Podemos conceituar a arbitragem como um “terroir” colaborativo entre partes, árbitros e advogados, sem diminuição de foco no exercício das respectivas funções. Esse “terroir” deve ser sustentado no princípio da autonomia livre e consciente da vontade das partes baseada na confiança recíproca e transparente.
Há vontade das partes em escolher e seguir pelo caminho da arbitragem. Há vontade dos árbitros em aceitar e exercer a função até final sentença, ou declinar, seja antes de iniciar ou no curso do processo. Existe, por fim, vontade dos advogados na condução colaborativa de assessoria jurídica no curso da arbitragem, seja antes, durante e depois.
Por meio da arbitragem, titulares de direitos disponíveis em disputa renunciam à jurisdição estatal e celebram um contrato particular para levarem a análise da questão a julgadores de sua escolha e confiança, tudo em decorrência da autonomia privada.
O árbitro é juiz de fato e de direito, de modo que a mais absoluta imparcialidade e independência do profissional é pressuposto indispensável para a validade do ato. Assim surgiu o que a doutrina internacional instituiu como a regra do duty of disclosure, ou dever de revelação.
Segundo esse princípio, aquele apontado para atuar como árbitro, antes de aceitar tal encargo, assim como durante todo o curso do procedimento arbitral, tem o dever de analisar pormenorizadamente o seu histórico profissional e social para se assegurar de que não possui qualquer vínculo ou circunstância que possa gerar dúvida quanto à sua imparcialidade e imunidade contra influências externas.
Nesse sentido, compete ao possível árbitro fazer essa averiguação sobre si mesmo e revelar às partes quaisquer fatos que possam comprometer a confiança nele depositada em relação à sua isenção e imparcialidade. Em outras palavras, incumbe ao árbitro zelar por sua própria aptidão para figurar como julgador naquele caso, antes e durante sua missão, e, constatando alguma situação atual ou superveniente que comprometa a lisura de sua participação, deve renunciar prontamente ou revelar o fato às partes, para que tomem a decisão.
No Brasil, tal regra está inserida na Lei 9.307/96, em seu artigo 14, caput e parágrafo primeiro, que assim dispõe:
Art. 14. Estão impedidos de funcionar como árbitros as pessoas que tenham, com as partes ou com o litígio que lhes for submetido, algumas das relações que caracterizam os casos de impedimento ou suspeição de juízes, aplicando-se-lhes, no que couber, os mesmos deveres e responsabilidades, conforme previsto no Código de Processo Civil.
§ 1º As pessoas indicadas para funcionar como árbitro têm o dever de revelar, antes da aceitação da função, qualquer fato que denote dúvida justificada quanto à sua imparcialidade e independência. (g.n.)
A estrita observância do dever de revelação está intimamente ligada à credibilidade e à integridade do próprio instituto da arbitragem, uma vez que este possui como pilar fundamental a disposição de vontade das partes, ou seja, esses indivíduos escolheram confiar a missão de decidir o destino dos seus direitos disponíveis em discussão àqueles julgadores privados, os quais, por sua vez, comprometeram-se ao elevado grau de transparência consubstanciado no artigo 14, §1º, da Lei de Arbitragem.
Nesse sentido o ensinamento de Ludmilla Camacho Duarte Vidal[1]:
O princípio da confiança ocupa papel central na arbitragem, tendo em vista que as partes renunciam expressamente à prestação jurisdicional estatal. Ao renunciarem à possibilidade de o conflito ser solucionado dentro da esfera institucional do Poder Judiciário, abrem mão de oportunidades jamais conquistadas na arbitragem, como a interposição de recursos, a observância do duplo grau de jurisdição, as ações próprias de desconstituição da coisa julgada, a concessão da tutela provisória no bojo do processo, além da fase de cumprimento de sentença nos autos.
É possível afirmar ainda que, na arbitragem, a ideia de imparcialidade e independência é tratada de maneira até mesmo mais rigorosa do que no Processo Civil Pátrio, vez que o dever de revelação alcança considerável maior amplitude do que aquelas hipóteses taxativas do artigo 144 e 145 do Código de Processo Civil. Isso porque ao árbitro não incumbe revelar somente as situações descritas nos mencionados artigos, porém todas aquelas capazes de gerar dúvida razoável quanto à sua imparcialidade.
O ilustre Professor Francisco José Cahali assim nos ensina[2]:
Muito mais do que as causas de impedimento e suspeição previstas no Código de Processo Civil, cabe ao indicado expor abertamente acontecimentos pessoais e profissionais envolvendo as partes e o conflito, que aos olhos dos interessados possam gerar alguma dúvida quanto à imparcialidade e independência.
A amplitude da expressão dúvida justificada, enquanto conceito vago, dá margem a uma extensa zona cinzenta. Mas diante da ambiguidade do texto, aliás, adequada às circunstâncias, o desprendimento nas informações será sempre salutar. O objetivo da regra é nobre: oferecer às partes o mais amplo conforto e segurança na aceitação do árbitro.
Interessante observar que a ideia de confiança nos árbitros escolhidos não tem nenhuma correspondência, por óbvio, com aquela depositada no advogado que representa a parte, ou seja, a parte que escolhe um árbitro não espera que ele, de alguma maneira, julgue a seu favor. Isso porque o árbitro é do processo, e não das partes, daí a importância do dever de revelação, no início e durante todo o curso do procedimento, para que ambas as partes tenham segurança e certeza da imparcialidade, da isenção e da independência de todo o corpo do tribunal arbitral.
Extrai-se da lição de Leonardo de Faria Beraldo[3]:
O dever de revelação ou duty of disclosure existe justamente para garantir que as partes tenham um julgamento imparcial e sem quaisquer interferências externas, daí a necessidade de se ter um julgador imparcial e independente, conceitos pelos quais inclusive já passamos. Ressalte-se que o dever de revelação persiste durante as fases pré-arbitral e arbitral, o que significa que os acontecimentos relevantes, que podem repercutir na arbitragem, devem ser sempre prontamente informados às partes, sob pena de responsabilidade civil do árbitro e até mesmo invalidade da sentença.
Para Selma Maria Ferreira Lemes[4]:
A confiança da parte depositada na pessoa do árbitro representa a certeza que este terá independência para julgar com imparcialidade, posto que a independência é um pré-requisito da imparcialidade.
Aquele indicado a atuar como árbitro tem o dever, antes de aceitar a nomeação, de efetuar verificação da existência de fatos que possam comprometer a sua independência e imparcialidade. Reitere-se, este dever se mantém durante todo o procedimento arbitral. Assim é que uma pessoa indicada a funcionar como árbitro deve perquirir sobre quem são as partes, seus vínculos societários, relações comerciais ou empresariais que possam denotar dependência funcional ou econômica. O dever de revelação se presta a demonstrar a inexistência de liames de natureza social (amigo íntimo ou inimigo figadal), financeira, comercial e de parentesco entre os árbitros e as partes.
De fato, essa confiança entre partes e árbitros pode ser considerada um dos principais motivos que levam os titulares de um direito controverso a retirarem a discussão da égide estatal e levarem ao “tribunal privado”; consequentemente, se não houvesse a regra da revelação, também conhecida como duty of disclosure, a fim de resguardar a confiança, a arbitragem estaria fadada ao fracasso[5].
Nota-se que o dever de transparência imposto ao árbitro não se refere tão somente à quebra da sua parcialidade, mas também à falha em revelar quaisquer fatos que potencialmente possam gerar essa dúvida sob a ótica de alguma das partes. Desse modo, descumprido o dever de revelação pelo árbitro diante da vinda à tona de uma informação comprometedora não revelada pelo árbitro oportunamente, discute-se a possibilidade de anular todo o procedimento já sentenciado. Para Amanda Arraes de Albuquerque Maranhão e João Ricardo Tavares [6]:
Muito embora a violação do dever de revelação não conste ipsis litteris no rol de nulidades da sentença arbitral, o fundamento pode ser extraído a partir da interpretação sistemática feita do artigo 32, incisos II, no qual se dispõe que a sentença será nula se emanada por aquele que não podia ser árbitro, e VIII, no qual se prevê a nulidade da sentença quando for desrespeitado o princípio da imparcialidade do árbitro, ambas da Lei de Arbitragem.
Seguindo a mesma linha, Ludmilla Camacho Duarte Vidal[7] defende que:
Quanto à possibilidade de se anular sentença arbitral proferida por árbitro que não observar em sua atuação os deveres de imparcialidade e independência, violados em função do não atendimento do dever de revelação, a regra autorizativa é bastante clara e se encontra no art. 32, inciso VIII. Essa regra nos remete nitidamente ao desrespeito aos princípios fundamentais do processo de que trata o art. 21, § 2º, da Lei de Arbitragem, conteúdo principiológico que se denomina de devido processo arbitral ou justo processo arbitral. A referida legislação prevê expressamente os seguintes princípios: contraditório, isonomia, imparcialidade do árbitro e o seu livre convencimento.
Não é necessária portanto a efetiva demonstração da suspeição ou do impedimento para macular o processo arbitral, basta o descumprimento do dever de revelação, por si só, para que a confiança das partes na isenção e independência dos julgadores seja abalada, o que pode levar à “contaminação” de todo o procedimento, como na teoria dos “frutos da árvore envenenada”, ainda que houvesse julgamento unânime com outros árbitros imparciais.
Posto isso, há que se tratar o chamado dever de revelação com a máxima seriedade e rigor, a fim de se preservar a integridade do processo arbitral e a convicção das partes na isenção dos julgadores escolhidos, caso contrário, a sentença arbitral estará condenada à nulidade, haja vista a quebra da confiança, pilar fundamental do instituto da arbitragem.
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Referências bibliográficas:
VIDAL, Ludmilla Camacho Duarte. O dever de revelação (duty of disclosure) à luz do princípio da confiança e o caso Tecnimont. São Paulo: Revista de Processo, vol. 284/2018, out/2018.
CAHALI, Francisco José. Curso de arbitragem: mediação; conciliação; tribunal multiportas. 7ª edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2018.
BERALDO, Leonardo de Faria. Curso de Arbitragem nos termos da Lei nª 9.307/96. São Paulo: Atlas, 2014.
LEMES, Selma Maria Ferreira. O Dever de Revelação do Árbitro e a Ação de Anulação da Sentença Arbitral. Disponível em: https://blog.grupogen.com.br/juridico/postagens/artigos/o-dever-de-revelacao-do-arbitro-e-acao-de-anulacao-da-sentenca-arbitral.
MARTINS, Pedro A. Batista. Dever de revelar do árbitro. In: WALD, Arnoldo (org.). Doutrinas essenciais: arbitragem e mediação, vol. I. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.
MARANHÃO, Amanda Arraes de Albuquerque; TAVARES, João Ricardo. A violação do dever de revelação do árbitro e as suas implicações para o processo arbitral. Revista de Arbitragem e Mediação. vol. 77. ano 20. p. 117-141. São Paulo: Ed. RT, abr./jun. 2023.
Fernando de Oliveira Marques é professor mestre da Faculdade de Direito e do Cogeae, da PUC-SP. Professor de Mediação e Arbitragem, Economia, Direito Econômico e Antitruste, Membro da Comissão Especial de Arbitragem da OAB-SP. Membro do Conselho Nacional das Instituições de Mediação e Arbitragem (Conima). Participa e coordena arbitragens desde 1996. Advogado e sócio fundador do Oliveira Marques Advogados Associados.