Nos dias 22 e 23 de junho, aconteceu, em São Paulo, a 6ª Edição da Conferência Nacional de Futebol (Conafut), organizada por Fernando Trevisan, da Trevisan Escola de Negócios, e Rodrigo Molina, da The360.
Foram dois dias intensos em que pessoas com as mais diversas ligações com o esporte que tanto amamos puderam se reunir e discutir os sofisticados temas que atualmente pairam sobre o futebol brasileiro. Entre painéis que discutiram os novos rumos do mercado do futebol — como a nova liga, a regulamentação das apostas esportivas e o ESG como negócio rentável —, executivos, agentes de atletas, jornalistas, publicitários, advogados, ex-atletas e profissionais de tecnologia puderam ver seus pares agraciados com os prêmios referentes ao ano de 2022, que honraram as melhores performances nos diferentes setores que compõe os times de futebol.
Interessante destacar, no entanto, a frase que os mais de 700 participantes do evento escutaram incessantemente dos sessenta palestrantes no correr dos painéis realizados: “precisamos falar sobre fair-play financeiro”. O lembrete, que normalmente era acompanhado de uma crítica ao fato de que as discussões sobre a nova liga se resumem ao “quanto se ganha e não a como se gasta”, representa a latente preocupação dos comandantes do futebol brasileiro com os rumos das finanças do mercado do futebol. Mas afinal o que é fair-play financeiro? Nosso futebol precisa dele? A seguir, breves comentários sobre o tema.
Fair-play financeiro e a sua razão de ser no Brasil
Criado pela Uefa (entidade que controla o futebol europa) entre 2009 e 2010 e implementado no mundo do futebol durante o período entre 2012 e 2015, o fair-play financeiro é um conjunto normativo destinado a regular a intensidade com a qual os times europeus gastam seus recursos financeiros.
Em meio ao cenário de superendividamento de alguns dos principais clubes do Velho Continente, desenhado principalmente pelo incessante ímpeto dos dirigentes em “vencer a competição” do mercado de transferência — ser considerado pela mídia, pela torcida e pelos rivais como o time que melhor contratou ou que acrescentou os nomes de maior peso ao plantel — a intenção da Uefa foi acrescentar ao seu regulamento geral provisões que desincentivassem a irresponsabilidade financeira das entidades desportivas.
Não por acaso, incluiu como objetivos da norma aspirações valorosas como a melhora das capacidades econômico-financeiras dos times com aumento de sua credibilidade; a implementação de maior disciplina e racionalidade nas finanças dos times de futebol; e o encorajamento aos gastos responsáveis e proteção da viabilidade e sustentabilidade de longo prazo [1].
Cenário do futebol europeu à época e as preocupações da Uefa
A com a saúde financeira dos times afiliados soam bastante familiares. Estão escancaradas as semelhanças com o estado atual do futebol brasileiro, com muitos dos principais times do país afundados em dívidas por conta da irresponsabilidade e irracionalidade com a qual aplicaram seus recursos.
Ainda que deixemos a discussão das raízes destes problemas para momento mais propício (a saber, o desastroso e antiquado modelo associativista que rege nosso futebol há mais de um século), o endividamento recorde dos times brasileiros é a maior preocupação que paira sobre o mercado. A criação da Lei da SAF e da nova liga, mostram, também, o ímpeto em buscar soluções para tolher o enorme passivo.
A título de elaboração, o Relatório Convocados 23 [2], desenvolvido por Galápagos Capital e Outfield Inc., que se presta a analisar os dados financeiros e de mercado dos times das duas principais divisões do Campeonato Brasileiro, calculou que, em 2022, a dívida líquida da Série A somada às grandes dívidas dos integrantes da Série B ultrapassou R$ 10 bilhões. O estudo não só dá contornos ao assustador montante total do endividamento, como traz indícios de preservação do crescimento da dívida, que foi de robustos 8,9% de 2021 para 2022.
E a solução, conforme repetidamente lembrado na Conafut 2023, passa pela implementação do fair-play financeiro.
O modelo a ser seguido (e uma sugestão de complementação)
Ao que tudo indica, o modelo de fair-play financeiro a ser adotado (ou pelo menos discutido) pelos times que comporão a liga que resultar da assimilação dos dois atuais blocos de negociação será o da Uefa.
A estrutura utilizada pela confederação europeia de futebol se presta a regular o montante gasto nas janelas de transferências pelos times a ela filiados e, para isso, utiliza-se do conceito de break-even, comum aos economistas. O break-even, a grosso modo, é o ponto em que o volume de entradas e saídas de capital se equiparam, criando equilíbrio contábil. E para a Uefa, sua aplicação é bem simples: a soma dos valores de entradas e saídas de atletas de um time de futebol [3], durante três anos-calendário, deve ser superavitária ou ao menos se equilibrar, excetuando-se os casos específicos em que a Uefa possibilita uma “variação deficitária aceitável” neste balanço [4].
No entanto, sugere-se aqui a discussão de uma forma alternativa de fair-play financeiro para complementar o da Uefa: a limitação da folha salarial ou salary cap. O salary cap nada mais é que a restrição de gastos nas folhas salariais dos times de uma determinada liga esportiva, comumente utilizado na NFL e na NBA. No modelo norte-americano, a cada ano a entidade que organiza a competição determina um montante global máximo que pode ser gasto por cada um dos times afiliados com o total de jogadores que compõe a sua folha salarial, baseando-se nos rendimentos auferidos pela totalidade da liga no ano anterior.
Na NFL, os times são proibidos de ultrapassar este limite, ao passo que na NBA é permitido a extrapolação do valor limite, mediante o pagamento do equivalente ao valor excedente à liga, para que este montante seja distribuído entre os times ‘em conformidade’ com a regra.
Portanto, nos EUA o salary cap serve estritamente para manter a competitividade entre as entidades de prática esportiva, visto que nenhuma das suas ligas prevê o rebaixamento, inexistindo divisões inferiores de um mesmo campeonato.
No Brasil, no entanto, os efeitos poderiam ser bem mais proveitosos. Primeiramente, a instituição de limitações aos gastos com folha salarial traria mais racionalidade nas decisões de contratações e, assim, com recursos mais escassos, teriam a obrigação de fazer contratações estratégicas alinhadas com seu planejamento esportivo. Em segundo lugar, haveria maior transparência do poderio financeiro dos times no mercado de transferência, que resultaria em diminuição extrema da pressão que a torcida coloca nos ombros dos dirigentes, exigindo maior quantidade e qualidade nas transferências (que inevitavelmente acabam por endividar o clube). E, por último, haveria um aumento considerável na competitividade da liga, visto que se alcançaria maior paridade nos gastos que os times poderiam fazer com plantel.
Adianta-se aqui que a transplantação direta e sem qualquer adaptação do instrumento norte-americano ao futebol brasileiro não seria inteligente. Isto porque as diferenças no poder econômico dos times brasileiros já são tão significativas que a determinação de um valor-base global para as folhas salariais causaria ou um endividamento dos times que menos rendem ou uma restrição desmedida aos times que mais rendem. Ademais, pelo futebol ser um esporte global, o salary cap poderia tolher o poderio dos times brasileiros em transferências internacionais de jogadores, impossibilitando a competição por reforços com times de outros países e continentes.
Estas razões, no entanto, não são suficientes para se descartar a discussão por completo. A discussão sobre o fair-play financeiro é necessária, relevante e deve se estender ao máximo para que possamos chegar a um modelo único que supra as singularidades do futebol brasileiro. A própria MLS (liga de futebol dos EUA), por sua vez, estabeleceu sistema de salary cap bem menos restritivo que possibilita a atuação negocial a nível internacional, atendo-se a delimitar com mais profundidade apenas os contratos mais robustos com jogadores de renome firmados por cada time.
Nos resta torcer para que a destreza e excelência vistas nas discussões da Conafut 2023 sejam a regra nas discussões da nova liga.
Caio Jannini Sawaya Oliveira é advogado de Direito Desportivo, formado na Fundação Getúlio Vargas e fundador do Grupo de Estudos em Direito Desportivo e Arbitragem da FGV.