanciais. Era um problema complexo e sofisticado.
Diante desse cenário, tornou-se evidente que era necessário ir além da prisão de membros e atacar o cerne do problema: o dinheiro envolvido no tráfico de drogas pertencente as organizações criminosas. No entanto, essa não era uma tarefa simples, uma vez que boa parte dos lucros era ocultada e dissimulada. Assim, surgiu o combate ao crime de “lavagem de dinheiro”, que ganhou relevância crescente no cenário internacional.
As autoridades começaram a adotar uma abordagem mais sofisticada, utilizando dados, relatórios e dossiês para rastrear os ganhos provenientes de crimes, confiscar bens e desmantelar as organizações criminosas. Além disso, ficou claro que o caráter transnacional do crime organizado era um desafio importante que precisava ser enfrentado.
Dessa forma, políticas de cooperação internacional foram estabelecidas. Diversos tratados e convenções foram criados, como a Convenção de Palermo, a Convenção de Viena e a Convenção de Mérida. Inicialmente focadas no combate ao crime organizado, essas convenções acabaram abordando também infrações penais antecedentes e, em 2003, a Convenção de Mérida incluiu discussões sobre corrupção e controles administrativos em setores sensíveis, como instituições financeiras, entre outros.
A Convenção de Mérida trouxe um importante aspecto para a discussão: a cooperação de entidades privadas no combate à lavagem de dinheiro. A partir desse tratado, setores sensíveis da economia privada foram obrigados a contribuir no combate a esse crime. Isso incluiu a criação de registros, a comunicação de atos e transações suspeitas às autoridades competentes e o desenvolvimento de políticas internas de conformidade.
Para fortalecer essa cooperação internacional, grupos internacionais compostos por especialistas e autoridades públicas foram criados, com a missão de monitorar e controlar as atividades relacionadas à lavagem de dinheiro, surgem então as Unidades de Inteligência Financeira.
O Brasil aderiu ao movimento internacional, tornando-se signatário de tratados importantes e, em 1988, promulgou sua primeira lei sobre o tema, que tipificou a conduta de ocultação e dissimulação de bens, estabeleceu regras processuais e criou nossa Unidade de Inteligência Financeira, conhecida como Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf).
A lei brasileira tem uma abordagem abrangente, tratando de atos de controle administrativo em setores sensíveis, normas relacionadas a crimes e penas, bem como normas de processo penal.
Em 2012, foi estabelecido um novo quadro legal que impôs a obrigação de cooperação a todas as pessoas físicas e jurídicas que operam em setores sensíveis ao crime. Isso incluiu deveres de comunicação às autoridades e o cumprimento de normas de integridade. Foi nesse contexto que o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) assumiu posição de destaque, atuando como uma peça crucial do sistema.
Criado pela Lei 9.988 e regulamentado posteriormente pela Lei 13.974/20, o Coaf faz parte da estrutura do Banco Central do Brasil. É composto por autoridades de diversos agentes órgãos econômicos e judiciais do país, e sua função primordial é atuar como um centro de inteligência financeira.
O Coaf desempenha um papel crucial na coleta, armazenamento, sistematização e disseminação de informações relacionadas à lavagem de dinheiro. Além disso, tem a responsabilidade de supervisionar setores sensíveis, como instituições financeiras, e contribuir na formulação de políticas para o setor financeiro. Essas medidas visam assegurar um controle adequado sobre atividades suscetíveis à lavagem de dinheiro, promovendo um ambiente financeiro mais seguro e transparente.
No entanto, ao chegarmos a meados de 2023, deparamo-nos com uma discussão de extrema relevância: quais são os princípios que devem nortear as ações desse órgão? Qual é o seu papel genuíno em um sistema jurídico fundamentado na Constituição? De fato, a atuação desse órgão está cada vez mais focalizada em dois pilares essenciais: a transparência e a metodologia. Nesse contexto, torna-se crucial a definição de limites bem delineados para sua atuação.
É crucial destacar que o Coaf não possui atribuições persecutórias. Isso significa que o órgão não tem a autoridade para conduzir investigações criminais, decretar medidas cautelares ou solicitar a abertura de inquéritos. Sua atuação concentra-se na coleta e análise de informações financeiras suspeitas, com o propósito de fornecer relatórios de inteligência às autoridades competentes para conduzirem investigações apropriadas.
Valiosas as lições do professor Pierpaolo Cruz Bottini, ao ressaltar que o processo de gestão de dados pelo Coaf é extremamente meticuloso. As informações passam por algoritmos que identificam operações financeiras consideradas relevantes para investigações de lavagem de dinheiro. Posteriormente, funcionários altamente especializados analisam minuciosamente esses dados. Caso uma suspeita fundamentada seja identificada, um caso é aberto e a informação é encaminhada a outro analista, diferente do primeiro, para elaborar um Relatório de Inteligência Financeira (RIF).
É fundamental ressaltar que os RIFs elaborados pelo Coaf não podem ser utilizados como prova criminal em processos judiciais. Seu principal propósito é fornecer informações às autoridades competentes para conduzirem investigações apropriadas. Portanto, esses relatórios não têm caráter acusatório nem valor probatório absoluto para crimes.
A proteção contra abusos e a preservação das garantias individuais são pilares fundamentais no funcionamento do Coaf. Os relatórios de inteligência só podem ser compartilhados com as autoridades públicas após análise por um comitê composto por analistas e servidores do órgão. Esse processo rigoroso de revisão e verificação garante que as informações sejam tratadas de forma imparcial e adequada, evitando qualquer possibilidade de influência indevida ou interferência nas operações do órgão.
A independência do Coaf é uma peça fundamental na manutenção dessas garantias. O órgão não deve ser influenciado por pressões políticas ou interesses particulares. Sua atuação deve ser pautada pela imparcialidade, transparência e estrita aderência às leis e regulamentos.
Os relatórios de inteligência elaborados pelo Coaf são uma ferramenta importante para as autoridades competentes na condução de investigações. No entanto, esses relatórios não devem ser elevados ao centro probatório, até porque, não respeitam o contraditório. Eles servem como ponto de partida para investigações mais aprofundadas e devem ser tratados como tal.
Em última análise, o Coaf desempenha um papel crítico na proteção do sistema financeiro contra atividades ilegais e no combate ao crime organizado. No entanto, esse papel deve ser desempenhado com responsabilidade, respeitando rigorosamente as garantias individuais e os princípios democráticos. Encontrar o equilíbrio entre a prevenção do crime e a proteção das liberdades individuais é um desafio constante em qualquer sociedade democrática, e o Coaf representa uma das ferramentas para enfrentar esse desafio de maneira eficaz e justa.
Dessa forma, fica claro que as formalidades e os rigorosos padrões adotados pelo Coaf desempenham um papel fundamental para garantir que sua atuação seja justa, transparente e plenamente alinhada com os princípios democráticos. Isso, por sua vez, resulta na proteção das liberdades individuais de todos os cidadãos, enquanto o Coaf desempenha seu papel vital no combate à lavagem de dinheiro e à criminalidade financeira.
Em última análise, o Coaf não é apenas um órgão regulador, mas também uma “vitrine da transparência”. Sua abordagem metodológica cuidadosa e sua dedicação à conformidade com as garantias constitucionais fortalecem sua legitimidade e eficácia. Assim, o Coaf continua a desempenhar um papel crucial na promoção de um sistema financeiro mais seguro e transparente, enquanto respeita e protege as liberdades individuais que são pilares de nossa sociedade democrática.
Referências
Badaró, Gustavo Henrique Righi Ivahy, Pierpaolo Cruz Bottini. “Lavagem de dinheiro: aspectos penais e processuais penais” (2023).
VIEIRA, Vânia Lúcia Ribeiro. A atuação do Coaf na prevenção à lavagem de dinheiro à luz da Teoria da Regulação Responsiva. Journal of Law and Regulation, v. 4, nº 1, p. 263-288, 2018.
Bruno Barros Mendes é mestrando pela USP-FDRP, especialista em Ciências Criminais PUC-MG e advogado criminalista.