Deonísio Koch: Inaplicabilidade do art. 166 a restituições do ICMS-ST

É do conhecimento de todos aqueles que detêm um conhecimento mínimo da área jurídica que o Direito tem como finalidade regular as relações intersubjetivas entre pessoas, estabelecer as regras norteadoras a serem seguidas pelos indivíduos para harmonizar a convivência pacífica e visa, principalmente, a previsibilidade das consequências advindas dos comportamentos, conhecida como segurança jurídica.

No entanto, o direito posto nem sempre é observado; ocorrem as transgressões legais, o descumprimento de normas e a invasão do direito alheio, gerando ao ofendido o direito a recorrer ao Poder Judiciário, através da ação própria [1], visando restabelecer o equilíbrio e a paz jurídica.

Não se justifica acionar qualquer órgão de julgamento, seja no Poder Judiciário ou mesmo no âmbito administrativo, para dele obter uma solução já oferecida pela própria legislação, solução que pode ser obtida com uma simples interpretação sem maior esforço no exercício de hermenêutica.    

Faz-se essa observação inicial por ser pertinente ao caso que se pretende enfocar neste artigo, em que a matéria de direito tributário levada ao Judiciário nos parece não oferecer pontos duvidosos à luz da legislação própria. O Poder judiciário haverá de dizer o óbvio, em perfeito alinhamento com a norma.

Refere-se ao caso da discussão levada ao STJ (Superior Tribunal de Justiça) sobre a aplicabilidade ou não do artigo 166, do CTN [2] nas restituições de ICMS-ST pago a maior na retenção pelo substituto tributário em relação ao valor efetivamente devido com base no valor da venda efetiva no varejo pelo substituído tributário, possibilidade autorizada pela decisão do STF (Supremo Tribunal Federal), no julgamento do RE 593.849/MG, repercussão geral. Esta denominada controvérsia foi cadastrada como tema 1.191, em rito repetitivo (RE 2.034.975, REsp 2.034977 e 2.035.550).  

Antes de dar prosseguimento à análise da matéria, importa revisitar o conteúdo normativo do artigo 166, do CTN. Segundo esse dispositivo, ao se tratar de tributo indireto, assim havido por permitir a transferência do ônus tributário ao adquirente ou ao consumidor final, como por exemplo o ICMS, a restituição de um valor pago a maior que o devido, somente pode ser feita por aquele que provar ter assumido o encargo do tributo recolhido em excesso, ou se houver transferência a terceiro, que por ele seja autorizado a receber a importância indevidamente paga.

Exemplificando, se um comerciante pagou o ICMS a maior que o devido, em decorrência da aplicação errônea da alíquota de 25% ao invés de 17%, ele somente poderá reivindicar o ressarcimento do excedente pago, se por acaso não tiver repassado este valor ao adquirente da mercadoria. Caso ele tenha repassado, o que normalmente ocorre, somente terá esse direito se autorizado pelo adquirente que suportou o ônus do pagamento a maior. Ou seja, o direito ao ressarcimento pertence àquele que comprovar ter assumido o ônus do recolhimento a maior, ou que haja autorização daquele que assumiu o ônus nos termos do artigo mencionado.

Não satisfeitas estas condições, a lei não autoriza o ressarcimento do pagamento excedente. O valor ficará com o Estado, ainda que represente um enriquecimento sem causa. Certamente, o legislador, numa visão de pragmatismo, preferiu que o enriquecimento sem causa, caso ocorrer, seja em favor do Estado e não do contribuinte.   

Convém frisar que, consoante o dispositivo legal, o comerciante (contribuinte de direito) terá legitimidade para solicitar o ressarcimento do valor pago a maior se ele provar ter assumido o ônus desse excedente, e, portanto, não o repassou para o consumidor final.

Com essa assertiva vamos examinar a operacionalização da substituição tributária para determinar quem suporta o ônus tributário decorrente do excesso recolhido no ICMS-ST já descrito.  

Na realização da operação mercantil entre o substituto tributário e o substituído, há a retenção e recolhimento do ICMS pelo substituto em favor do Estado de destino referente às operações subsequentes, valor este que será destacado no documento fiscal e cobrado do substituído, juntamente com o valor da operação (mercadoria) ou prestação (serviços). Portanto, o ônus é suportado pelo contribuinte substituído.

Ocorrendo a venda no varejo pelo preço inferior ao da base de cálculo presumida na retenção na fonte (pelo substituto tributário), surge o direito ao ressarcimento do valor referente a essa diferença. E aqui cabe a pergunta: neste caso essa diferença (pagamento a maior na fonte) foi repassada ao consumidor final ou foi suportada pelo contribuinte substituído? A resposta é óbvia: se a venda para o consumidor final foi pelo preço real, menor que a base de cálculo presumida, é claro que não houve repasse do excedente pago na fonte. Na verdade, este pagamento a maior foi assumido pelo contribuinte substituído, logo, ele terá o direito ao ressarcimento sem violar as condições do artigo 166, do CTN.

Para melhor clareza reproduzimos a exposição em exemplo numérico.

Suponhamos que na venda de uma determinada mercadoria, o substituto tributário reteve e recolheu o ICMS-ST sobre a base de cálculo presumida de R$ 10 mil, com base na legislação, perfazendo o montante de R$ 1.700 de ICMS-ST, aplicando-se a alíquota de 17%, que é cobrado do substituído tributário. No entanto, a venda para o consumidor final foi realizada por R$ 8.000, valor real da operação mercantil no varejo, sendo efetivamente devido o ICMS-ST de R$ 1.360. Neste caso, o valor pago a maior, objeto do ressarcimento, é de R$ 340, que foi absorvido pelo contribuinte substituído e não repassado ao consumidor final, já que este pagou o valor real da venda e não o valor considerado como base de cálculo do fato gerador presumido.

No nosso entendimento não há sequer necessidade de produzir prova específica desse encargo pelo contribuinte substituído, em razão da evidência desse fato na sistemática da substituição tributária. Não se prova fato notório e sabido. 

Conforme observado linhas acima, trata-se de uma matéria de fácil compreensão, bastando compreender a operacionalidade da sistemática da substituição tributária, não oferecendo nenhum ponto de controvérsia que pudesse justificar uma demando judicial. Isto, porque, repita-se, o valor recolhido a maior na fonte, objeto do ressarcimento, não é repassado para o consumidor final; o seu encargo é assumido pelo contribuinte substituído, dando-lhe plena legitimidade para pleitear o seu ressarcimento. A busca de intervenção judicial como esta é causa da expressiva judicialização do direito tributário [3]. Desnecessário, portanto, o Poder Judiciário dizer essa obviedade. O que não se espera é uma solução judicial contrária.  

 


[1] A Constituição Federal garante o direito universal a peticionar ao Poder Judiciário, nos seguintes termos:

“Artigo 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

[…]

XXXIV – são a todos assegurados, independentemente do pagamento de taxas:

a) o direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder;”.

[2] Artigo 166. A restituição de tributos que comportem, por sua natureza, transferência do respectivo encargo financeiro somente será feita a quem prove haver assumido o referido encargo, ou, no caso de tê-lo transferido a terceiro, estar por este expressamente autorizado a recebê-la”.

Deonísio Koch é advogado tributarista, professor de Direito Tributário, ex-conselheiro do Tribunal Administrativo Tributário de Santa Catarina (TAT) e ex-auditor fiscal estadual.

Consultor Júridico

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