Costa e Sakaue: Natureza dos convênios de crédito consignado

Em qualquer país, a concessão de crédito tem papel central no desenvolvimento econômico, permitindo o fomento da produção e a ampliação da capacidade de consumo.

No Brasil, a situação não é diferente, e aqui um dos mais importantes veículos de financiamento é o crédito consignado, principalmente em virtude da sua capilaridade, permitindo o acesso por um amplo público, geralmente de baixa e média rendas, a um crédito, via de regra, mais barato e com melhores condições.

Tais condições, mais vantajosas, têm uma justificativa. Como em qualquer operação creditícia, as condições financeiras para pagamento da dívida (prazo e taxa de juros) dependem basicamente do risco de inadimplemento. Quanto menor o risco da inadimplência, maior a segurança de recuperação do crédito e melhores são as condições.

E é nesse ponto que o crédito consignado demonstra seu diferencial. Ao contrário de outras operações, a consignação em folha não se baseia apenas em contratos individuais com os tomadores, mas principalmente em um contrato de convênio firmado entre a instituição financeira e o empregador, conferindo maior segurança à operação.

Assim, ao invés de ficar sujeito ao risco do tomador individual, o financiador tem a confiança de que as parcelas dos empréstimos consignados obrigatoriamente serão quitadas, pois serão retidas pelo empregador diretamente na folha de pagamento e imediatamente repassadas a ele.

Nesse contexto, o tomador do crédito ocupa a posição de devedor, ao passo que o empregador figura como mero depositário fiel dos valores retidos, obrigando-se a repassar ao financiador (via de regra uma instituição financeira) os valores retidos/consignados dos salários de seus empregados.

Diante dessa sistemática, o que se nota é que os valores consignados não pertencem ao contratante do convênio/empregador, que, como visto acima, é mero depositário e repassador das verbas dos servidores ao financiador.

Existe, portanto, uma clara obrigação de fazer, que consiste no dever de repassar valores que nunca integraram o patrimônio do empregador e que agora pertencem à instituição financeira.

Contudo, muito embora a operação esteja estruturada para garantir o recebimento do crédito, e exatamente por isso os tomadores sejam beneficiados com condições mais vantajosas, o que por vezes se verifica é que o empregador retém o valor das parcelas nas folhas de pagamento dos empregados, mas deixa de efetuar o repasse à instituição financeira, se apropriando indevidamente de dinheiro que não lhe pertence.

No que diz respeito, especificamente, a entes da administração pública, na qualidade de empregadores, tal retenção indevida é ainda mais grave, eis que o que se espera do poder público é justamente uma conduta exemplar e pautada na boa-fé, sendo que seu comportamento nesse sentido pode configurar crimes como apropriação indébita ou peculato-desvio, ferindo a ordem econômica.

Diante disso, a instituição financeira, na qualidade de titular dos valores retidos, se vê obrigada a ingressar com medidas judiciais objetivando compelir o empregador a efetuar os repasses devidos (ação de obrigação de fazer, ação reipersecutória, etc).

Portanto, é inequívoco que a tutela jurisdicional pretendida consiste no repasse de valores, não no pagamento de algo. Isso porque, repita-se, os valores retidos jamais integraram o patrimônio do empregador, que não tem uma dívida perante a instituição financeira, mas uma mera obrigação de efetuar os repasses dos valores que estão em sua posse provisória.

Nesse sentido, ao cabo da ação judicial o empregador deverá ser condenado a efetuar os repasses, ou seja, lhe será imposta uma condenação em obrigação de fazer.

E a condenação em obrigação de fazer é amplamente aplicada pelos tribunais brasileiros, tanto contra empresas privadas quanto contra entes da administração pública, na qualidade de empregadores que retêm valores pertencentes a instituições financeiras decorrentes de empréstimos consignados.

Contudo, é possível identificar a existência de julgados minoritários e dissonantes em que, a despeito da manifesta natureza da obrigação de fazer, é realizada a condenação de entes públicos à obrigação de pagamento  como se esses fossem devedores da instituição financeira. Isso, por consequência, retira a possibilidade de a instituição financeira obter o direito de acesso imediato aos valores que lhe pertencem junto ao ente público e a obriga à submissão ao regime de precatórios.

Em outras palavras, apesar de inexistir uma dívida do ente público perante a instituição financeira, mas apenas e tão somente uma obrigação de fazer (repassar), os valores retidos indevidamente não poderiam ser objeto de cumprimento de sentença para execução de tal obrigação e deveriam ser convertidos em ofício requisitório para pagamento via precatório.

Referidos julgados, muito embora esparsos, podem produzir graves prejuízos ao mercado de crédito, sob o ponto de vista jurídico e econômico, posto que deturpam a natureza de uma operação, tornando-a mais onerosa ao financiador o que, por consequência, eleva seu custo aos tomadores interessados.

Nesse sentido, além do prejuízo à economia como um todo, o que tais julgados não observam é que, ao deturparem a natureza da obrigação, legalizam, por via oblíqua, um crime: o ente público se apropria ilegalmente de uma quantia que nunca lhe pertenceu, se financia às custas dos seus próprios servidores e das instituições financeiras, e recebe o prêmio de ficar obrigado a um “pagamento”, após anos, por meio do regime de precatório.

Defendemos, de forma veemente, portanto, que a via do precatório, para se atender o direito da instituição financeira é, sob o ponto de vista técnico jurídico e econômico, absolutamente equivocada. Ressalta-se que a determinação judicial de repasse dos valores descontados a título de pagamento de empréstimos consignados, sem a submissão ao regime de precatórios, é a via correta a ser adotada e que se traduz, tão somente, no cumprimento do contrato firmado, não acarretando qualquer prejuízo ao erário, posto que os valores perseguidos não pertencem ao ente público.

Por tais valores não integrarem o erário, é incabível a adoção do regime jurídico do precatório, principalmente porque a Constituição Federal, em seu artigo 100, impõe sua aplicação apenas para casos em que o ente é condenado a “pagar” e não a “repassar” valores dos quais somente detém posse provisória em nome de outrem.

De igual modo, é importante destacar que os convênios para a concessão de empréstimos consignados a servidores públicos não têm natureza de contratos administrativos [1], ante a ausência de utilidade pública, sendo meramente uma obrigação de direito privado firmado pela administração pública [2]. Portanto, as consignações se traduzem em ingressos extraorçamentários, não previstas na Lei Orçamentária e não relatadas perante os Tribunais de Contas, o que igualmente justifica a não submissão ao regime de precatório [3].

Assim, ao contrário do que sustenta o entendimento minoritário, não se pode criar qualquer celeuma quanto à determinação de repasse e, havendo os requisitos autorizadores, deve, inclusive, ser determinada a ordem inaudita altera pars que obrigue o ente público à entrega dos valores, que não lhe pertencem, ao seu legítimo titular  isto é, à instituição financeira.

Dessa forma, aplicar o regime especial de precatórios ao ente público para os casos de ausência de repasse de parcelas de empréstimos consignados, além de violar a disposição expressa da Constituição Federal e deturpar a própria natureza da obrigação, premia, por via oblíqua, uma apropriação indébita, o que, ao final, desestimula as instituições financeiras a concederem empréstimos consignados (ou as obriga a aumentar o custo dos financiamentos), algo extremamente prejudicial à própria economia do país.

Felipe de Moraes Costa é advogado especialista em Recuperação de Crédito pelo /asbz.

Consultor Júridico

Facebook
Twitter
LinkedIn
plugins premium WordPress

Entraremos em Contato

Deixe seu seu assunto para explicar melhor