A falta de uma regulamentação mais detalhada do acordo de não persecução cível (ANPC) tem um lado positivo, pois aumenta a margem de negociação dos órgãos públicos e das pessoas acusadas de atos de improbidade administrativa. Porém, gera problemas práticos, como a falta de interação com os acordos de leniência celebrados com empresas e as regras diferentes em cada instituição. E isso causa insegurança jurídica, no entendimento do advogado Felipe Lauretti Spinardi, do escritório Tojal Renault Advogados.
O ANPC, inserido na Lei de Improbidade Administrativa (Lei 8.429/1992) pela lei “anticrime” (Lei 13.964/2019), e posteriormente alterado pela reforma da norma promovida pela Lei 14.230/2021, pode ser firmado quando a solução consensual for a medida mais viável para acelerar a devolução de valores desviados. O termo deverá promover o integral ressarcimento do dano ou a destinação à entidade estatal lesada da vantagem indevida obtida, ainda que oriunda de agentes privados.
Spinardi é mestre em Direito Público pela Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas, com a dissertação “O acordo de não persecução civil após a reforma da Lei de Improbidade Administrativa”. O trabalho teve por objetivo servir como uma espécie de guia para aqueles que lidam com o instrumento na prática.
O advogado afirma que alguns acordos de leniência firmados pela “lava jato” foram excessivamente rigorosos com as companhias — tanto que várias delas estão com dificuldades para pagar as multas. Em entrevista à revista eletrônica Consultor Jurídico, Spinardi ressalta a importância de pensar na manutenção da atividade econômica e dos empregos ao firmar compromissos do tipo.
Leia a seguir a entrevista:
ConJur — Como a criação do acordo de não persecução civil se encaixa nos mecanismos de justiça negociada no Direito Administrativo?
Felipe Spinardi — O acordo de não persecução civil (ANPC) aparece em um contexto muito maior, em que as soluções consensuais vêm ganhando espaço, não só no âmbito do Direito Administrativo, mas no âmbito do Direito Administrativo sancionador. Esse movimento se fortaleceu especialmente a partir de 2013, com a edição da Lei Anticorrupção (Lei 12.846/2013), que criou mecanismos consensuais para resolução de casos que, anteriormente, seriam resolvidos por meio da potestade administrativa, da força e da unilateralidade do exercício do poder estatal. O artigo 17, parágrafo 1º, da Lei de Improbidade Administrativa (Lei 8.429/1992), vedava expressamente as resoluções consensuais em relação à ação de improbidade administrativa.
A Lei Anticorrupção entrou em vigor no começo de 2014. Pouco depois, teve início a “lava jato”. E o caso deu destaque às soluções negociadas. Era preciso se resolver as questões de alguma forma. Havia agentes, públicos e particulares, que participaram de atos ilícitos em licitações — como as relativas aos carteis da Petrobras. Isso tinha repercussão não só na esfera administrativa como também na penal. Aí surgiu a possibilidade de negociação, para pessoas físicas, em âmbito penal, por meio das colaborações premiadas, estabelecidas pela Lei das Organizações Criminosas (Lei 12.850/2013). Já as pessoas jurídicas que admitissem atos ilícitos e fornecessem novas informações às autoridades poderiam firmar acordo de leniência, com base na Lei Anticorrupção.
Mas era preciso criar um mecanismo para proteger as pessoas físicas na esfera civil administrativa, no âmbito da improbidade. Inicialmente, a solução adotada foi estabelecer uma cláusula nos acordos de leniência permitindo que pessoas físicas aderissem ao compromisso da pessoa jurídica, mediante o pagamento de valores ou fornecimento de informações. Houve uma flexibilização da interpretação que se dava para o parágrafo 1º do artigo 17 da Lei de Improbidade Administrativa. O argumento era que, se a Lei Anticorrupção permite acordos no âmbito civil-administrativo com pessoas jurídicas e a Lei das Organizações Criminosas permite acordos no âmbito penal com pessoas físicas, também era preciso proteger as pessoas físicas no âmbito civil-administrativo.
Em 2017, houve a edição da Resolução 179 pelo Conselho Nacional do Ministério Público, que permitiu expressamente a transação em matéria de improbidade administrativa. Mais recentemente, em dezembro de 2019, surge o acordo de não persecução cível. Ele foi criado pela Lei “anticrime” (Lei 13.964/2019). Porém, o mecanismo surgiu totalmente desregulado, devido ao veto presidencial ao artigo 17-A, que estabelecia que o acordo seria celebrado pelo Ministério Público e regulamentava o dispositivo. O veto presidencial ocorreu com base nessa legitimidade exclusiva do MP para propor o acordo. A Advocacia-Geral da União foi contra e aí se vetou o dispositivo inteiro. Ou seja, toda a regulamentação do acordo de não persecução cível nas ações de improbidade administrativa. Então permitiu-se o acordo, mas ele ficou sem regulamentação. Por isso, diversas entidades acabaram editando seus próprios atos infralegais para regulamentar esse tipo de acordo.
Outro movimento importante ocorreu na reforma da Lei de Improbidade Administrativa, de outubro de 2021. Houve o esclarecimento de que a Lei Anticorrupção se destina à responsabilização das pessoas jurídicas, e a Lei de Improbidade Administrativa, à responsabilização das pessoas físicas. Então foi preciso ter um instrumento para proteger as pessoas físicas.
ConJur — Como o acordo de não persecução cível se compara ao acordo de não persecução penal?
Felipe Spinardi — Ambos os acordos decorrem desse movimento de aumento do espaço de consensualidade no âmbito das esferas sancionadoras, tanto penal quanto civil. A Lei Anticorrupção e a Lei das Organizações Criminosas foram promulgadas com um dia de diferença. A partir do momento que se pensou em um instrumento de resolução consensual em uma esfera, houve a resposta correspondente na outra esfera. Mas o ANPP tem um regramento próprio que é bem diferente do ANPC. Esse novo desenho do ANPC surge para preencher um espaço que está totalmente desprotegido no âmbito da responsabilização civil-administrativa. Não havia um instrumento próprio, surgiu essa solução que foi casuística, mas que funcionava para preencher esse espaço.
ConJur — O senhor afirma que a falta de densidade normativa na regulamentação legal do ANPC gera uma série de dúvidas práticas quanto ao uso desse instrumento negocial. Como a legislação poderia ser melhorada?
Felipe Spinardi — É positiva a margem de discricionariedade que é dada para a autoridade com competência para celebrar o acordo, que pelo texto literal da lei seria o Ministério Público, mas, com base no que foi decidido pelo Supremo Tribunal Federal, também pode ser a pessoa jurídica visada. No entanto, há problemas práticos, dúvidas não respondidas pela legislação, mesmo depois da reforma da Lei de Improbidade Administrativa. Essa falta de densidade normativa está relacionada não só à falta de detalhamento do procedimento e do conteúdo desses acordos, mas também em relação a forma de interação entre os instrumentos negociados, como o acordo de não persecução cível interage com o acordo de leniência. Nos grandes casos, as duas leis são aplicadas paralelamente, com pessoas jurídicas e físicas celebrando acordos distintos. A legislação ignora a interação entre os dois acordos. Se, por um lado, a falta de densidade normativa é boa porque permite que as partes conformem o instrumento no caso concreto, por outro lado ela deixa um vazio sem resposta e permite que soluções sejam adotadas de forma despadronizada. Pode ser que em um caso o Ministério Público aja de uma forma, em outro caso, de outra forma.
Isso também dá margem para regulamentos infralegais. E surgem regulamentos que são dissonantes entre si. Por exemplo, o Ministério Público do Ceará editou um regulamento dizendo que, para casos em que houver o ato de improbidade previsto no artigo 9º, enriquecimento ilícito, será aplicada pelo menos uma sanção em sede do ANPC. Já o Ministério Público de São Paulo prevê que serão aplicadas pelo menos duas sanções para o ato. Isso gera uma insegurança enorme para quem quer negociar e até mesmo para quem opera com esse tipo de instrumento.
O objetivo do meu trabalho foi trazer uma espécie de guia para essas dúvidas práticas sobre o ANPC. Por exemplo, existe a questão da participação da entidade lesada. Então, se o Ministério Público negociar um acordo, a entidade vai se manifestar, essa medida é prevista especialmente na lei. Mas essa manifestação é vinculante? Essa manifestação vai se dar em que momento? Eu busco trazer essas respostas, a partir da análise de literatura, jurisprudência, de casos práticos em que eu já atuei. Nesse exemplo que eu citei, é importante que a entidade pública se manifeste quando a negociação ainda está em curso. Se deixar para o final, há o risco de ter que promover ajustes no acordo e não dar tempo de adequar o documento. E se a entidade lesada concordou, por que não se vai dar a quitação? Isso aumenta a segurança jurídica. Esses pontos não estão previstos na legislação, e eu busquei ajudar a prever soluções para eles.
ConJur — Quais são os limites da discricionariedade das autoridades na celebração e definição dos termos dos ANPCs?
Felipe Spinardi — Como disse, eu considero positiva essa margem de discricionariedade. A lei traz uma moldura de atuação das entidades negociantes — Ministério Público, entidade lesada e beneficiário. O parágrafo 6º do artigo 17-B da Lei de Improbidade Administrativa estabelece que o acordo poderá contemplar a adoção de mecanismos e procedimentos internos de integridade, de auditoria e de incentivo à denúncia de irregularidades e a aplicação efetiva de códigos de ética e conduta no âmbito da pessoa jurídica, se for o caso, bem como de outras medidas em favor do interesse público e de boas práticas administrativas. O que eu interpreto desse dispositivo é que absolutamente tudo o que não está vedado expressamente pela lei é margem de liberdade para as partes trabalharem, de acordo com o caso concreto.
As questões surgem na prática. Por exemplo, é possível celebrar um acordo sem a aplicação de sanções? Entendo que sim, porque não é requisito expresso da lei a aplicação de uma sanção em ANPC. A lei traz outros requisitos expressos, que são a ligação da vantagem indevida para pessoa jurídica lesada e o ressarcimento integral via acordo. A falta de sanção não descumpre nenhuma dessas disposições expressas, está dentro da margem negocial.
O ANPC tem muito mais flexibilidade do que o acordo de leniência, o qual a lei trata com mais densidade, talvez até demais. Quando a densidade normativa limita muito a margem negocial, dificulta a resolução de casos mais complexos. No ANPC é o contrário, há uma ampla margem negocial. É possível, por exemplo, fazer um acordo em que a pessoa não vai fornecer nenhum instrumento de prova, nenhum documento ou informação que possa colaborar com as investigações. Isso é possível se as partes, em sua autonomia da vontade e dentro da margem de negociabilidade, entenderem que no caso não há necessidade de colaborar com as investigações. E isso pode ser vantajoso para o poder público porque permite o ressarcimento célere, sendo que seria muito difícil para o MP recuperar os valores irregularmente tirados do erário.
ConJur — Já há entendimentos jurisprudenciais consolidados sobre o ANPC? Se sim, quais?
Felipe Spinardi — A minha pesquisa de jurisprudência se deu até 25 de julho de 2022. Eu busquei por decisões colegiadas em todos os tribunais possíveis — Tribunais de Justiça, Tribunais Regionais Federais, Superior Tribunal de Justiça e Supremo Tribunal Federal. A pesquisa era pelo termo “acordo de não persecução cível” ou “civil”. E tratou do período posterior à edição da Lei 14.230/2021, que reformou a Lei de Improbidade Administrativa. Eu encontrei 62 julgados. Desses, somente 28 são úteis para o meu trabalho. A conclusão é que ainda não há entendimentos jurisprudenciais consolidados sobre ANPC.
A exceção é o entendimento pacífico na jurisprudência de inexistência de direito subjetivo ao acordo. Vai sempre depender de uma avaliação discricionária por parte da entidade celebrante e do caso concreto. Mas essa avaliação discricionária não pode ser arbitrária. Por exemplo, um promotor dizer que não celebra ANPC em nenhum caso porque ele não concorda com justiça negociada. Um promotor também não pode dizer que não negocia em casos de certas infrações, porque ele não tem como fazer esse juízo a priori, sem saber quais seriam as condições do acordo. Pode ser que o acordo seja supervantajoso, que ele possibilite desmantelar um esquema gigantesco de corrupção, mesmo que o agente tenha cometido ato de improbidade grave.
ConJur — O senhor diz que é praticamente impossível definir um regime jurídico único para os quatro tipos de acordo potencialmente aplicáveis para atos ilícitos previstos na Lei de Improbidade Administrativa e na Lei Anticorrupção, pois esses instrumentos negociais foram fragmentados pela legislação. O senhor defende a edição de uma lei que padronize tais acordos?
Felipe Spinardi — Seria algo importante ter uma lei que padronizasse esses acordos. Talvez nem precisasse ser uma única lei. Já ajudaria muito se os regimes legais dos acordos fossem construídos tendo os outros em vista. Se o legislador, ao regulamentar o ANPC, levasse em conta o acordo de leniência, ajudaria muito para a solução desses casos.
Mas o fato é que há reformas legislativas que simplesmente ignoram a existência de outros mecanismos de resolução consensual.
ConJur — No que mais é possível avançar em termos de justiça negociada no Direito Administrativo?
Felipe Spinardi — Nós precisamos nos preocupar menos com reformas legislativas nesse momento e mais com a interação entre órgãos e soluções que visem dar interpretações homogêneas para aplicação dos instrumentos jurídicos. Por exemplo, a Lei de Improbidade Administrativa prevê a participação do Ministério Público, da entidade lesada e dos tribunais de contas nos acordos. Esse dispositivo está suspenso por conta de liminar do ministro do STF Alexandre de Moraes. São três entidades estatais com competências sobrepostas e que atuam muitas vezes de forma idiossincrática, uma questionando a outra. Então acordos de cooperação técnica, como aquele de agosto de 2020 em relação à leniência, são positivos. Houve uma resolução editada por uma série de entidades associativas relacionadas a tribunais de contas, visando à padronização mínima da participação dessas cortes na apuração do dano para os ANPCs. Esse tipo de interação entre órgãos é fundamental para que avancemos na justiça negociada e nas soluções administrativas negociais, garantindo segurança e visibilidade para as partes envolvidas. Não só para o beneficiário do acordo, mas também para as entidades estatais.
ConJur — Recentemente, três partidos ajuizaram ação no Supremo Tribunal Federal pedindo que sejam suspensos todos os pagamentos de acordos de leniência firmados antes de agosto de 2020, ou seja, pela “lava jato”. Como o senhor avalia essa ação? Dez anos após a sua criação, como estão os acordos de leniência no Brasil?
Felipe Spinardi — Especificamente em relação à ação, eu não posso falar muita coisa, porque eu não li os detalhes. Em relação aos acordos de leniência, o que eu posso dizer é que nós vimos que eles alavancaram bastante as investigações. Mas há um problema grande agora, pois as empresas não estão com capacidade de honrar essas obrigações, pelo menos não da forma que foram originalmente pactuadas. Estamos, no fundo, tratando de um contrato. Em um contrato administrativo de concessão, por exemplo, podem acontecer fatos supervenientes que levam a uma situação de inadimplência. Nesse cenário, é preciso pensar em soluções alternativas, para possibilitar o cumprimento do acordo por parte de quem colaborou com o Estado, com as investigações. Não é uma questão de “permitir o descumprimento dos acordos”. Estou falando de uma perspectiva estatal, de pensar nos ganhos para a administração pública decorrentes desses acordos. Também é necessário refletir sobre a função social das empresas, a manutenção de empregos, a movimentação econômica. Se quebrar essas empresas não era a solução lá atrás, por que seria agora? Se esses acordos forem um fiasco, gerando consequências extremamente prejudiciais para aqueles que o celebraram, que estímulo outras empresas e pessoas físicas terão para negociar com o Estado no futuro?
ConJur — Houve abuso na celebração de acordos de leniência na “lava jato”? Ela não deveria ter se preocupado mais com a preservação das atividades das empresas e de seus empregos?
Felipe Spinardi — Em alguns casos, sim. Nós vimos peças, notas jurídicas e declarações de procuradores admitindo essa sanha persecutória.
Sérgio Rodas é correspondente da revista Consultor Jurídico no Rio de Janeiro.