Crueldade contra animais: mais questões suscitadas em juízo

A interação do humano com os animais apresenta pontos de tensão e de difícil enquadramento legal; ao lado de carinho e cuidado sobrevivem práticas ligadas ao uso dos animais domésticos, domesticados e silvestres que podem ou não ser vedadas pela legislação. Fiz um breve resumo de questões suscitadas em juízo no artigo de 11/2/2023 [1] e dos fundamentos utilizados pelo Supremo Tribunal Federal no caso da vaquejada [2] e em casos seguintes, em artigo de 18/3/2023 [3]. É preciso ainda meditar sobre alguns conceitos relevantes na decisão, mas de contorno (nelas) pouco nítido: (a) pode a lei definir se há ou não crueldade, ou é ela um fato que independe do plexo normativo; e (b) é ampla a liberdade do legislador para qualificar uma prática como bem cultural, bem imaterial integrante do patrimônio cultural, como foi feito em diversos casos? Em outras palavras e antecipando a apreciação a ser feita em Brasília, a EC nº 96/97 e LF nº 13.364/16, em vigência e no aguardo de análise nas ADI nº 5.728-DF e 5.772-DF, ainda em andamento, são constitucionais?

A LF nº 13.364/16 de 29-11-2106 reconheceu o rodeio, a vaquejada e o laço, bem como as respectivas expressões artísticas e esportivas, como manifestações culturais nacional, bens de natureza imaterial integrantes do patrimônio cultural brasileiro “enquanto atividades intrinsecamente ligadas à vida, à identidade e à memória de grupos formadores da sociedade brasileira”, artigo 1º e 2º [na redação da LF nº 13.873/19, que alterou e ampliou o objeto da lei], atribuindo às respectivas associações ou entidades legais reconhecidas pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento a edição de regulamentos que assegurem a proteção ao bem estar animal e sanções em caso de descumprimento (art. 3-B § 1º). A EC nº 96/97, promulgada pouco após a decisão que havia considerada ilícita a vaquejada, acrescentou o § 7º ao artigo 225 da Constituição Federal [4] descaracterizando a crueldade de práticas desportivas que utilizem animais em manifestações culturais mencionadas no § 1º do artigo 215 [5].

A crueldade é qualquer ação cruel e desumana que causa dor e sofrimento noutro ser, como indicam os bons dicionários. Dor é a sensação dolorosa de maior ou menor intensidade em qualquer parte do corpo e o sofrimento moral ou psicológico causado por amargura, agonia, perda; sofrimento é a dor física ou moral continuada [6]. A dor e o sofrimento são atributos de quem sofre a crueldade, são um fato clínico ou emocional do objeto da ação cruel. São fatos que não podem ser negados pela lei, que atua no mundo ético e moral, mas não no mundo físico; não cabe à lei considerar determinada prática como não cruel se cruel for, pois a dor e o sofrimento existem por si e não deixam de existir porque, no caso, assim dispôs o § 7º do artigo 225 citado. Ser uma manifestação cultural, um construto humano, não altera a qualidade ou o sentimento de seu objeto, um construto físico ou natural, e história traz uma longa série de manifestações culturais, inclusive sacrifícios humanos e animais, cuja crueldade não é negada hoje. É uma disposição esquisita: a mesma prática esportiva, a mesma atividade, é considerada cruel ou não cruel conforme seja classificada ou não como manifestação cultural. A disposição constitucional é uma contradição em si mesmo, uma criação legislativa incapaz de negar o fato, caso exista, e está em clara dissonância com a regra geral e cogente do § 1º inciso VII, que veda prática que impliquem em crueldade contra os animais, não qualificada e qualquer que seja ela.

A LF nº 13.364/16 considera patrimônio cultural imaterial do Brasil o rodeio, a vaquejada e expressões decorrentes, como: I – montarias; II – provas de laço; III – apartação; IV – bulldog; V – provas de rédeas; VI – provas dos Três Tambores, Team Penning e Work Penning; VII – paleteadas; e outras provas típicas, tais como Queima do Alho e concurso do berrante, bem como apresentações folclóricas e de músicas de raiz. Quanto ao conteúdo da norma, ela se propôs a alcançar dois diferentes tipos de reconhecimento sobre as práticas de rodeio, vaquejadas e manifestações associadas: a de manifestação cultural nacional e a de patrimônio cultural imaterial brasileiro, com o intento de colocá-las ao abrigo dos artigos 215, parágrafo 1º e 216, I e II (formas de expressão e modos de criar, fazer e viver) da CF/88. Essa questão foi analisada com acuidade e maestria pelo professor Marcos Paulo de Souza Miranda [7], cujos apontamentos resumo aqui. Admitida a proteção de bens culturais ou imateriais pela lei (e não apenas pelo Executivo), a lei contraria frontalmente o inciso VII do § 1º do artigo 225 da Constituição (cujo conteúdo ético foi afirmado pelo STF na ADI nº 1856-RJ, 2011) e a ancianidade da prática não justifica a sua continuidade [8] nem se pode confundir a conceituação antropológica de cultura, que abarca todo tipo de ação humana, com a sua conceituação jurídica, que exige o enquadramento na norma constitucional. Como deixa claro o articulista, reconhecer como patrimônio cultural práticas que intrinsecamente são nocivas e cruéis aos animais encontra evidente óbice no artigo 225 § 1º inciso VII da Constituição Federal, no art. 32 da Lei de Crimes Ambientais (LF nº 9.605/98), na Convenção para Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial, adotada em Paris em 17 de outubro de 2003 (promulgada no Brasil pelo DF nº 5.753/06) e na Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade de Expressões Culturais assinada em Paris em 20 de outubro de 2005 e promulgada no Brasil pelo DF nº 6.177/07. A classificação dessas práticas esportivas como manifestação cultural ou patrimônio imaterial pela LF nº 13.364/16 não sobrevive ao escrutínio constitucional, ante a exceção criada pela regra especial que proíbe a crueldade contra animais no artigo 225 sobre a regra geral dos artigos 215 e 216. Em outras palavras, não podem ser protegidos pela lei os bens culturais e imateriais que impliquem em crueldade contra os animais.

Assim colocado o panorama normativo atual, o panorama jurisprudencial preocupa. Após claras manifestações sobre a precedência da proteção animal e da natureza, sucederam decisões flexibilizando tal proteção em manifestações culturais e religiosas e mesmo aplicando a LF nº 16.364/16. No caso da vaquejada [9], um dos votos vencidos considerou válida a lei cearense por inexistir maltrato [apesar das evidências, ministro Edson Fachin], outro admitiu a crueldade, mas suplantada pelos benefícios econômicos da atividade [ministro Gilmar Mendes], outro que a ponderação entre a vedação de crueldade e a manifestação cultural cabia ao legislador [ministro Luiz Fux].

No RE nº 494.601-RS, 2019 [10], referente a lei gaúcha que excluiu, como infração administrativa, o sacrifício ritual de animais em rituais religiosos de matriz africana, o tribunal considerou que a proteção à liberdade religiosa e os cuidados adotados no ritual afastavam a vedação constitucional, pois não demonstrados maus tratos, excesso e crueldade no abate na preparação e na imolação do animal. “Ante, de um lado, as incertezas acerca do alcance do sofrimento animal, e, de outro, a dimensão plural que se deve reconhecer às manifestações culturais, é evidente que a proibição do sacrifício acabaria por negar a própria essência da pluralidade, impondo determinada visão de mundo a uma cultura que está a merecer, como já dito, especial proteção constitucional”, nos termos do voto do ministro Alexandre de Morais, com extensa citação dessas práticas no mundo.

Na ADPF nº 640-MC [11] o tribunal declarou a ilegitimidade da interpretação dos artigo 25, § 1º e 2º da Lei 9.605/1998, bem como dos artigos 101, 102 e 103 do DF 6.514/08 e demais normas infraconstitucionais, em sentido contrário à norma do artigo 225, § 1º, VII, da CF/88, com a proibição de abate de animais apreendidos em situação de maus-tratos. Após deliminar o objeto da ação (“Destaque-se que o caso em análise não se refere às situações concretas de abatimento de animais quando constatada a contaminação por doenças ou pragas infectocontagiosas, mas sim à eliminação a priori da fauna apreendida em situação de maus-tratos, sob a alegada e hipotética possibilidade da ocorrência desses riscos ou em virtude de falhas do poder público na destinação dos animais às entidades previstas em lei”) o relator reitera a jurisprudência do STF no fortalecimento da preservação do meio ambiente a partir de sua dimensão objetiva, ou seja, o respeito aos deveres de proteção ambiental estabelecidos na Constituição Federal e na criação de normas de organização e procedimento que viabilizem o alcance de suas finalidades constitucionais de um Estado ambientalmente sustentado. Conclui que, embora possa ser justificado o abate em casos comprovados de doenças, pragas ou outros riscos sanitários, não se admite o abate imediato de animais apreendidos em situação de maus-tratos que vinham sendo autorizados por decisões administrativas e judiciais fundadas em problemas estruturais e financeiros.

Mas há manifestação admitindo, em decisão ainda isolada, a validade das provas de laço [12] ao entender não provado o maltrato e a prática cruel, aliada à permissão constitucional e legal. Além da má compreensão do acórdão recorrido, a 1ª Turma deixou de lado a conclusão de decisão anterior do tribunal no caso da vaquejada (a crueldade “in re ipsa”, inerente à atividade) e a fundamentação da ADPF nº 640-DF para mencionar dúvida inexistente e considerar as provas de laço uma atividade legalizada pela LF nº 13.346/16 já analisada. As oscilações de fundamentação, a escassa maioria em alguns casos e a dificuldade encontrada pelo tribunal causa preocupação, para dizer o menos.

Concluindo a meditação proposta no início do artigo, há uma impossibilidade conceitual e prática em a lei definir o que é cruel ou não cruel; não cabe ao legislador classificar como bem cultural ou patrimônio imaterial uma prática ou atividade que ofenda dispositivos constitucionais, como fez nos casos do rodeio, vaquejada, provas de laço e afins; não há como dar o referendo constitucional, sempre no aguardo da posição futura do Supremo Tribunal, à LF nº 13.364/16 e à EC nº 96/97. A decisão refletirá em situações outras, além das atividades aí descritas.

Consultor Júridico

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