A paixão é um sentimento intenso e profundo de atração por algo ou alguém, mas é bem verdade, também, que o apaixonado demonstra excessos e tem aspectos de seu comportamento alterado, e, às vezes, acaba cegando para o racional. Há quem defenda, inclusive, que paixão e razão são inimigas [1].
Nos autos do processo há apaixonados. As partes pelas suas demandas. Mas, não é a elas que me refiro. Advogados também se apaixonam, e esse pode ser um problema, como o foi em uma execução provisória na qual atuei já depois que haviam sido bloqueados valores das executadas.
O ponto nevrálgico da controvérsia havida nos autos da referida execução provisória cingiu-se na ausência de notificação válida das executadas para pagar o débito e/ou se insurgirem contra o despacho que rechaçou a impugnação aos cálculos apresentada.
Antes, porém, é preciso informar ao leitor que a defesa das executadas nos autos competia a advogado que renunciou ao múnus após apresentar impugnação aos cálculos do exequente.
Diga-se, ainda, que aquele juízo fez juntar certidão que informava a liquidez da sentença exequenda, razão por que coligiu aos autos nova planilha de atualização dos cálculos.
Da apresentação da referida planilha, o juízo não notificou as partes para manifestação, providência a qual deveria ser adotada à luz do disposto no artigo 879, §2º da CLT.
Talvez, porque o exequente, açodado, apresentou, horas depois da juntada dos cálculos, um pedido de prosseguimento da execução, com o objetivo de ver citadas as executadas para pagar o débito.
E o magistrado, presidente nos autos, deferiu o pedido realizado, como tantos outros que fez o exequente, por seu patrono, que passou, a meu sentir, a presidir os autos do processo.
É bem como dizem: a pressa é inimiga da perfeição!
Foi expedida notificação em nome das executadas “pagar em 48 (quarenta e oito) horas, ou garantir a execução, sob pena de penhora”.
Ocorre, contudo, que a intimação, para cumprir o que fora determinado nas supracitadas notificações, foi dirigida ao então advogado, que, por força da renúncia outrora apresentada, já não tinha poderes para receber comunicações processuais deste jaez.
A providência a ser adotada não poderia ser outra, senão a notificação pessoal das executadas, que não haviam constituído novo advogado para patrociná-las nos autos.
Mas, como se vê, assim não foi feito.
Às urtigas as garantias do contraditório, da ampla defesa e do processo democrático!
Então, como se disse, repousava nos autos pedido de renúncia, deduzido antes da citação para pagamento, pelo então advogado das reclamadas, sobre o qual o juízo deu menor importância.
Por esse panorama, se estava diante de um processo no qual a parte não estava assistida por advogado, o que no âmbito justrabalhista não é um nonsense, já que as partes podem atuar sem a presença de advogados nos processos trabalhistas, ressalvadas algumas exceções, as quais não se enquadravam no caso.
Tudo bem! Não haveria nenhum problema em dar prosseguimento aos atos executórios diante da ausência de advogado, o que não poderia era que os autos do processo caminhassem à revelia das executadas, sem que estas pudessem exercer seu sagrado direito de defesa (o qual, no processo de execução, dada sua natureza, se apresenta mais reduzido, mas, como não poderia deixar de ser, não é inexistente).
Foi o que ocorreu ali!
Evidente violação ao direito de defesa das executadas, especialmente ao contraditório e a ampla defesa (o primeiro calcado no binômio ciência/oportunidade), previsto em norma de maior envergadura (artigo 5º, LV da Constituição), eis que foi sonegada ciência às executadas dos atos que se processavam naqueles autos, e, por consequência, oportunidade para realizarem as manifestações pertinentes.
Há que se ter especial cuidado com as citações que se processam nos autos de execuções provisórias, devendo o magistrado, se não por imposição legal, mas por cautela, determinar a notificação pessoal do executado, na medida em que os autos desse tipo de procedimento tramitam em apartados, o qual é tombado com um novo número.
Também não se desconhece que o artigo 880 da CLT é literal ao estabelecer que “[O] mandado de citação deverá conter a decisão exeqüenda ou o termo de acordo não cumprido, bem ainda que ‘A citação será feita pelos oficiais de diligência'” [sic].
O dispositivo invocado ainda arremata, no §3º, que “[S]e o executado, procurado por duas vezes no espaço de 48 (quarenta e oito) horas, não for encontrado, far-se-á citação por edital, publicado no jornal oficial ou, na falta deste, afixado na sede da Junta ou Juízo, durante cinco dias”.
No caso, verificou-se notificação, nos termos do artigo 880 da CLT, não de modo pessoal (providência que não seria de todo incorreta, considerando a jurisprudência dos tribunais), mas, na pessoa de advogado sem poderes para recebê-la.
Não se pode primar pela garantia da razoável duração do processo, a pretexto de que os autos tramitam há três anos sem trânsito em julgado, se, em contrapartida, se violam direitos básicos.
E assim foi se processando a demanda, que, a pretexto de fazer justiça, violou garantias constitucionais do devedor.
Os fins não justificam os meios!
A Corte Máxima Trabalhista já analisou casos semelhantes, um dos quais, da fina lavra da ministra Kátia Magalhães Arruda, parece se amoldar, em tudo e por tudo, ao caso em análise, considerando que, também lá, a notificação foi dirigida a advogado que não patrocinava a executada. É o que se observa do aresto, o qual restou assim ementado:
“RECURSO DE REVISTA. RECLAMANTES. EXECUÇÃO. RECURSO ANTERIOR À LEI Nº 13.015/2014. AGRAVO DE PETIÇÃO INTERPOSTO PELA EXECUTADA. FALTA DE INTIMAÇÃO DOS EXEQUENTES. NULIDADE. 1. Do exame dos autos infere-se que o juiz da execução, analisando a petição dos reclamantes na qual informavam que não haviam sido notificados dos atos da execução porque a intimação saíra em nome de advogado que não os patrocinava, reconsiderou a decisão que determinava o envio dos autos ao TRT em face do agravo de petição, determinando que fosse procedida nova intimação dos exequentes, o que não foi feito. 2. O artigo 5º, LV, da Constituição Federal dispõe que ‘aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes’. Para que seja respeitado o referido postulado constitucional, incumbe ao magistrado a concessão de prazo para manifestação do litigante sobre qualquer ato praticado pela parte contrária e que lhe possa resultar em prejuízo. 3. A ausência de intimação e concessão de prazo para apresentação de contrarrazões ou contraminuta ao recurso interposto é circunstância que implica flagrante afronta ao princípio do contraditório e da ampla defesa. 4. Recurso de revista de que se conhece e a que se dá provimento” (RR-93700-35.1998.5.04.0011, 6ª Turma, relatora ministra Kátia Magalhães Arruda, DEJT 17/02/2017).
Mas não é só.
É certo que no processo do trabalho, que se rege pela simplicidade, as nulidades só podem ser reconhecidas em caso de prejuízo aos litigantes (artigo 794 da CLT).
Era o caso dos autos!
Com o ajuizamento da execução, o exequente fez juntar planilha de cálculo dando conta do valor devido pelas executadas. Como foi registrado alhures, o juízo determinou a retificação dos cálculos para que atendesse a exigências próprias desta justiça do trabalho.
O exequente assim o fez, e sobre essa nova planilha se manifestaram as reclamadas por seu então patrono.
Entretanto, o juízo fez juntar nos autos outra planilha de cálculos, cuja agregação se deu posteriormente à renúncia apresentada pelo advogado das executadas.
Sobre os cálculos carreados nos autos pela secretaria, deveriam as executadas, como já registrei, terem falado no prazo legal, ex vi legis do artigo 879, §2º da CLT, o qual dispõe que “[E]laborada a conta e tornada líquida, o juízo deverá abrir às partes prazo comum de oito dias para impugnação fundamentada com a indicação dos itens e valores objeto da discordância, sob pena de preclusão”.
Vou além!
Pelo princípio da menor onerosidade da execução, especialmente por se tratar de providência provisória, na medida em que restava pendente, àquela altura, o julgamento de recurso na instância extraordinária, seria lícito às executadas, ainda mais em razão da provisoriedade do processo, se valer de nomeação de bens à penhora, além da apresentação de seguro-garantia judicial, providências autorizadas pela inteligência do artigo 882 da CLT, as quais não restaram observadas.
Às escâncaras, destarte, a violação ao comando do artigo 5º, LV da Constituição, além do artigo 882 e artigo 879, ambos da CLT, a ensejar a nulidade de todos os atos processuais desde a decisão que mandou citar as executadas, com a devolução do prazo e o levantamento de eventuais penhoras sobre bens, e atrasar a prestação jurisdicional do exequente, tudo em razão, salvo melhor juízo, de o magistrado presidente ter permitido que a pressa e a paixão do advogado do autor comandassem o curso do processo, sem atentar para as notificações, as quais foram direcionadas a advogado sem poderes para recebê-las.
Bruno Gomes Sampaio é advogado, pós-graduado em Direito e Processo do Trabalho e Direito Previdenciário, sócio-fundador do BMI Advocacia, ex-coordenador trabalhista em escritórios de advocacia em Sobral e Fortaleza, ex-estagiário no Banco do Nordeste do Brasil S.A. e do Tribunal de Contas dos Municípios do Ceará (TCM/CE) e ex-membro do grupo de pesquisa Direito Privado na Constituição da Universidade de Fortaleza (Unifor).