Não tem sido raro encontrar Processo Administrativo Disciplinar (PAD) instaurado sem a exposição nítida sobre a materialidade dos fatos que dão causa à apuração da responsabilidade funcional de servidor público.
Longe de ser uma eventualidade, essa prática conta com amplo apoio teórico. A CGU (Controladoria Geral da União), por exemplo, tece a seguinte orientação sobre o tema:
A indicação de que contra o servidor paira uma acusação é formulada pela comissão na notificação para que ele acompanhe o processo como acusado. Já a descrição da materialidade do fato e o enquadramento legal da irregularidade (se for o caso) são feitos pela comissão em momento posterior, somente ao final da instrução contraditória, com a indiciação [1].
São comuns decisões judiciais que consideram adequada tal situação, sob a compreensão de que a acusação propriamente dita apenas precisaria estar formulada no Termo de Indiciação, que ocorre em fase avançada do PAD.
A intenção deste breve artigo é demonstrar que as garantias constitucionais da ampla defesa e do contraditório [2] demandam, desde o início do PAD, uma boa descrição sobre a materialidade dos fatos e das razões para atribuir a autoria de ato ilícito a determinado servidor.
O interesse prático deste tema se dá principalmente para casos mais complexos, que demandam investigação para compreender a mecânica dos eventos, os pontos críticos para a formação da ilicitude e a possível autoria. Como exemplo, citem-se falhas na execução de contratos administrativos, situação que costuma envolver vários atos encadeados e diferentes agentes públicos.
No contexto acima descrito, muitas vezes o acusado se depara com um quadro que dificulta ou mesmo inviabiliza o exercício de sua defesa, no qual se verificam as seguintes condições: 1) descrição genérica sobre possíveis irregularidades (por exemplo pagamentos indevidos em determinado contrato sem especificação de datas ou valores); 2) arrolamento, como acusados, de todos os servidores que participavam de alguma forma daquele tipo de procedimento — e em certos casos também de todas as autoridades superiores, mesmo que não tenham proferido qualquer ato próprio relacionado aos eventos; 3) inexistência de esclarecimentos sobre o porquê de cada agente constar como acusado.
Observa-se, nesses casos, que a fase probatória do PAD é indevidamente utilizada para apurar os indícios básicos quanto à própria materialidade do fatos, como também quanto à autoria de eventuais atos ilícitos (sem qualquer tipificação esboçada).
Vejamos, a seguir, os motivos pelos quais se faz necessário alterar essa realidade. Para auxiliar a presente análise serão utilizadas, como referência, as normas contidas na Lei Federal nº 8.112/90.
O Estatuto dos Servidores Públicos Federais define o Processo Administrativo Disciplinar (PAD) como “o instrumento destinado a apurar responsabilidade de servidor por infração praticada no exercício de suas atribuições, ou que tenha relação com as atribuições do cargo em que se encontre investido” [3].
Note-se que o preceito legal refere-se à apuração da responsabilidade do servidor por infração, o que sugere estar-se um passo à frente da apuração quanto à materialidade do evento apto a caracterizar infração funcional e/ou quanto à possível autoria.
Com efeito, a referência direta à responsabilidade do servidor indica que a busca se volta principalmente para examinar a presença dos elementos objetivos e subjetivos exigidos para configurar o ato ilícito decorrente de sua conduta.
Cabe também destacar que a mesma Lei Federal nº 8.112/90 confere a possibilidade de ser instaurada a sindicância, que vem a ser procedimento preparatório para o PAD [4].
Não houve um cuidado sistemático para disciplinar a sindicância naquele Diploma Legal, e como se sabe, nossa jurisprudência vedou o uso desse procedimento para aplicação de qualquer pena administrativa para o servidor, uma vez que nele não são assegurados o contraditório e a ampla defesa. Mesmo assim, o texto legal serve para revelar que da sindicância já deve restar definida a (potencial) infração.
O artigo 146 da citada Lei Federal, por exemplo, prevê o seguinte:
“Artigo 146. Sempre que o ilícito praticado pelo servidor ensejar a imposição de penalidade de suspensão por mais de 30 dias, de demissão, cassação de aposentadoria ou disponibilidade, ou destituição de cargo em comissão, será obrigatória a instauração de processo disciplinar.”
Ressalvando, mais uma vez, que a punição estatutária requer a instauração do PAD, o que se pretende destacar neste momento é o seguinte: o esperado é que, caso a sindicância conclua pela (possível) ilicitude, o relatório indique o “ilícito praticado”.
Tal situação é reiterada no artigo 154, parágrafo único do Estatuto Federal, a prever o envio, ao Ministério Público, do relatório de sindicância que concluir que a infração está capitulada como ilícito penal.
Os dispositivos citados apontam que a sindicância precisa atingir um nível avançado quanto à apuração sobre a autoria e a materialidade, alcançando inclusive a tipificação do ato ilícito dentro do rol de infrações estatutárias.
É interessante observar ainda que a própria Instrução Normativa CGU nº 14/2018 determina que a Sindicância Investigativa (Sinve) é o instrumento apropriado para colher os indícios de autoria ou materialidade que permitam atingir o nível adequado para instauração “de procedimento disciplinar acusatório” [5].
A fim de cumprir esses desígnios, a sindicância deverá concluir de modo assertivo — certo ou errado é outra história — quanto à infração atribuída ao servidor.
A interpretação sistemática da legislação federal demonstra que o ponto final da sindicância deve ser o ponto de partida do PAD. Se os elementos básicos para uma acusação formal já forem conhecidos sem sindicância, esta se torna desnecessária. Por outro lado, a instauração do PAD não poderá ocorrer sem que existam os elementos necessários para formular acusação mais direta e específica.
Ainda mais importante para essa conclusão, é o fato de não haver dúvida, na doutrina e na jurisprudência, de que estamos aqui tratando de processo acusatório já no seu nascedouro. Natural, portanto, que exista, desde sempre, a imputação de, pelo menos, uma prática ilícita a, no mínimo, um servidor.
Por isso mesmo, a lei federal assegura a ampla defesa e o contraditório durante toda a fase do PAD denominada inquérito administrativo, que vem a ser aquela voltada à instrução, defesa e relatório [6].
Nela haverá uma etapa voltada à produção de provas. O texto legal é expresso no sentido de que a Comissão Disciplinar promoverá a tomada de depoimentos, acareações, investigações e diligências cabíveis [7].
Desta forma, não se deve esperar que a acusação nasça com todos os detalhes, que nada mais possa ser acrescentado até o fim do PAD. Por certo, a apuração da responsabilidade do servidor é capaz de lançar novas luzes sobre a mecânica dos fatos, os ilícitos praticados e a autoria.
O desenho tende mesmo a ficar melhor definido e certamente mais detalhado e colorido após a fase probatória, mas a Comissão Disciplinar precisa partir de um esboço inicial com formas minimamente claras. Do contrário, será cerceado ou mesmo inviabilizado o direito à produção de provas pelo servidor.
O Estatuto dos Servidores Públicos Federais não ignora inclusive a prerrogativa de o acusado participar ativamente dessa etapa, ao afirmar com todas as letras que “é assegurado ao servidor o direito de acompanhar o processo pessoalmente ou por intermédio de procurador, arrolar e reinquirir testemunhas, produzir provas e contraprovas e formular quesitos, quando se tratar de prova pericial” [8]
Ocorre que para a defesa ser verdadeiramente exercida nesses atos, é fundamental haver acusação clara e formal, o que denota, a nosso sentir, a descrição da conduta faltosa praticada e também sua tipificação legal. Acusação vaga e imprecisa, não é acusação no Estado democrático de Direito.
Não há como produzir provas se a acusação é inespecífica ou obscura. Que documentos precisarão ser juntados e quais testemunhas deverão ser arroladas, sob a ótica da defesa, quando não se sabe qual é a imputação formulada, ou seja, quando não há conduta específica atribuída ao servidor público apta a caracterizar sua falta?
Por tudo isso, não se pode deslocar para o Termo de Indiciação o momento para formular a descrição da materialidade dos fatos e da conduta específica do servidor.
Parece estar esquecido nesta praxe ainda hoje verificada, o fato de que não haverá mais produção de provas após o indiciamento. O máximo que poderá ser feito dali em diante é a apresentação de uma peça de defesa por escrito, no prazo de dez dias corridos.
Definitivamente, não se coaduna com o Estado democrático de Direito um processo acusatório no qual a acusação propriamente dita seja feita quando o acusado já não poderá mais requerer provas.
Vale notar ainda que em outros processos administrativos sancionadores observa-se entendimento praticamente consensual de ser imprescindível, no momento inaugural, a descrição (ainda que sucinta) da conduta irregular, inclusive com a respectiva tipificação legal. Com efeito, existe, em regra, um olhar cuidadoso sobre o conteúdo mínimo dos autos de infração e dos seus atos preparatórios, cuidado esse que, com as devidas adaptações, merece ser lançado à fase inicial do PAD.
Importa sublinhar aqui o entendimento de que, a rigor, a acusação inicial deve conter inclusive a tipificação da conduta infracional.
A exigência acima aumenta a possibilidade de mudança entre os termos da acusação formulada na abertura do PAD e aqueles que serão lavrados no Termo de Indiciação. Com isso, tende a alimentar o sentimento de insegurança e, quando concretizada, impõe cuidados especiais que darão certa complexidade à condução do processo [9]. Todavia, essas ocorrências, se não são ideais, representam um mal menor.
Isto porque as lacunas hoje vistas na fase inaugural de muitos PADs representam insegurança ainda maior, haja vista que a acusação se faz de modo nebuloso, o que amplia exponencialmente a mutabilidade.
A obscuridade inicial, vale ainda dizer, torna mais difícil o trabalho da Comissão Processante e entra em linha de confronto com o princípio da eficiência — não é raro que processos assim durem anos a fio. E para a preocupação central deste artigo cabe assinalar que se constitui como verdadeiro obstáculo para defesa do acusado.
Não se perca de vista que a mesma margem de mudança entre a acusação inicial e a conclusão do processo é verificada no Direito Penal e em diversos processos administrativos sancionadores, não devendo ser tratado como algo esdrúxulo ou inaceitável no instrumento objeto de nossa análise.
Note-se que as afirmações foram lançadas neste artigo sem ignorar a previsão legal no sentido de que, após tipificada a infração disciplinar, será formulada a indiciação do servidor (artigo 161 caput da LF 8.112/90).
O enunciado legal até daria ensejo para o entendimento de que, a contrário senso, estaria dispensada a tipificação da conduta antes do Termo de Indiciação.
Todavia, afora os limites da interpretação literal, é necessário, antes de tudo, compatibilizar a norma estatutária com nosso Direito Constitucional. E aí, cumpre lembrar que as garantias da ampla defesa e do contraditório somente poderão ser exercidas na fase probatória se houver uma conduta tipificada.
Mais que isso, cumpre lembrar que há um preço a se pagar para que todo cidadão viva verdadeiramente em um Estado democrático de Direito. Frise-se que o preço aqui é apenas o de atribuir, à fase que antecede o PAD, um esforço mínimo de investigação, que por sinal será benfazejo à própria apuração a ser promovida naquele feito, por diminuir o risco de se vivenciar um desgastante zigue-zague processual.
Para demover qualquer espanto que possa advir das afirmações acima lançadas, calha aqui perguntar: que outro processo administrativo sancionador prevê que as provas sejam produzidas antes de ocorrer a tipificação legal do ato ilícito? Por qual razão seria diferente no PAD? O direito de defesa do servidor é de segunda categoria ou mais limitado do que aquele reconhecido aos demais acusados em processo administrativo?
Também não se desconhece a Súmula 641 do STJ, muito utilizada em decisões judiciais sobre o tema, cujo enunciado é o seguinte: “a portaria de instauração do processo administrativo disciplinar prescinde da exposição detalhada dos fatos a serem apurados”.
Como se vê, a Súmula 641 dispensa a exposição detalhada dos fatos a serem apurados, mas não dispensa a exposição dos fatos a serem apurados. E se refere mais especificamente à Portaria de Instauração, a qual deve realmente ser sucinta.
O foco deste artigo não está centrado na Portaria de Instauração propriamente dita, mas na fase de abertura do PAD.
A Portaria pode estar — e normalmente está — amparada em algum relatório prévio (ou mesmo um relato minimamente circunstanciado), que servirá como fundamento para a decisão de instauração do PAD. Esses documentos deverão conter os elementos mínimos de uma acusação, os quais não precisam constar da Portaria.
Pelos motivos expostos, faz-se necessário rever com urgência o tratamento que vem sendo conferido aos acusados em diversos PADs. É essencial que o ato de instauração esteja fundamentado em uma acusação com todos os seus elementos básicos, quais sejam: 1) boa descrição sobre materialidade dos fatos; 2) especificação da conduta praticada pelo servidor que justifica atribuir-lhe a autoria de ato ilícito; 3) o tipo de infração legal praticada.
Sem esses cuidados, os servidores públicos continuarão sendo alijados de garantias constitucionais asseguradas a qualquer cidadão e prosseguirá o curso anacrônico de atuação estatal à margem do Estado democrático de Direito.
Marcos Correia Gomes é advogado e mestre em Direito da Cidade pela Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro).