Mais do que um novo diploma legislativo, o tão festejado e aguardado Decreto nº 11.453, de 2023 [1], representa um marco no direcionamento estratégico da Política Nacional de Fomento à Cultura. Publicado num contexto de esperança e reestruturação, o novo decreto já carrega em suas entrelinhas o importante compromisso de sacramentar o fim de uma era marcada pelo retrocesso, desmonte e engessamento da produção cultural brasileira. Uma grande responsabilidade.
O objetivo inicial do decreto foi regulamentar o Programa Nacional de Apoio à Cultura (Pronac) [2], instituído pela conhecida Lei Rouanet ( Lei Federal nº 8.313, de 1991) [3] que engloba três mecanismos de incentivo distintos e não colidentes: (1) o Fundo Nacional de Cultura (FNC), que representa o principal fundo federal de fomento direto à Cultura; (2) o Fundo de Investimento Cultural e Artístico (Ficart) que, embora já regulamentado, ainda carece de maior detalhamento e incentivos para se tornar mais “atrativo” e, por fim, (3) o mecenato, mecanismo de incentivo fiscal pelo qual a legislação é popularmente conhecida, através do qual pessoas físicas e jurídicas interessadas em financiar projetos culturais previamente aprovados, podem descontar do seu Imposto de Renda a totalidade ou parte do recurso investido.
Mas o Decreto 11.453/2023 foi muito além. Tratou da Lei Federal nº. 13.018 de 2014 [4] que instituiu a Política Nacional de Cultura Viva, fundamentada no dever constitucional do Estado de garantir a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional; e abordou ainda duas importantes legislações criadas durante o período crítico da pandemia e que representam, hoje, a concretização da esperança de sustentabilidade da cadeia criativa: a Lei Aldir Blanc e a Lei Paulo Gustavo. Uma dupla memorável e simbólica de todo esse processo.
Quanto às alterações e os direcionamentos estratégicos advindos e/ou reforçados através do novo decreto, merece destaque e gera alívio a regulação democrática e acessível dos editais e processos de seleção pública dos projetos. A imposição de requisitos, a exemplo da necessidade de linguagem simples e objetiva nesses editais, a inclusão de recursos de acessibilidade e a previsão da possibilidade de inscrição de projetos por meio da oralidade, simbolizam uma guinada emblemática na mudança de mentalidade rumo à ampla democratização de acesso.
Já no âmbito do mecenato, alvo das maiores polêmicas e debates acerca da Rouanet, o novo decreto trouxe, igualmente, gratas transformações. A primeira e mais importante delas é a retomada da Comissão Nacional de Incentivo à Cultura (CNC), colegiado de composição híbrida entre membros do poder público e representantes da sociedade civil, que teve suas funções severamente reduzidas durante a última gestão federal, mas que agora, felizmente, ressurge como uma fênix fortalecida com atribuições e prerrogativas consideravelmente ampliadas.
Outro aspecto que merece atenção é a almejada descentralização regional dos investimentos. Para minimizar a histórica concentração de recursos no eixo Rio-São Paulo, são propostas medidas de democratização, descentralização e regionalização do investimento cultural, com ações afirmativas e de acessibilidade que estimulem a ampliação do investimento nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, e em projetos de impacto social relevante.
Os parâmetros para a adoção de tais medidas ainda serão pormenorizados em ato próprio do Ministério da Cultura, mas o novo decreto já nos sinaliza que serão considerados os recortes de vulnerabilidade social e as especificidades territoriais, com adoção de sistemas de cotas, critérios diferenciados de pontuação e editais específicos voltados ao protagonismo de minorias. Ao sair do papel, essas diretrizes poderão, finalmente, promover um merecido sossego de críticas à Rouanet, nossa “Geni” da cultura, que mesmo recebendo pedradas ao longo desses anos, foi capaz de salvar não só algumas cidades, mas o país inteiro do completo apagão cultural.
Vale, por fim, destacar a ênfase sistemática na valorização da diversidade e da luta contra o preconceito. De acordo com o novo diploma legislativo, os mecanismos de fomento do país devem promover a diversidade cultural, a superação do patriarcado e a erradicação de todas as formas de preconceito. Um reflexo prático dessa linha de condução é a nítida preocupação legislativa com o respeito à laicidade do Estado. Sem dúvida, um respiro de normalidade.
Ampliação, democratização, descentralização, acessibilidade, respeito à diversidade e combate ao preconceito permeiam o novo decreto e marcam essa importante etapa no processo de reconstrução da cultura.
O próximo passo será o detalhamento dessas diretrizes através da nova Instrução Normativa com publicação prevista para os próximos 30 dias. A expectativa é que o poder público cumpra com os compromissos sinalizados neste decreto e que essas diretrizes que arrancaram aplausos emocionados no dia 23 de março de 2023, no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, se convertam em realidade, números, empregos, valores e vidas transformadas. E que, do lado de cá, como beneficiária direta, tenhamos uma sociedade aberta à revolução democrática, disposta a atuar em conjunto no combate ao preconceito e madura para lidar com a diversidade. Estaremos atentos, na espera pulsante também conhecida como “esperança” e na torcida sincera para que estejamos prontos.
Notas
[1] Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2023/decreto/D11453.htm
[3] Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8313cons.htm
[4] Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/lei/l13018.htm
Carol Bassin é advogada especializada em propriedade intelectual, legislação de incentivo e proteção autoral, com experiência de atuação no suporte jurídico e estratégico ao mercado de produção cultural, mídias digitais e negociações envolvendo licenciamento de direitos, consultora jurídica e business affair da agência Condé+ e membro efetivo da Comissão de Direitos Autorais, Direitos Imateriais e Entretenimento da OAB-RJ.