O juiz das garantias, recentemente validado pelo Supremo Tribunal Federal, não nasceu com a “lava jato”. Tal mecanismo é pensado como uma melhora do sistema processual penal brasileiro e seria necessário independentemente dos abusos cometidos no âmbito da força-tarefa de Curitiba.
É o que aponta Renato Stanziola Vieira, presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim) — cargo que ocupa desde o início deste ano. Para ele, considerar o juiz das garantias como “um revanchismo da ‘lava jato’ é empobrecer enormemente o debate”. O advogado lembra que essa figura já é conhecida em outros países há pelo menos meio século.
Em entrevista à revista eletrônica Consultor Jurídico, Vieira classifica o juiz das garantias como uma “excelente ideia”, de implementação “plenamente viável”. Porém, critica o entendimento do STF de que a competência desse magistrado deve acabar com o oferecimento da denúncia — e não com o recebimento. O presidente do IBCCrim acredita que a Corte “deixou de lado o motivo principal dessa alteração de competência, que é separar o que pode ser valorado por cada juiz”.
Outro tema destacado pelo advogado é a existência de um “fetichismo” de acordos no processo penal brasileiro. Segundo ele, a preferência pelas mais diversas opções de acordos desconsidera o “necessário esclarecimento dos fatos”. Assim, o acusado, que geralmente está em uma posição mais frágil, acaba aceitando acordos em casos de acusações exageradas, apenas para não ter que se defender em uma ação penal.
O presidente do IBCCrim também acompanha com atenção o desenrolar do julgamento do STF sobre a descriminalização do porte de drogas para consumo. De acordo com ele, “o cidadão tem que ser o responsável pelas suas autolesões” e não deve ser punido criminalmente por decidir fazer algo a si próprio.
Além de aproximar os usuários dos traficantes, a política atual, na opinião de Vieira, “patrocina um ponto de vista racista da Justiça Criminal”: sem critérios objetivos sobre o que é uso próprio, pessoas pretas, pardas, pobres e faveladas são rotineiramente abordadas nas ruas e encarceradas por qualquer quantidade de droga.
Leia a seguir a entrevista:
ConJur — Quais são os principais objetivos de sua gestão à frente do IBCCrim?
Renato Stanziola Vieira — Tenho o objetivo de manter nosso protagonismo em assuntos que digam respeito às ciências criminais. A continuidade do instituto com os objetivos que são os mesmos desde a sua fundação é muito importante. O IBCCrim tem o compromisso de melhorar o papel da Justiça criminal. Nós não podemos fechar os olhos ao estado de coisas de seletividade penal e letalidade policial, com vítimas que são majoritariamente negros e pobres. Temos que ser combativos a isso, pois tem a ver com o DNA do instituto, que é a promoção dos direitos humanos.
A formatação dos nossos cursos e posicionamentos segue uma política antirracista e antimisógina, que responsavelmente mostra o caminho equivocado de uma Justiça Criminal racista (um dos principais sinais que tem sido percebido pelo IBCCrim). Já alteramos o estatuto para que isso fique fora de dúvida e assumimos postura antirracista em manifesto que produzimos.
ConJur — Em quais casos o IBCCrim atua como amicus curiae nos tribunais superiores?
Renato Stanziola Vieira — Nós temos um departamento específico de amicus curiae, cuja coordenadora hoje é a procuradora da República aposentada Deborah Duprat. O instituto entra nos debates a partir da verificação de adequação aos seus fins estatutários e à centralidade para as ciências criminais brasileiras.
Há anos o IBCCrim já foi admitido no Recurso Extraordinário que trata da constitucionalidade do artigo 28 da Lei de Drogas. Também foi admitido no Habeas Corpus que trata do perfilamento racial. Recentemente também nos posicionamos nas questão da implementação do juiz de garantias e a propósito da inconstitucionalidade de departamentos de inquéritos e de execuções penais na Justiça estadual de São Paulo.
Existe uma questão recente no Superior Tribunal de Justiça que discute a possível tarifação de valoração da prova para se apreciar a embriaguez ao volante e o dolo eventual. O instituto também tem defendido, em mais de uma questão em andamento no Supremo Tribunal Federal, que a Justiça Militar é restrita a casos de crimes propriamente militares e que a Justiça civil deve prevalecer em tempos de paz, como por exemplo se debate na ADPF 289. O IBCCrim ainda atua como amicus curiae no STF na ADI 7.389, que trata da saudável Resolução 487, do Conselho Nacional de Justiça, sobre a política antimanicomial brasileira.
ConJur — O IBCCrim também elabora notas técnicas e pareceres sobre projetos de lei. Quais questões legislativas são prioridade para o instituto atualmente?
Renato Stanziola Vieira — Hoje, há um projeto, em andamento no Senado, que tenta alterar a composição do Conselho de Sentença do Júri com uma regra paritária na sua formação. Nós temos uma opinião de que essa alteração, para surtir algum efeito, deve vir no momento do alistamento dos jurados, e não só no momento da composição do conselho.
Nos chamou atenção recentemente um projeto de lei de autoria do senador Sergio Moro (União-PR), despido de razoabilidade, sobre ameaças ou possíveis ameaças a agentes públicos — com penas altíssimas, inclusive em situações de tentativa (independentemente do crime ser consumado).
Há um projeto legislativo para barrar o CNJ no cumprimento da sua política de encerramento dos manicômios judiciários, que vem sendo gestada há cerca de dez anos. Nós já elaboramos uma nota técnica elogiando a postura do CNJ.
ConJur — O juiz das garantias é uma boa ideia?
Renato Stanziola Vieira — É uma excelente ideia, que vem desde 2009 no cenário brasileiro. A comissão de juristas então responsável por fazer o novo Código do Processo Penal, que redundou no PLS 156/2009, veio trazer para o Brasil um aprimoramento civilizatório fundamental.
A ideia existe em alguns países europeus desde as décadas de 1970 e 1980: Itália, Espanha, Portugal, Alemanha. Com a onda reformista latino-americana, nos anos 1960, e com a consagração dessas reformas, no fim do último século e começo do atual, países como Colômbia, Chile, Uruguai, Paraguai, Costa Rica e Peru adotaram essa figura. Então, definitivamente esse tema não deveria causar surpresa no cenário brasileiro.
O que causa surpresa é a reação e a alegação da dificuldade que se tem de implementá-lo aqui. O juiz das garantias vem como uma ideia de uma nova repartição de competências por fase do processo. O motivo de ser dessa grande novidade não é a pressuposição de que um juiz é melhor do que o outro, ou de que um juiz vai apreciar a prova melhor do que o outro. A intenção é blindar o juiz da causa, tanto quanto possível, daqueles elementos de informação que vêm da investigação preliminar.
Qualquer pessoa, quando conhece alguma coisa e precisa decidir sobre ela no futuro, tem algumas pré-concepções. A figura do juiz das garantias vem para evitar que isso prelaveça no processo penal brasileiro.
Pela regra de competência da lei “anticrime” (de 2019), o juiz das garantias é quem aprecia os elementos para receber ou não a denúncia e encerra sua competência nesse momento. O outro juiz, que vai tocar o processo, tem o que se chama de originalidade cognitiva: ele começa, tanto quanto possível, a partir do zero, com o ineditismo de informação.
O legislador brasileiro, em 2008, alterou o artigo 155 do Código do Processo Penal, que diz: “O juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação”. Se o legislador deu esse sinal, o implemento do juiz das garantias, retirando do contato do juiz da causa aquilo que não foi produzido em contraditório, é um passo importante do ponto de vista de valoração da prova.
A implementação do juiz das garantias no Brasil, portanto, não seria um questionamento da pessoa do juiz (se o juiz é bom ou ruim). Não é esse o ponto. Não há uma pressuposição, nem desconfiança no juiz. Mas, do ponto de vista do tratamento da prova, de acordo com a lei brasileira, há um encaminhamento para que, de fato, o juiz que julga a causa leve em conta não os elementos de informação, mas sim a prova produzida em Juízo.
ConJur — O STF errou ao reduzir a competência do juiz das garantias?
Renato Stanziola Vieira — O STF entendeu que o juiz das garantias cessa sua competência com o oferecimento da denúncia, e que o recebimento da denúncia já fica para o juiz da causa. Isso me causa uma enorme preocupação, porque a grande modificação da figura do juiz das garantias é retirar do juiz da causa o contato com os elementos da informação prévios à denúncia (aquilo que não é produzido em contraditório).
O STF colocou como parâmetro algo diverso do que foi escolhido pelo legislador. O Supremo, com todo o respeito, deu um passo atrás, porque deixou de lado o motivo principal dessa alteração de competência, que é separar o que pode ser valorado por cada juiz.
Eu tributo esse entendimento do STF a uma má interpretação da essência dessa novidade. Nós ficaremos com uma repartição de competência esvaziada. Vai adiantar muito pouco repartir a competência se o motivo pelo qual houve essa ideia não foi levado em conta.
ConJur — É viável implementar o juiz das garantias em comarcas pequenas?
Renato Stanziola Vieira — Plenamente viável. As ideias vão desde um rodízio entre magistrados (em varas com juiz titular e auxiliar) até rodízio entre comarcas, com figuras que conglomerem mais de uma comarca — algo parecido com as seções judiciárias. Já houve sustentações e debates sobre isso, além de estudos do CNJ e do Conselho da Justiça Federal com várias sugestões que atestam a viabilidade da figura do juiz das garantias.
ConJur — No Amazonas, por exemplo, as comarcas são muito distantes entre si. Isso é superável?
Renato Stanziola Vieira — Esse é um fato material inequívoco, mas é um problema que já existe e que nós já temos de lidar. Se fosse levado a ferro e fogo esse argumento, as audiências de custódia também não poderiam ter qualquer eficácia lá. O juiz das garantias não é o vilão dessa distância territorial.
ConJur — Há uma carência de juízes no Brasil. Na maioria dos estados ainda há cargos vagos. Isso é um problema para a implementação do juiz das garantias?
Renato Stanziola Vieira — A figura do juiz das garantias não institui cargo algum. O texto constitucional leva a ideia de que, em se tratando de projeto de lei que institua a criação de cargos na administração pública direta ou indireta, deve haver dotação orçamentária prévia. O PL que instituiu o juiz das garantias não prevê criação de cargos, portanto fica ao largo desse debate orçamentário.
Não me parece que esse argumento orçamentário deve ser levado em conta. O Poder Judiciário sabidamente não é deficitário do ponto de vista financeiro. O STF entendeu que não haverá dificuldade orçamentária de implementar.
Com todo o respeito, o STF entendeu muito bem a questão lateral orçamentária, mas não entendeu a questão essencial, que é a da originalidade cognitiva.
ConJur — O juiz das garantias pode atrasar o andamento dos processos?
Renato Stanziola Vieira — Pelo contrário. Nós vivemos as experiências mais variadas no Brasil de que a especialização da Justiça faz com que ela seja mais célere. Há exemplos nítidos de varas específicas de combate ao crime organizado e varas de lavagem de dinheiro. O juiz das garantias vai desassoberbar os cartórios de inquéritos e otimizar os trabalhos na fase das causas propriamente ditas das ações penais.
ConJur — O juiz das garantias pode ser considerado uma resposta aos abusos vistos na “lava jato”?
Renato Stanziola Vieira — O legislador de 2019 pegou os mesmos dispositivos do PLS 156/2009 (que depois foi para a Câmara e virou PL 8.045/2010). Falar que isso é um revanchismo da “lava jato” é empobrecer enormemente o debate, porque a figura do juiz das garantias é conhecida há pelo menos meio século. Não existe um autor de processo penal cuidadoso que não tenha visto isso nos países que eu mencionei.
Então, isso definitivamente não tem conexão com o que aconteceu na “lava jato”. O juiz das garantias seria necessário independentemente da “lava jato”, pois é pensado como uma melhora do sistema processual penal brasileiro. A “lava jato” nos deu várias oportunidades para melhorarmos o sistema, mas o juiz das garantias não nasceu com a “lava jato”.
ConJur — Existe um “fetichismo” de acordos no processo penal brasileiro?
Renato Stanziola Vieira — Nós estamos seguindo inúmeros modelos de acordo: transação penal, suspensão condicional do processo, delação premiada, acordo de não persecução penal (ANPP) — inúmeras leis que preveem acordo para a extinção de punibilidade ou para a transformação de regime de pena e coisas do tipo. No frigir dos ovos, nós temos inúmeras saídas alternativas.
Essa tendência de possibilitar, de todas as formas, que um caso não chegue ao julgamento tem um pé nos EUA. As estatísticas provam que, nos EUA, 5% dos casos criminais chegam a julgamento. A enorme maioria é resolvida por acordos. Há também uma tendência europeia, desde a década de 1970, de saídas alternativas do processo penal.
O que eu vejo aqui é um risco epistemológico. Essa inflação de mecanismos de acordo acaba deixando de lado uma necessária e conhecida ideia do processo penal, que é um esclarecimento dos fatos. Nós temos que ver esse caminho que está seguindo o processo penal brasileiro com um pouco mais de cuidado, pois o acusado assume compromissos que, muitas vezes, envolvem prazos e penas alternativas logo no início dos processos, desconsiderando o necessário esclarecimento dos fatos.
O acusado, que costuma estar na posição mais frágil, tem que aceitar acordos porque há uma sobrevaloração de quem o acusa, com uma ameaça de um processo penal por fatos que, às vezes, são exagerados. O acusado, para não correr o risco de ter que se defender de uma acusação, acaba aceitando aquilo, para não se ver processado.
ConJur — O STF vem analisando o porte de drogas para consumo. Esse delito pode ser considerado uma autolesão?
Renato Stanziola Vieira — Do ponto de vista constitucional, nós precisamos tratar os cidadãos como adultos, sem sermos paternalistas. O cidadão tem que ser o responsável pelas suas autolesões. Quando alguém faz uma tatuagem, pratica uma lesão corporal contra si mesmo.
Do ponto de vista da política criminal, nós não podemos patrocinar um paternalismo penal que é, além de tudo, burro. Nós estamos punindo criminalmente quem decide fazer algo a si próprio. Estamos aproximando os usuários das pessoas que traficam efetivamente.
Além de tudo, essa é uma política que patrocina um ponto de vista racista da Justiça Criminal. Como nós não temos nenhuma margem de segurança do que é uso próprio e do que não é, as pessoas que mais facilmente são abordadas na rua são os pretos, pardos, pobres e favelados. Os índices do Fórum de Segurança Pública e os índices oficiais do governo estão aí para constatar isso. O índice de população brasileira presa como traficante é racializado. Se nós tivermos uma régua específica e científica para dizer o que é uso e o que não é uso, nós vamos evitar que essas pessoas — a maior parte delas pretas — sejam presas em flagrante nessas condições.
Nós precisamos do critério objetivo. Isso não é um ativismo do Poder Judiciário. Há muitos anos essa questão existe e o Legislativo não leva isso em conta. Isso não pode continuar assim. É uma política racista.
Agora, a conformação do próprio corpo de alguém que usa uma droga X não vale mais do que a conformação de outro que usa uma droga Y. Se há um critério objetivo para uma determinada droga, forçosamente se há de ter um critério objetivo para outra droga também. A dignidade de uma pessoa que usa uma determinada droga vale exatamente a mesma coisa que a dignidade daquela que usa uma outra droga.
ConJur — Existe uma polêmica sobre a obrigatoriedade ou não do procedimento previsto no inciso II do artigo 226 do CPP para o reconhecimento pessoal. O STJ e a 2ª Turma do STF consideram que ele é obrigatório. Já a 1ª Turma do Supremo considera que não, devido à presença da expressão “se possível”. Na sua opinião, qual é a interpretação correta?
Renato Stanziola Vieira — O “se possível” significa “sempre que possível”. É uma cláusula sobre o ideal, mas isso é um mandamento legal, não é uma recomendação.
Existe uma diferença muito grande entre estabelecer uma possibilidade fática e considerar que uma norma do CPP se trata de uma mera recomendação. Quando uma norma de processo penal é tratada como uma recomendação, tira-se sua efetividade.
A norma tem que ser olhada com mais boa vontade. Não se deve prestigiar a interpretação de que uma norma processual penal é uma mera faculdade.
O reconhecimento é visto como uma prova irrepetível. Quanto mais tempo se passa, a pessoa pode ser pega pelas falsas memórias e se confundir. Existem cada vez mais aparatos tecnológicos que possibilitam que esse reconhecimento seja feito com todo o cuidado possível. O cuidado com as formalidades e com a essência de todo o procedimento probatório é uma obrigatoriedade de todos os operadores do Direito para evitar injustiças epistêmicas.