Desinformação e viés político distorcem reações sobre decisões do STF

A despeito de apenas consumar, de forma mais ampla, o que já havia sido decidido em casos específicos, a decisão do ministro Dias Toffoli de anular as provas obtidas por meio do acordo de leniência da Odebrecht tem gerado repercussão intensa na imprensa, não raro com percepções distorcidas sobre o alcance e a própria natureza da sentença.

Decisão de Toffoli sobre acordo da Odebrecht gerou reações distorcidas

Reprodução

A previsível pá de cal na “lava jato” alçou novamente termos genéricos, como “combate à corrupção”, ao centro do debate, preterindo os detalhes que poderiam preservar parte do Judiciário de incorrer nas mesmas arbitrariedades. 

A desinformação, os interesses ideológicos e a precipitação para tecer análises sobre as decisões da corte engrossam o caldo que desemboca em reações deturpadas. Essa é a percepção de constitucionalistas e criminalistas entrevistados pela revista eletrônica Consultor Jurídico, para quem o Supremo acabou adquirindo certo magnetismo para ser apontado como principal razão de problemas sociais e jurídicos.

No caso da decisão de Toffoli, algumas confusões semânticas nortearam as análises publicadas exaustivamente nos jornais, como a de que o acordo de leniência teria sido anulado em sua integralidade, e não o conjunto probatório elaborado a partir do documento, como de fato ocorreu.

“Não raro, aquele que lança críticas contundentes à decisão sequer leu a integralidade dos votos que a compuseram. Em geral, fiam-se naquilo que este ou aquele site disse a respeito do que foi decidido. Uma determinada mídia colhe um resumo em algum lugar, as demais replicam e o debate público passa a se mobilizar, não a partir do conteúdo do acórdão em si, mas do que disseram as notícias e as opiniões de terceiros”, diz Georges Abboud, livre-docente em Direito pela PUC-SP e sócio do Warde Advogados. 

“É uma tendência que assim aconteça, pois, nos assuntos que mais interessam, os acórdãos costumam ser longos — quem não tem tempo de levar o material original, entrega-se à facilidade de se apoiar nas impressões de terceiros. Basta que as primeiras impressões sejam distorcidas para que a discussão seja inteiramente corrompida.”

A sentença de Toffoli é didática nesse sentido. Artigos e reportagens sobre o tema focaram em supostas consequências da decisão (ainda que outras dezenas de sentenças no mesmo sentido tenham sido dadas nos últimos meses), além de preciosismos, como nos termos dos acordos firmados com outros países pelos procuradores da “lava jato”. 

Ainda assim, os argumentos são frágeis, posto que, mesmo que confirmada a comunicação do Ministério Público Federal ao Ministério da Justiça sobre o trato que estava sendo gestado, consta nos autos (não só da “lava jato”, mas de outras investigações que correram na esteira da chamada “vaza jato”, como a “spoofing”) que os procuradores tinham conhecimento de detalhes da operação antes de qualquer aviso oficial ao Executivo.

Além disso, na maior parte das análises foram suprimidas informações exaustivamente citadas por Toffoli e pelo ministro aposentado Ricardo Lewandowski, que relatava a Rcl 43.007 anteriormente. Nas decisões, por exemplo, consta que os procuradores trataram com negligência os arquivos provenientes dos sistemas Drousys e MyWebDay B, incluindo seu transporte em sacolas de supermercado e a admissão, por parte da Polícia Federal, de que os dados não eram confiáveis e poderiam ter sido adulterados.

Como escreveu o advogado e colunista da ConJur Pierpaolo Bottini, a repercussão à decisão de Toffoli tem pouca razão de existir, visto que ele “decidiu no atacado aquilo que a corte já reconhecia no varejo”. 

“O ministro Toffoli já havia estendido essa mesma decisão ao ex-presidente da Petrobras Aldemir Bendine sem que isso tivesse causado estrépito algum. Decisão essa que já havia sido proferida em outro caso, pelo ministro Lewandowski, e que o ministro Toffoli acabou por estender. Ou seja, havia um conjunto de decisões nesse sentido”, diz o criminalista Alberto Zacharias Toron

Para Toron, o fato de determinadas decisões terem amplo reflexo nas políticas partidárias faz com que, muitas vezes, os comentários e as análises sejam feitos na esteira desses interesses, “tomando os pés pelas mãos”. “E esse viés ideológico faz as críticas se acentuarem e, no polo oposto, os aplausos também serem mais vigorosos.”

O  advogado e professor do Departamento de Direito Público da Universidade Federal Fluminense Gustavo Sampaio Telles Ferreira concorda com Toron no sentido de que houve “politização” na interpretação da decisão de Toffoli. De acordo com Ferreira, as críticas não pouparam “palavras violentas ao conteúdo do que fora decidido, olvidando o exame técnico-jurídico-processual que se impunha antes da crítica política, por mais que legítima no Estado de Direito”.

“O tensionamento ideológico da política brasileira, associado ao extremismo discursivo daí decorrente, tantas e tantas vezes obstrui que se faça a análise processual adequada em torno da motivação e do alcance destes julgados.”

Repercussão, desgaste e complexidade

Com decisões com ampla repercussão, é natural que haja interpretações divergentes, mas é importante que não haja descredibilização do Judiciário frente à opinião pública, argumenta o advogado e professor do IDP, Alonso Freire

“Em síntese, além do desconhecimento de detalhes técnico-jurídicos, tais distorções resultam muitas vezes de julgamentos antecipados, percepções equivocadas e outros vieses comportamentais aos quais estamos sujeitos, como o viés da confirmação, que ocorre quando um indivíduo procura e usa as informações para apoiar suas próprias ideias ou crenças.”

Esse desgaste é parte de um contexto maior em que, a partir da ascensão da extrema direita, que paradoxalmente surfa na “antipolítica”, houve também intensificação de críticas ao Judiciário, muitas vezes sob uma perspectiva autoritária. 

“Existe uma espécie de pré-disposição para confeccionar notícias que imputam equívocos e arbitrariedades à corte. Na atualidade, o STF tornou-se bode expiatório das frustrações de parcela da população; foi posto na condição de um verdadeiro inimigo ficcional, acusado de todos os insucessos e mazelas do cenário político atual”, diz Georges Abboud.

“O que acontece é uma espécie de discurso de ódio constitucional, que gera como produto uma compreensão sempre degenerada da atuação do Supremo, emprestando-lhe finalidades e alcances que não existem.”

O jurista Lenio Streck, sócio-fundador do Streck & Trindade Advogados Associados, diz que a decisão de Toffoli não é complexa, mas, sim, as análises decorrentes dela, tendo em vista a percepção político-partidária em relação à “lava jato”.

“A decisão de Toffoli não é complexa, uma vez que segue precedentes anteriores do STF. Mas as interpretações sobre o que Toffoli decidiu são mais complexas na exata medida das visões politicas sobre a ‘lava jato’. O fato é o mesmo: decisão que anula provas e acordos; as interpretações é que transformam esse fato em um turbilhão de problemas”, argumenta.

“É uma tradição reacionária, não é nem conservadora, é reacionária, de quando passamos por crises políticos-humanitárias. Nós tendemos a querer jogar o problema público para debaixo do tapete, depois de resolver os problemas privados, para tudo se tornar um grande pacto entre as elites. Agora, com a ‘lava jato’, quer se reproduzir a mesma coisa. Querem jogar para debaixo do tapete os resultados dessa crise, ou a dimensão pública da crise”, afirma o advogado e professor da PUC-SP, Pedro Serrano.

Para ele, as decisões do Supremo com amplo impacto, seja político-partidário ou social, envolvem uma relação entre comunicação social e Judiciário, e essa é uma “grande questão, ainda aberta”.  

“A mídia, numa democracia, deveria ter o papel de fazer a crítica dos agentes de Estado, e não de ser uma caixa de ressonância, como foi no caso da ‘lava jato’.”

Consultor Júridico

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