Descumprimento de ordem judicial na execução e as astreintes

Desde o advento da Lei nº 11.232/05 e da nova lei processual civil, não se pode mais falar em dois processos autônomos (conhecimento e execução), na busca da satisfação do direito do credor, mas em duas fases integrantes de um mesmo processo. Tal modificação resultou da concretização da tão almejada substituição do modelo dicotômico de Liebman pelo do sincretismo do processo.

A fase de execução processual tem como finalidade precípua garantir ao credor a satisfação de seu direito, determinado por um título judicial ou extrajudicial. Nesse sentido, reconhecido o direito do credor, a fase de execução processual dá aos operadores do Direito mecanismos que tragam efetividade à sentença. Dentre as características da fase de execução, destacamos a possibilidade de se determinar o adimplemento forçado da obrigação, consistente na retirada de bens que integram o patrimônio do devedor ou de seu responsável, suficientes para satisfazer o direito do credor. Outra característica é a substituição da jurisdição, uma vez que o Poder Judiciário se coloca na posição do credor para alcançar o devedor em seu dever de satisfazer seu débito. Exemplo claro dessa atuação por substituição é o caso da penhora on-line (artigo 854, CPC), na qual o juiz poderá bloquear valores constantes em contas bancárias do devedor.

Por fim, e com merecido destaque, existe ainda a possibilidade de imposição de sanções ao devedor como forma de compeli-lo a cumprir a determinação judicial de adimplemento de suas obrigações. À guisa de exemplo, poderá ser imposta multa de 10% caso a sentença não seja cumprida em 15 dias, atualizações monetárias, honorários advocatícios e multas diárias, popularmente denominadas de astreintes.

Seguindo o objetivo de dar maior efetividade às sentenças judiciais, o artigo 84 do CDC, já na década de 1990, elencava as providências que poderiam ser adotadas pelo juízo como forma de constrição do devedor nas obrigações de fazer e não-fazer. O referido artigo autorizou o magistrado a antecipar a tutela antes da decisão final de mérito, sob a forma de tutela de urgência e evidência (CDC, artigos 300 a 311). De igual forma, previu a possibilidade de imposição de multa diária ao devedor na hipótese de descumprimento de mandamento judicial.

Segundo o artigo 84, § 4º, do CDC, é possível ao juiz impor multa diária ao réu, independentemente de pedido do autor, quando for suficiente ou compatível com a obrigação, fixando prazo razoável para cumprimento da determinação.

A premissa que deve ser sublinhada nos estudos das astreintes é a sua diferenciação quanto às sanções de caráter reparatório. Aqui, trata-se de medida acessória ao mandamento judicial que determinou uma obrigação de fazer ou de não-fazer ao devedor. Pretendeu o legislador dar maior coercibilidade e efetividade ao comando judicial, sem que a medida se incorpore ao direito pleiteado em juízo pelo credor.

Bruno Miragem, em Comentários ao Código de Defesa do Consumidor, 6ª edição, 2019, p. 1.899, assim definiu:

“Tratam-se das astreintes, concedidas como mecanismo de reforço do caráter coercitivo pretendido pelas ações mandamentais, como a prevista no art. 84. Não se trata, por certo, de sanção com caráter reparatório, ainda que reverta ao final para o patrimônio do consumidor credor da obrigação descumprida. Sua finalidade, entretanto, é diversa. Trata-se de medida acessaria ao mandamento judicial relativo ao cumprimento específico de que o consumidor é credor e, neste sentido, tem sua função vinculada à efetividade do comando judicial, não integrando, necessariamente, o direito patrimonial do consumidor-credor”.

O instituto da multa diária (astreintes), contido no artigo 84, § 4º, CDC, encontra fiel correspondência nos artigos 536 e 537, CPC, com duplo aspecto. De um lado, como método de coerção ao cumprimento (ou inibitório do descumprimento) de mandamento judicial; e de outro, como método sancionatório consubstanciado no arbitramento de uma pena pecuniária, in verbis:

Art. 84 – CDC. Na ação que tenha por objeto o cumprimento da obrigação de fazer ou não fazer, o juiz concederá a tutela específica da obrigação ou determinará providências que assegurem o resultado prático equivalente ao do adimplemento.

§ 4°. O juiz poderá, na hipótese do § 3° ou na sentença, impor multa diária ao réu, independentemente de pedido do autor, se for suficiente ou compatível com a obrigação, fixando prazo razoável para o cumprimento do preceito.

Art. 536, CPC. No cumprimento de sentença que reconheça a exigibilidade de obrigação de fazer ou de não fazer, o juiz poderá, de ofício ou a requerimento, para a efetivação da tutela específica ou a obtenção de tutela pelo resultado prático equivalente, determinar as medidas necessárias à satisfação do exequente.

§ 1º. Para atender ao disposto no caput, o juiz poderá determinar, entre outras medidas, a imposição de multa, a busca e apreensão, a remoção de pessoas e coisas, o desfazimento de obras e o impedimento de atividade nociva, podendo, caso necessário, requisitar o auxílio de força policial.

Art. 537, CPC. A multa independe de requerimento da parte e poderá ser aplicada na fase de conhecimento, em tutela provisória ou na sentença, ou na fase de execução, desde que seja suficiente e compatível com a obrigação e que se determine prazo razoável para cumprimento do preceito.

A imposição de multa diária ao credor, caso não obedeça ao mandamento judicial não pode servir como instrumento de retaliação por parte do juízo ante ao descumprimento de sua ordem. Por essa razão, a sanção pecuniária diária deve obedecer aos princípios da proporcionalidade e razoabilidade, não podendo levar o devedor à insolvência, tampouco, o credor ao enriquecimento sem causa. A esse respeito, Rizzatto Nunes,[1] observa argutamente:

“O que se percebe, algumas vezes, nos pronunciamentos dos magistrados, é uma espécie de ira pelo descumprimento de sua ordem, como se a negativa fosse subjetiva e especificamente dirigida ao prolator da ordem. Verifica-se, nesses casos, que o juiz, usando o bastão das astrientes, aplica sua revanche pessoal ao infrator e até, por vezes, por agir como pessoa e não como representante do Estado, abusa do direito que tem”.

Outro paradigma que deve ser observado pelo juízo é o valor máximo em abstrato das astreintes. Por ser medida acessória à principal, imposta com o fito de garantir que o devedor execute a ordem judicial, não se confunde com o objeto da demanda em si e, portanto, não há sentido na imposição de multas diárias que ultrapassem o valor principal pretendido pela ação. Nesse sentido, o artigo 814, parágrafo único, do CPC, prevê que o juiz poderá manejar a multa diária para baixo, quando prevista no título executivo, se o seu valor for excessivo.

Art. 814. Na execução de obrigação de fazer ou de não fazer fundada em título extrajudicial, ao despachar a inicial, o juiz fixará multa por período de atraso no cumprimento da obrigação e a data a partir da qual será devida.

Parágrafo único. Se o valor da multa estiver previsto no título e for excessivo, o juiz poderá reduzi-lo.

“Realmente, não tem sentido nenhum, repita-se, que o não cumprimento de uma ordem incidental no feito possa ser mais importante que o próprio feito tomado em seu conjunto. Não poderia, pois, o quantum das astrientes fixado no incidente superar o valor pleiteado na principal” [2].

Além disso, deve-se também levar em consideração o caráter residual das astreintes. A multa diária somente ganha fundamento quando esgotadas todas as demais possibilidades de cumprimento da ordem, seja diretamente pelo juiz, pelo credor ou por terceiros.

Resta analisar o momento de exigibilidade de sua cobrança. Segundo Rizzatto Nunes, é necessário aguardar o trânsito em julgado para que o valor possa ser exigido.

Nesse sentido, no que tange às tutelas antecipadas, o nobre doutrinador cita Cândido Dinamarco: “Enquanto houver incertezas quanto à palavra final do Poder Judiciário sobre a obrigação principal, a própria antecipação poderá ser revogada, com ela, as astrientes” [3].

“A função da multa cominatória, como exposto, é a de forçar o devedor a cumprir a obrigação de fazer e não fazer. Todavia, até certo momento (o do trânsito em julgado da sentença na ação principal) não se poderá afirmar que havia mesmo essa obrigação” [4].

Embora denominada multa cominatória, a astreinte diferencia-se da sanção pecuniária porque sua natureza não é a de penalidade imposta por uma infração, mas de medida coercitiva destinada a dar eficácia ao mandamento judicial.

Fernando Capez é procurador de Justiça do MP-SP, mestre pela USP, doutor pela PUC, autor de obras jurídicas, ex-presidente da Assembleia Legislativa de SP, presidente do Procon-SP e secretário de Defesa do Consumidor.

Consultor Júridico

Facebook
Twitter
LinkedIn
plugins premium WordPress

Entraremos em Contato

Deixe seu seu assunto para explicar melhor