Cestari e Taparelli: Ações ajuizadas pela Fazenda e ‘tese do século’

Em novo capítulo da “tese do século”, a Fazenda Nacional corre para ajuizar dezenas ou até centenas de ações rescisórias em tentativa de revogar decisões judiciais definitivas que permitiram aos contribuintes o aproveitamento de quantias pretéritas do PIS e da Cofins. 

A discussão envolve as empresas que ajuizaram as suas ações após o Supremo Tribunal Federal ter decidido, em 15 de março de 2017, que o PIS e a Cofins não deveriam incidir sobre o ICMS. Nesse cenário, os processos dos contribuintes tramitaram no Poder Judiciário de forma célere e resultaram em decisões definitivas com trânsito em julgado favorável à recuperação dos recolhimentos realizados a maior, inclusive nas competências dos cinco anos anteriores aos seus ajuizamentos.

Ocorre que, mais adiante, em 13 de maio de 2021, a mesma Suprema Corte analisou os pedidos do Fisco contidos nos embargos de declaração protocolados no Recurso Extraordinário 574.706/PR e decidiu restringir os efeitos de sua decisão anterior para permitir a recuperação de valores recolhidos a maior de PIS e Cofins anteriormente a 15 de março de 2017 apenas às empresas que já tinham os seus processos ajuizados perante o Poder Judiciário, em nítida preocupação com o impacto aos cofres públicos.

O que se discute neste caso é se a Fazenda tem razão ao utilizar a ação rescisória para fazer valer a restrição temporal determinada pelo STF, de modo a reaver para o governo os valores aproveitados pelas empresas que seguiram estritamente o que restou decidido em suas ações próprias, transitadas em julgado no passado.

Entendemos que os fundamentos legais utilizados pela Fazenda Nacional  artigos 535 e 966 do Código de Processo Civil  não devem servir de apoio ao argumento rescisório do Fisco.

O Tribunal Regional Federal da Terceira Região tem seguido a tendência de afastar a aplicação do artigo 966 do CPC, mas confirmar a possibilidade de a Fazenda Nacional basear o seu pleito nos parágrafos 5º e 8º, do artigo 535 do mesmo código:

(…)

1. É tempestiva a ação rescisória, pois não decorrido o biênio legal, seja do trânsito em julgado do acórdão rescindendo, seja do trânsito em julgado da decisão proferida pela Suprema Corte no RE 574.706 para efeito do artigo 535, §8º, CPC.

2. Não procede a rescisória, com fundamento no artigo 966, V, CPC, pois inexistente violação manifesta de norma jurídica, consubstanciada na decisão vinculante da Suprema Corte sobre questão constitucional em julgamento com repercussão geral. Observado o teor da Súmula 343/STF e da tese jurídica vinculada ao Tema 136 (RE 590.809), resta claro que somente pode ser rescindida a coisa julgada, quando ao tempo da respectiva constituição, a decisão for colidente com jurisprudência incontroversa ou com orientação da Suprema Corte, não se aplicando, para efeito do artigo 966, V, CPC, interpretação ou entendimento da Suprema Corte superveniente à coisa julgada.

3. No caso, ao tempo da formação da coisa julgada, a declaração de inconstitucionalidade, no RE 574.706, não havia sido ainda modulada, o que somente ocorreu, posteriormente, no julgamento dos embargos de declaração. Portanto, no interregno entre 15/03/2017 (julgamento do RE 574.706) e 14/05/2021 (dia anterior ao julgamento dos embargos declaratórios) não havia controvérsia sobre a eficácia retroativa da inconstitucionalidade para efeito de permitir a rescisão da coisa julgada, nos termos do artigo 966, V, CPC.

4. A alteração superveniente da jurisprudência constitucional, fixando modulação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade, autoriza, porém, rescisão da coisa julgada, expressa em título executivo judicial, incompatível com o entendimento da Suprema Corte firmado em paradigma, nos termos do artigo 535, §§5º e 8º, CPC.

(…) 7. Ação rescisória julgada procedente em parte, com amparo no artigo 535, §§ 5º e 8º, CPC, para, em juízo rescindendo, desconstituir a coisa julgada e, em juízo rescisório, adequá-la, quanto ao indébito a ser ressarcido, à modulação temporal dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade (…)”. (TRF3R, 2ª Seção, desembargador Carlos Muta, Processo 5010515-18.2022.4.03.0000, julgado em 09/02/2023).

É de se discordar do entendimento do Tribunal a respeito da aplicabilidade dos parágrafos 5º e 8º do artigo 535, abaixo reproduzidos:

Artigo 535. A Fazenda Pública será intimada na pessoa de seu representante judicial, por carga, remessa ou meio eletrônico, para, querendo, no prazo de 30 dias e nos próprios autos, impugnar a execução, podendo arguir:

III – inexequibilidade do título ou inexigibilidade da obrigação;

§5º Para efeito do disposto no inciso III do caput deste artigo, considera-se também inexigível a obrigação reconhecida em título executivo judicial fundado em lei ou ato normativo considerado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, ou fundado em aplicação ou interpretação da lei ou do ato normativo tido pelo Supremo Tribunal Federal como incompatível com a Constituição Federal , em controle de constitucionalidade concentrado ou difuso.

§ 8º Se a decisão referida no §5º for proferida após o trânsito em julgado da decisão exequenda, caberá ação rescisória, cujo prazo será contado do trânsito em julgado da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal.”

A admissão da utilização da ação rescisória pela Fazenda Nacional nesta situação causa perplexidade, já que contraria a coisa julgada e atenta contra a Súmula 343 e teses dos Temas nº 881 e 885 do STF, bem como desconsidera o artigo 975 do CPC, ora destacados:

“Súmula nº 343/STF

Não cabe ação rescisória por ofensa a literal disposição de lei, quando a decisão rescindenda se tiver baseado em texto legal de interpretação controvertida nos tribunais.”

Temas 881 e 885 da Repercussão Geral — Tese fixada:

“1. As decisões do STF em controle incidental de constitucionalidade, anteriores à instituição do regime de repercussão geral, não impactam automaticamente a coisa julgada que se tenha formado, mesmo nas relações jurídicas tributárias de trato sucessivo.

2. Já as decisões proferidas em ação direta ou em sede de repercussão geral interrompem automaticamente os efeitos temporais das decisões transitadas em julgado nas referidas relações, respeitadas a irretroatividade, a anterioridade anual e a noventena ou a anterioridade nonagesimal, conforme a natureza do tributo.

 Artigo 975 do CPC. O direito à rescisão se extingue em dois anos contados do trânsito em julgado da última decisão proferida no processo.”

Parece-nos claro que os parágrafos 5º e 8º do artigo 535 não se prestam a dar fundamento à rescisão do direito ao aproveitamento completo de PIS e Cofins do passado em desfavor das empresas que foram agraciadas com decisões definitivas ocorridas anteriormente ao julgamento de modulação dos efeitos pela Corte Suprema, ainda mais se considerarmos que os próprios parágrafos 6º e 7º desse dispositivo processual prezam pela segurança jurídica das decisões proferidas pelos tribunais.

Nesse sentido, é possível encontrar votos favoráveis aos contribuintes do Desembargador Federal André Nabarrete:

 “(…) O acórdão rescindendo aplicou PRECISAMENTE o entendimento do Supremo Tribunal Federal fixado no julgamento do RE nº 574.706/PR, em seus exatos termos, para afastar a inclusão do ICMS da base de cálculo do PIS e da Cofins. Logo, nesse âmbito, não há desconformidade do título executivo judicial com o entendimento exarado pelo STF em controle difuso com repercussão geral reconhecida. Ainda que se entenda que a modulação de efeitos efetuada em sede de embargos declaratórios integrou, para todos os fins, a declaração de inconstitucionalidade contida no julgamento do RE nº 574.706/PR, a data do seu aperfeiçoamento é posterior ao trânsito em julgado do acórdão que se busca desconstituir. Incidiria, portanto, a posição adotada pelo STF no Tema 136, no sentido de que não cabe a ação rescisória quando o julgado estiver em harmonia com o entendimento firmado pelo seu Plenário à época da formalização do acórdão rescindendo, ainda que ocorra superação posterior do precedente.

Ademais, não houve decisão do Supremo Tribunal Federal acerca da constitucionalidade ou não da incidência da prescrição quinquenal nos casos em que o contribuinte ajuizou a ação competente após 15.03.2017. O que o STF fez ao julgar o ED em RE nº 574.706/PR foi estabelecer uma data a partir da qual a declaração de inconstitucionalidade da inclusão do ICMS na base de cálculo do PIS e da Cofins produziria seus efeitos temporais, ou seja, a chamada modulação, técnica que não se confunde com o controle de constitucionalidade de uma lei ou ato normativo, o que por si só afasta a incidência do §8º do artigo 535 ao caso concreto, eis que o único tópico submetido ao juízo de rescindibilidade pela parte autora da demanda desconstitutiva é justamente a modulação. (…) Assim, julgo improcedente o pedido de rescisão baseado no artigo 535, §§5º e 8º, do CPC. (…)”. (Voto divergente desembargador André Nabarrete, TRF3R, 2ª Seção, relator desembargador Marcelo Saraiva, Processo 5000730-32.2022.4.03.0000, julgado em 13/06/2023).

De qualquer forma, baseada em sua própria tese e no intuito de perseguir os contribuintes que já realizaram os seus aproveitamentos, semanalmente é possível verificar nos distribuidores da Justiça Federal inúmeras novas ações rescisórias ajuizadas, tendo em vista que o prazo de dois anos contado com base na decisão do STF em sede de modulação de efeitos encerra-se em 09/09/2023.

A contestação à tese da União é inevitável àquelas empresas que se encontram na situação abordada neste artigo, esperando que o STJ, mais adiante, julgue o assunto a seu favor, em respeito à segurança jurídica, direito de propriedade e legislação processual.

Fernando Cestari é advogado da Abe Advogados na área do Direito Tributário com ênfase no contencioso administrativo e judicial.

Gustavo Taparelli é sócio da Abe Advogados, especialista em Direito Tributário pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e membro da Câmara de Comércio e Indústria Japonesa do Brasil.

Consultor Júridico

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