Entre o fim do ano passado e os primeiros meses deste ano, decisões contraditórias da Justiça Federal têm exposto a fragilidade das interpretações sobre a Lei da Anistia — aprovada em 1979, portanto no início do processo de transição da ditadura civil-militar para a democracia — e evidenciado a espécie de limbo jurídico em que apurações sobre crimes cometidos pelo regime estão imersas.
Se por um lado o Supremo Tribunal Federal já declarou a constitucionalidade da norma, por outro deixou de analisar sua compatibilidade com as convenções internacionais, o que deixa espaço aberto para interpretações divergentes. O cenário se complica com as condenações do Brasil nas cortes internacionais, que também servem de embasamento para decisões que extrapolam as previsões da Lei — e superam o entendimento do Supremo.
Os posicionamentos jogam luz novamente sobre a ação do Conselho Federal da OAB no STF (ADPF 153) que contesta o primeiro artigo da norma e está parada na corte há mais de uma década. O ministro Dias Toffoli é o relator do caso, e não há perspectiva de que ele seja colocado de novo em julgamento. Em suma, a OAB quer que o Supremo indique como os crimes de “caráter permanente” cometidos por militares na ditadura devem ser tratados e diferencie crimes políticos de crimes contra a humanidade.
A ação chegou a ser julgada improcedente pelo Plenário do STF em 2010, quando a maioria dos ministros votou pela compatibilidade da Lei da Anistia com a Constituição. Meses depois, entretanto, a Ordem apresentou recurso à decisão, que permanece sem apreciação. Nesse ínterim, a composição da corte mudou de forma significativa e o atual governo vai indicar dois novos nomes para integrá-la, tendo em vista as aposentadorias de Ricardo Lewandowski (já efetivada) e Rosa Weber (em outubro).
“A ADPF foi julgada em 2010 com a ideia de que era um momento de pacificação nacional, de enterrar essa ideia daqueles que queriam uma releitura do que aconteceu na ditadura. Mas, como se viu, esse acórdão não serviu para nada. Depois disso tivemos um período de ódio, e vimos aonde esse ódio chega. Então não houve pacificação, e agora temos uma espécie de limbo jurídico”, diz o advogado criminalista Belisário dos Santos Júnior, membro da Comissão Arns e da Comissão Internacional de Juristas.
A discussão também ganhou novos contornos por causa das condenações do Brasil na Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) devido às violações cometidas na ditadura, sendo os casos mais proeminentes o da guerrilha do Araguaia (2010) e o do jornalista Vladimir Herzog (2018). A jurisprudência da CIDH, que determinou que o país investigasse e punisse os crimes dos militares, embasou entendimentos na Justiça, e uma nova ADPF pedindo a revisão da lei foi protocolada pelo PSOL em 2014. A ação impetrada pelo partido também continua sem previsão de julgamento pelo Plenário.
Outro ponto que permanece em aberto há mais de 12 anos é a definição sobre o controle de convencionalidade — a verificação de compatibilidade entre a Constituição e os tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário, incluindo a Convenção Americana de Direitos Humanos. Esse é o ponto crucial do recurso apresentado pela OAB, que, caso julgado procedente, influenciará diretamente a responsabilização de agentes da ditadura.
“A Justiça brasileira tem um encontro marcado com as sentenças da CIDH em relação à ditadura. Vamos ter de decidir se será aplicado o controle de convencionalidade, se é uma ferramenta que vamos utilizar para punir esses crimes, ou se não vamos. Não há escapatória, a CIDH já deu seu veredicto”, afirma o juiz federal Pedro Pimenta Bossi.
O magistrado, que faz parte da Associação Juízes pela Democracia (AJD), instituição listada como amicus curiae na ADPF 153, elaborou dissertação de mestrado sobre a Lei da Anistia e, após filtrar os dados do Ministério Público Federal, chegou à conclusão de que oito em cada dez denúncias formuladas na Justiça Federal contra militares da ditadura são rejeitadas. Dois argumentos prevalecem para isentar os acusados: a Lei da Anistia e a suposta prescrição dos crimes.
Foram analisadas 54 decisões da Justiça Federal, e a pesquisa constatou que em 79,63% dos casos os magistrados não seguiram o que foi estipulado pelas condenações do Brasil na CIDH.
‘Inércia do STF’
Em um dos casos recentes em que a Lei da Anistia foi parcialmente contornada pelas condenações internacionais, a Justiça Federal do Rio de Janeiro utilizou justamente o argumento das sentenças condenatórias da CIDH para indeferir um pedido de arquivamento de investigações de tortura e outros crimes cometidos no âmbito da Operação Condor durante a ditadura.
Segundo o juiz federal Frederico Montedonio Rego, “é possível que uma norma não viole a Constituição, mas contrarie a Convenção Interamericana de Direitos Humanos, sendo, assim, inválida”.
O pedido foi feito pelo Ministério Público Federal no Rio. Com o indeferimento, o processo retornou à 2ª Câmara de Coordenação e Revisão do MPF, que pediu novamente o arquivamento, acatado pelo juízo no fim de fevereiro deste ano. O órgão alega que ainda não houve julgamento por parte do STF sobre a declaração de invalidade da Lei da Anistia. Outras duas ações que investigam crimes de agentes públicos na ditadura também tiveram o mesmo destino e as apurações estão paradas.
O limbo jurídico, impulsionado pela morosidade das definições do Supremo, ficou evidente nesses casos, posto que tanto o MPF no Rio quanto a própria Procuradoria-Geral da República, em parecer apresentado ao STJ em novembro do ano passado, defenderam a inaplicabilidade da Lei da Anistia para crimes contra a humanidade. O texto cita as condenações da CIDH e é assinado pelo subprocurador-geral da República Mario Luiz Bonsaglia.
O STF também já reconheceu que tratados internacionais têm eficácia legal no país e podem prevalecer em casos de conflito com a Constituição, mas essa posição não é seguida necessariamente pelos tribunais.
“São casos específicos em que os tribunais buscaram contornar a inércia do STF em relação ao pedido da OAB. Pelo fato de não existir uma decisão final, juízes e desembargadores precisam se apoiar em legislações e convenções internacionais que tratem do tema. Isso não acontece no Direito Criminal cotidiano”, diz a advogada criminal Daniela Micheloni Woisky, do escritório Bialski Advogados Associados.
Woisky explica ainda que outro objetivo das ADPFs que tramitam no Supremo é tornar mais claro o primeiro artigo da Lei da Anistia, que é omisso e nebuloso. “A OAB impôs esses embargos para que a Corte Suprema indique melhor o que seriam crimes políticos e quais seriam conexos. Tortura e morte de pessoas são crimes contra a humanidade ou fazem parte deste âmbito político?”, questiona ela.
Casa da Morte
No fim do mês passado, desembargadores da 1ª Turma Especializada do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF-2) colocaram mais um ingrediente na discussão ao derrubarem uma decisão de primeira instância que absolveu sumariamente o sargento reformado Antônio Waneir Pinheiro Lima, o Camarão, acusado de crimes como sequestro e estupro na chamada Casa da Morte de Petrópolis (RJ).
O local funcionou como um órgão clandestino de tortura do Exército brasileiro durante o regime, e o caso versa sobre crimes contra a militante Inês Etienne Romeu, considerada a única sobrevivente do aparelho.
Nesse caso, os magistrados deram provimento a um recurso do MPF que apontou que a conduta de Camarão não pode ser abarcada pela Lei da Anistia, que a jurisprudência da CIDH deve ser seguida e a ação penal deve prosseguir. Camarão voltou à condição de réu que havia sido estipulada pelo próprio TRF-2 em 2019, antes de a defesa impetrar recurso e conseguir a absolvição no primeiro grau. O caso é icônico porque foi a primeira vez que um militar se tornou réu por estupro na ditadura.
À época, e também no acórdão que anulou a decisão de primeira instância, o argumento foi semelhante: para a maioria dos desembargadores, “os crimes contra a humanidade são imprescritíveis e inanistiáveis”, e são inaplicáveis os dispositivos da Lei da Anistia que impedem a “persecução penal de acusados de prática de crimes contra a humanidade”.
As ADPFs que estão paradas no Supremo podem também sanar um outro impasse, segundo Santos Júnior. Para ele, há diferença entre julgamentos de sobreviventes (ou de pessoas cujos corpos foram identificados) e de desaparecidos políticos. Neste último caso, caracteriza-se o crime permanente, e o Supremo poderia determinar, de uma vez por todas, como a Justiça deve proceder nessas situações. No caso de Inês Romeu, o fato de ela ter sobrevivido e prestado depoimento influenciou no recebimento da denúncia contra os militares.
O vácuo deixado pela falta de uma decisão reverbera em sinais trocados da Justiça. O mesmo Camarão foi denunciado pelos crimes de sequestro e tortura contra Paulo de Tarso Celestino na mesma JFRJ, e o juiz federal de primeira instância Alcir Luiz Lopes Coelho rejeitou o pedido com base na Lei da Anistia. Nesse caso, como Celestino é considerado desaparecido, há mais abertura para a interpretação do juiz e, consequentemente, para não punir os militares.
Dizem as últimas linhas da decisão do magistrado: “Como escreveu Olavo de Carvalho, ninguém é contra os ‘direitos humanos’, desde que sejam direitos humanos de verdade, compartilhados por todos os membros da sociedade, e não meros pretextos para dar vantagens a minorias selecionadas que servem aos interesses globalistas”.
O MPF no Rio recorreu da decisão e o processo segue na 1ª Vara Federal de Petrópolis.
“Juízes e juízas às vezes têm medo de lidar com esses casos, não é um medo explícito, mas um medo sutil. Por outro lado, é difícil para as vítimas lerem essas decisões. Na minha pesquisa, me foi reportado que é quase reviver a dor da ditadura, mas de uma maneira diferente, com total desdém e insensibilidade”, sentencia Bossi.
ADPF 153
ADPF 320
Ação Penal 0170716-17.2016.4.02.5106
Ação Penal 5001249-13.2020.4.02.5106