A questão que envolve a relação de consumo nos eventos desportivos é cercada de polêmica, tanto no âmbito doutrinário quanto em relação à jurisprudência.
O Estatuto de Defesa do Torcedor (Lei nº 10.671/2003) foi revogado pela Lei nº 14.597/23, a nova Lei Geral do Esporte (LGE), no dia 15/06/2023, que incorporou todas as diretrizes relacionadas as relações de consumo nos eventos desportivos, além de trazer novas previsões. De acordo com o artigo 142, parágrafo 1º da LGE, considera-se consumidor o espectador do evento desportivo, seja ele torcedor ou não, que tenha adquirido o direito de ingressar no local onde se realiza o referido evento.
Para efeitos do que dispõe o Código de Defesa do Consumidor, considera-se fornecedora a organização desportiva responsável pela organização da competição em conjunto com a organização desportiva detentora do mando de campo, se pertinente, ou alternativamente, as duas organizações desportivas competidoras, bem como as demais pessoas naturais ou jurídicas que detenham direitos de realização da prova ou partida.
A partir da Constituição Federal de 1988 os direitos do consumidor ganharam notoriedade e passaram a ser respeitados. Trata-se de uma evolução do patamar mínimo civilizatório.
O diploma legal estabelece um rol detalhado de direitos do espectador. Em relação aos ingressos, os mesmos devem ser disponibilizados para venda até 48 horas antes do início da partida. A venda deve ser conduzida por meio de um sistema ágil que ofereça ampla acessibilidade à informação.
Cada ingresso deve possuir um número de identificação, correspondente ao assento ocupado pelo espectador. Essa numeração é particularmente relevante, exceto em casos em que haja possibilidade de assistência em pé, devidamente assegurada.
A comercialização dos ingressos deve ocorrer em, pelo menos, 5 postos de venda distribuídos em diferentes distritos da cidade. No entanto, essa exigência pode ser suprida pela venda online. Para evitar falsificações e fraudes, é responsabilidade dos “fornecedores” implementar um sistema de segurança eficaz.
Em eventos nos quais a presença de público exceda 20.000 pessoas, a emissão de ingressos deve ser realizada de forma eletrônica, o que viabiliza a fiscalização e o controle tanto do público presente quanto do fluxo financeiro associado. Um aspecto fundamental é a inclusão do preço pago pelo espectador no ingresso, garantindo assim seu direito à informação sobre o valor desembolsado.
Vale ressaltar que é estritamente proibida qualquer discrepância na cobrança de ingressos entre o time da casa e o time adversário. Caso tal disparidade ocorra, podem ser aplicadas sanções pela Justiça Desportiva.
No que diz respeito à higiene e à alimentação, o espectador possui o direito de contar com instalações físicas de qualidade e higiene nas arenas esportivas, assim como a garantia de que os produtos alimentícios vendidos no local atendam a padrões adequados. Cabe ao poder público, por meio de suas autoridades de vigilância sanitária, assegurar que essas condições sejam cumpridas.
Qualquer tentativa de estabelecer preços excessivos ou de aumentar injustificadamente os valores dos produtos alimentícios comercializados no ambiente do evento esportivo é estritamente proibida. É ainda um direito assegurado ao espectador que as arenas esportivas disponham de uma quantidade de sanitários compatível com a capacidade de público, mantidos em condições de limpeza e funcionamento adequadas.
No tocante à segurança e ao transporte público, a garantida a segurança nos locais onde ocorrem os eventos esportivos é um direito que assiste ao espectador. Isso inclui a acessibilidade adequada para espectadores com deficiência ou mobilidade reduzida.
Os organizadores da competição devem submeter, previamente à realização do evento, os laudos técnicos emitidos pelos órgãos e autoridades responsáveis pela avaliação das condições de segurança das arenas esportivas que serão utilizadas. Esses documentos devem ser apresentados à Autoridade Nacional para Prevenção e Combate à Violência e à Discriminação no Esporte (Anesporte) e aos Ministérios Públicos dos Estados e do Distrito Federal. Tais laudos devem certificar tanto a capacidade real de público das arenas esportivas quanto suas condições de segurança.
Na hipótese de a organização desportiva colocar à venda número de ingressos maior do que a capacidade da arena comportar, disponibilizar locais de acesso em número inferior ao recomendado, ou permitir o acesso de pessoas em número maior do que a capacidade de público, ficará impedida de competir em arenas desportivas do mesmo município de sua sede e na respectiva região metropolitana, por até 6 meses, sem prejuízo das “demais sanções cabíveis”.
O artigo 148 da Lei nº 14.597/23 está dissociado da realidade brasileira, tendo em vista que determina que o controle e a fiscalização do acesso do público a arena desportiva com capacidade para mais de 20 mil pessoas deverão contar com meio de monitoramento por imagem das catracas e com identificação biométrica dos espectadores, assim como deverá haver central técnica de informações, com infraestrutura suficiente para viabilizar o monitoramento por imagem do público presente e o cadastramento biométrico dos espectadores, sendo que tal medida deverá ser implementada até 14/6/2025.
No que diz respeito a responsabilidade pela segurança do espectador em evento desportivo, a LGE estabelece uma série de obrigações atribuídas à organização esportiva diretamente responsável pela realização do evento e de seus dirigentes, que deverão solicitar ao poder público competente a presença de agentes públicos de segurança, devidamente identificados, responsáveis pela segurança dos espectadores dentro e fora dos estádios e dos demais locais de realização dos eventos.
Além disso, os responsáveis deverão informar imediatamente após a decisão acerca da realização da partida, entre outros, aos órgãos públicos de segurança, de transporte e de higiene os dados necessários à segurança do evento.
Os organizadores do evento deverão disponibilizar um médico e dois profissionais de enfermagem, devidamente registrados nos respectivos conselhos profissionais, para cada 10 mil torcedores presentes ao evento, bem como comunicar previamente à autoridade de saúde a realização do evento.
Por fim, a organização desportiva e os dirigentes responsáveis pela organização do evento deverão colocar à disposição do espectador orientadores e serviço de atendimento para que ele encaminhe suas reclamações no momento do evento, em local amplamente divulgado e de fácil acesso, especialmente pela internet; e situado na arena. As reclamações deverão ser solucionadas imediatamente, sempre que possível, bem como deverão ser reportadas ao ouvidor da competição, e, nos casos relacionados à violação de direitos e interesses de consumidores, aos órgãos de proteção e defesa do consumidor.
A LGE também é clara afirmar que o detentor do direito de arena ou similar deverá disponibilizar uma ambulância para cada 10 mil torcedores presentes ao evento.
As obrigações da organização desportiva responsável pela organização da competição não para por aí, tendo em vista que esta deverá confirmar, com até 48 horas de antecedência, o horário e o local da realização das provas ou das partidas para as quais a definição das equipes dependa de resultado anterior, bem como contratar seguro de acidentes pessoais, cujo beneficiário será o espectador portador de ingresso, válido a partir do momento em que ingressar no estádio.
Há também a necessidade de se implementar (e divulgar na internet) planos de ação referentes a segurança, transporte e contingência durante a realização dos eventos quando houver público superior a 20 mil pessoas, sendo que estes planos deverão ser elaborados pela organização desportiva responsável pela competição, com a participação das organizações desportivas que a disputarão e dos órgãos das localidades em que se realizarão as partidas responsáveis pela segurança pública, pelo transporte e por eventuais contingências.
O artigo 152 da LGE traz a figura da responsabilidade objetiva, na medida em que estipula que as organizações desportivas regionais responsáveis diretamente pela prova ou da partida, bem como seus dirigentes, responderão solidariamente com as organizações desportivas que disputarão a prova ou a partida e seus dirigentes, independentemente de culpa, pelos prejuízos causados ao espectador decorrentes de falhas de segurança nos estádios ou da inobservância das determinações mencionadas.
Os direitos do espectador são garantidos por lei, no entanto, para garantir a permanência do espectador nas arenas desportivas, é crucial que ele siga as diretrizes estabelecidas para tal propósito.
Uma das condições primordiais é a posse de um ingresso válido. Ademais, é expressamente proibido trazer consigo materiais que possam ser utilizados para atividades violentas. No que tange à segurança, é mandatório aceitar a submissão a revistas pessoais, e é vedado carregar ou exibir itens como cartazes, bandeiras e símbolos que contenham mensagens ofensivas, bem como entoar cânticos que denigram a dignidade humana, incluindo manifestações de caráter racista, homofóbico, sexista ou xenófobo.
A proibição de arremessar objetos no recinto esportivo é crucial para a segurança de todos os presentes, assim como a proibição do uso de fogos de artifício e materiais pirotécnicos. Igualmente, atos violentos de qualquer natureza não devem ser instigados ou praticados nas instalações esportivas.
A invasão da área restrita aos competidores, assim como sua incitação, é estritamente proibida, e a presença no estádio sob o efeito de álcool ou drogas também não é permitida.
O uso inadequado de bandeiras, mesmo sem mastro, com objetivos que não sejam de caráter festivo e amigável, também é vedado. Além disso, para espectadores com idade superior a 16 anos, é necessário estar cadastrado no sistema de controle biométrico.
É importante ressaltar que o não cumprimento dessas diretrizes pode resultar na impossibilidade de acesso ou na remoção imediata do espectador do local. Adicionalmente, sanções administrativas, civis ou penais podem ser aplicadas.
Os artigos 142 a 158 da LGE demonstram que apesar da obrigatoriedade imposta às organizações desportivas e aos seus dirigentes, o texto legal não estabelece uma sanção para os responsáveis que deixam de observar as referidas determinações, o que é de se lamentar, pois, como já alertava o saudoso amigo e professor Álvaro Melo Filho, “norma sem sanção é mera sugestão”.
Tendo em vista o imperativo legal no tocante as obrigações impostas, os responsáveis que descumprissem tal norma deveriam ser condenados a pagar uma indenização a ser revertida para entidades de proteção ao consumidor, até mesmo em razão da disposição contida no artigo 247 do CCB.
Entretanto, a LGE não estabelece uma sanção para o descumprimento das obrigações previstas, razão pela qual a Jurisprudência tem entendido que, nesses casos, não cabe indenização quando não ocorrer nenhum dano efetivo.
Com efeito, o ressarcimento de dano gerado por ato ilícito tem supedâneo nos seguintes requisitos: “Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência, ou imprudência, violar direito, ou causar prejuízo a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”.
O prejuízo, seja ele material ou moral é um dos componentes do ato ilícito, conforme ensinamentos de Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho, sendo que os referidos autores afirmam que “na responsabilidade civil, o agente que cometeu o ilícito tem a obrigação de reparar o dano patrimonial ou moral causado, buscando restaurar o status quo ante, obrigação esta que, se não for mais possível é convertida no pagamento de uma indenização”.
Ao discorrer acerca da responsabilidade moral e da responsabilidade jurídica, José de Aguiar Dias afirma ser indispensável para a segunda a ocorrência do dano, enquanto que para a primeira não é necessária a existência de um prejuízo, pois segundo seu entendimento, “não se cogita da responsabilidade jurídica enquanto não há um prejuízo”, enquanto que a responsabilidade moral “se confina no problema do pecado. O homem se sente moralmente responsável perante Deus ou perante sua consciência (…) Não se cogita, pois, de saber se houve, ou não, prejuízo, porque um simples pensamento induz essa espécie de responsabilidade, terreno que escapa aos campos do direito”.
Portanto, um dos pressupostos para a caracterização da responsabilidade civil é a ocorrência do dano. Sem este elemento, não há o dever de indenizar.
Neste sentido cabe destacar a ementa de decisão do Tribunal Superior do Trabalho, proferida pela Ministra Maria de Assis Calsing, que ao julgar o Recurso de Revista nº 38100-70.2005.5.04.0015, que tratava de seguro de atleta, foi categórica ao afirmar que “De acordo com o caput do art. 45 da Lei n.º 9615/98 (Lei Pelé), é obrigatória a contratação de seguro de acidentes de trabalho, por parte das entidades de prática desportiva, em favor dos atletas profissionais que lhe prestam serviço, não havendo, no entanto, previsão de pagamento de indenização pela não contratação do referido seguro. Inexistindo cláusula penal que disponha sobre o descumprimento da obrigação de contratar o seguro em questão, e tendo em vista a constatação, por parte do Regional, de que o Autor não sofreu prejuízos, pois recebeu todos os salários, teve as despesas médicas quitadas, e se recuperou das lesões sofridas, havendo notícia de que continuou trabalhando normalmente, devem ser mantidas as decisões anteriores que rejeitaram o pedido de pagamento de indenização ora discutido”.
Desta forma, o legislador deveria ter sido mais enérgico e estabelecer sanções contundentes para o descumprimento de cada obrigação imposta aos organizadores dos eventos desportivos e os seus dirigentes, não havendo, a simples inobservância de regras de segurança, transporte, alimentação e higiene, em desobediência aos direitos do espectador, não justifica a condenação dos organizadores e seus dirigentes no pagamento de indenizações.
Todavia, será a possível a adoção de sanções disciplinares por parte da Justiça Desportiva após o regular e devido processo legal para apurar os descumprimentos previstos na legislação.
Mauricio Corrêa da Veiga é advogado no Brasil e em Portugal, mestre em Ciências Jurídicas (UAL), professor a contrato do Master Diritto & Sport da Universidade La Sapienza (Roma), presidente da Comissão de Direito Desportivo do IAB, vice-presidente de Relações Internacionais da Academia Nacional de Direito Desportivo (ANDD-Brasil) e sócio do escritório Corrêa da Veiga Advogados.