Conselho de Sentença: o rol do artigo 478 do CPP é taxativo?

O artigo 478 do CPP proíbe expressamente que, durante os debates em plenário, as partes façam referência: “I – à decisão de pronúncia, às decisões posteriores que julgaram admissível a acusação ou à determinação do uso de algemas como argumento de autoridade que beneficiem ou prejudiquem o acusado; II – ao silêncio do acusado ou à ausência de interrogatório por falta de requerimento, em seu prejuízo”.

O escopo desse dispositivo legal é clarividente: evitar que a decisão do Conselho de Sentença se distancie do acervo probatório constante dos autos e se aproxime de referências meramente retóricas. Algumas questões, se trabalhadas como argumento de autoridade pelas partes, são capazes de desviar os jurados da cruzada probatória para um julgamento enviesado, influenciado por preconceitos e exclusivamente persuasórios.

Destarte, surge o questionamento sobre o qual circunda o ponto nodal do presente artigo: o intuito do legislador está plenamente satisfeito com as hipóteses previstas no artigo 478 do CPP, ou estamos diante de um rol meramente exemplificativo?

Para responder essa indagação, realizaremos um cotejo crítico entre o posicionamento dos tribunais superiores de que o rol do artigo 478 do CPP é exaustivo [1], e as balizas que, noutro norte, servem de sustentáculo para que a doutrina majoritária [2] adote entendimento oposto ao sufragado pela jurisprudência.

Primeiramente, parte-se da premissa de que até mesmo os juízes togados têm dificuldades de analisar o material probatório de forma neutra [3], pois a pré-compreensão que o magistrado tem a respeito dos fatos e das coisas influenciam, ainda que inconscientemente sua decisão [4].

No tribunal do júri, para além das convicções sociais, religiosas, políticas e culturais que naturalmente impactam a liberdade de convicção dos jurados, a ausência de conhecimento técnico-jurídico pode os tornar vulneráveis de serem cooptados por fatores exclusivamente persuasórios que, alheios ao caderno probatório, venham a ser utilizados como argumento de autoridades pelas partes durante os debates em plenário.

O legislador reconheceu expressamente que a referência à pronúncia, ou decisões posteriores que admitiram a acusação, como argumento de autoridade, são prejudiciais a um julgamento imparcial (artigo 487, inciso I, primeira parte do CPP). De fato, na ausência desta vedação legal, o órgão acusatório poderia facilmente envolver os jurados com o falacioso discurso de que o juiz, após a análise das provas na fase do judicium accusationis, jamais submeteria um inocente a julgamento popular.

Não se trata de esconder dos jurados as decisões judiciais, tanto que os julgadores leigos, além de terem acesso integral aos autos (CPP, artigo 480, §3º), também recebem uma cópia da pronúncia juntamente com o relatório do caso (CPP, artigo 472, parágrafo único). Outrossim, a acusação em plenário será pautada “nos limites da pronúncia ou das decisões posteriores que julgaram admissível a acusação” (CPP, artigo 476, caput).  Inexiste óbice para que as partes leiam a pronúncia, ou até mesmo sobre ela se manifestem, desde que o façam de forma objetiva e não argumentativa.

O cerne da questão é tão somente impedir que a pronúncia extrapole seu verdadeiro papel  mero juízo de admissibilidade da acusação, fulcrado na prova da materialidade delitiva e indícios de autoria ou participação do agente [5] e principal fonte dos quesitos , evitando que a sua utilização como argumento de autoridade influencie diretamente no veredicto popular.

O artigo 478 do CPP não tem o propósito de excluir provas do caderno processual, mas sim de vedar o uso de “determinada linha argumentativa” [6]. Tal qual a decisão de pronúncia, outras decisões judiciais, quando utilizadas como argumento de autoridade, também têm poder persuasivo no convencimento dos jurados. A título exemplificativo, cita-se a decretação da prisão cautelar, a sentença condenatória/absolutória proferida contra o corréu ou o acordão que anulou julgamento anterior sob o fundamentado de ser a decisão dos jurados manifestamente contrária à prova dos autos.

Em regra, os jurados não têm conhecimentos jurídicos para entender que uma prisão preventiva assentada em um juízo de periculosidade processual não se confunde com o juízo de culpabilidade acerca do fato que está sendo julgado. Por conseguinte, se a parte acusatória se refere ao decreto prisional como argumento de autoridade, mormente quando fundamentado na ordem pública, facilmente os jurados vão incutir a ideia de que o réu é culpado.

A possibilidade da acusação ou defesa se valerem, respectivamente, da condenação ou absolvição do corréu como argumento de autoridade também interfere no julgamento. A ênfase de que outra pessoa, em condições análogas ao réu, foi absolvida ou condenada em julgamento sobre o mesmo caso repercute na tomada de decisão dos jurados.

A referência, como argumento de autoridade, ao acordão  seja ele absolutório ou condenatório  que anulou julgamento anterior por entender o tribunal que a decisão dos jurados foi manifestamente contrária à prova dos autos é bastante problemática. Nos autos da Rcl 42.274-RS, a 3ª Seção do STJ decidiu que “diante de recurso de apelação com base no artigo 593, III, d, do CPP, é imprescindível que o Tribunal avalie a prova dos autos a fim perquirir se há algum elemento que ampare o decidido pelos jurados” [7].

Nessa toada, se as partes fizerem referência à cassação do júri anterior, como argumento de autoridade, os jurados podem ser ludibriados pela ideia de que o Conselho de Sentença responsável pelo julgamento passado proferiu veredicto equivocado, pois, do contrário, o órgão colegiado de segundo grau, após análise do acervo probatório, teria mantido a decisão soberana dos juízes leigos. A proibição expressa de nova anulação do julgamento com base nesse mesmo motivo (artigo 593, §3º do CPP) torna a questão ainda mais alarmante.

Partindo-se para as outras previsões do artigo, 478 do CPP, constata-se que a lei veda o uso de algemas, bem como o silêncio do acusado ou ausência de interrogatório, como argumento de autoridade. Assim, evita-se que os jurados sejam contaminados com falsos silogismos: só são algemados homens perigosos; o réu está algemado; logo, o réu é perigoso. Quem cala consente; o réu permaneceu em silêncio; logo, o réu é culpado.

Pensamos que, para além das hipóteses legais acima referidas, também existem outras questões que, se utilizadas como argumento de autoridade, reverenciam o “direito penal do autor” em detrimento do “direito penal do fato”. A título exemplificativo, citamos os antecedentes do acusado e a ausência do réu no dia do julgamento.

Conforme foi exposto na coluna da semana passada, entendemos que a referência aos antecedentes do acusado como argumento de autoridade impede que os jurados decidam o caso com a isenção necessária. Tampouco é compatível com a Constituição, violando os princípios da presunção da inocência, da plenitude de defesa, do contraditório e do devido processo legal.

Recentemente, em decisão monocrática nos autos do HC 226.259, o ministro Gilmar Mendes entendeu que, diante da taxatividade do artigo 478 do CPP, inexiste proibição para que o Ministério Público, em plenário do Júri, utilize, como argumento de autoridade, o fato de o réu estar foragido [8]. Não coadunamos com esse entendimento.

O fato de o réu estar foragido pode lhe acarretar consequências jurídicas, como a decretação da prisão preventiva, desde que presente os requisitos autorizadores previstos no artigo 312 do CPP, e a desnecessidade de intimação para os atos processuais. Contudo, essa circunstância não pode ser utilizada como argumento de autoridade pelas partes para direcionar o julgamento do caso concreto.

A partir do momento em que o órgão acusatório embute na cabeça dos jurados que “o réu fugiu para se esquivar da punição”, logicamente essa informação, até de forma inconsciente, pode influenciar na decisão do caso. Por outro lado, por idênticas razões, rechaçamos a possibilidade da defesa enaltecer que “o réu fugiu para evitar a ocorrência de uma injustiça, pois tem certeza de sua inocência”.

Todos os exemplos citados ao longo do presente artigo reclamam uma inflexão acerca do atual entendimento jurisprudencial de que o rol do artigo 478 é exaustivo. As vedações previstas nesse dispositivo legal não são suficientes, ao nosso ver, para evitar sugestionamentos (favoráveis ou desfavoráveis) ao julgamento popular do réu.

Ainda consoante a jurisprudência majoritária dos tribunais superiores, o reconhecimento de nulidade em decorrência do descumprimento do artigo, 478 do CPP demanda comprovação de prejuízo efetivo da defesa [9].  Pensamos ser inviável essa exigência, uma vez que a decisão do Conselho de Sentença não é fundamentada, e os jurados decidem conforme sua liberdade de valoração de todos os elementos trazidos em julgamento. Em última análise, em havendo condenação, o prejuízo resta absolutamente comprovado.

Em arremate, diante das circunstâncias inerentes ao julgamento popular, o rol do artigo 478 do CPP não é numerus clausus, e o seu descumprimento de maneira a viabilizar que os jurados tenham acesso às informações irrelevantes pelo aspecto probatório, enseja nulidade do julgamento, sendo patente o prejuízo da defesa.

 


[1] Nesse sentido: STJ, AgRg no HC 763.981/MS, relator ministro Sebastião Reis Júnior, Sexta Turma, julgado em 06/03/2023, DJe 10/03/2023; STF, HC 226.259/PA, relator ministro Gilmar Mendes, decisão monocrática em 19/06/2023, DJe 20/06/2023; STF, RHC 213.075 AgR/SC, Primeira Turma, relator ministro Cármen Lúcia, DJe 25.5.2022.

[2] Dentre outros, vide: PEREIRA E SILVA, Rodrigo Faucz; AVELAR, Daniel Ribeiro Surdi de. Manual do Tribunal do Júri. 2ª ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2023. p. 523-526.

[4] Sobre a tema, sugerimos “Vieses Da Justiça: Como As Heurísticas E Vieses Operam Nas Decisões Penais e a Atuação Contraintuitiva” de Paola Bianchi Wojciechowski e Alexandre Morais Da Rosa, bem como o livro O Cérebro que Julga: Neurociências para Juristas de Rosivaldo Toscano Jr., ambos da Editora Emais.

Gina Ribeiro Gonçalves Muniz é mestre em Ciência Jurídico Criminais pela Universidade de Coimbra e defensora pública do estado de Pernambuco.

Rodrigo Faucz Pereira e Silva é advogado criminalista, pós-doutor em Direito (UFPR), doutor pelo Programa Interdisciplinar em Neurociências (UFMG), mestre em Direito (UniBrasil) e coordenador da pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI.

Lisandra Panzoldo é bacharel em Direito pela Universidade São Judas Tadeu (USJT), estagiária da Defensoria Pública de São Paulo — Unidade Júri e autora do livro O Tribunal do Júri no Brasil e na Argentina. Estudo Comparado (publicado também na Argentina).

Denis Sampaio é defensor público, titular do 2º Tribunal do Júri do Rio de Janeiro, doutor em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Lisboa (Portugal), mestre em Ciências Criminais pela Ucam-RJ, investigador do Centro de Investigação em Direito Penal e Ciências Criminais da Faculdade de Lisboa, membro consultor da Comissão de Investigação Defensiva da OAB-RJ, membro honorário do Instituto dos Advogados Brasileiros, professor de Processo Penal e autor de livros e artigos.

Consultor Júridico

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