Repercutiu nos meios de comunicação o caso envolvendo as brasileiras Kátyna Baía e Jeanne Paollini, que foram presas após desembarcarem no aeroporto de Frankfurt, na Alemanha, sob acusação de tráfico internacional de drogas, após as autoridades daquele país terem identificado malas contendo 40 kg de cocaína no interior, cujas etiquetas de despacho continham o nome delas (leia aqui).
Após investigações conduzidas pela Polícia Federal no Brasil, apurou-se que a bagagem contendo a droga não pertencia às brasileiras, e que elas foram vítimas de um esquema de tráfico de drogas praticado por uma quadrilha que atua no Aeroporto Internacional de São Paulo, em Guarulhos, em que as etiquetas afixadas nas bagagens pelos funcionários da companhia aérea, no momento do despacho, foram posteriormente retiradas das malas por funcionários de uma empresa terceirizada pela companhia aérea para realizar o acondicionamento das malas nos contêineres que transportam a bagagem dos passageiros nos porão de carga das aeronaves.
Paralelamente à apuração da responsabilidade criminal dos envolvidos no esquema de tráfico de drogas, o caso desafia a análise da responsabilidade civil dos sujeitos envolvidos na cadeia de eventos que resultou em inquestionáveis prejuízos materiais e extrapatrimoniais às vítimas, sendo o que se propõe neste breve estudo de caso.
De imediato, identifica-se perfeitamente a relação de consumo entre as vítimas, a companhia aérea contratada e a sociedade empresária que administra o aeroporto de Guarulhos. No caso, a relação envolve a prestação de serviços. Por parte da companhia aérea, há a prestação de serviço de transporte; pela administração do aeroporto de Guarulhos, o serviço de infraestrutura aeroportuária, que envolve, entre outras obrigações, a garantia de segurança dos usuários dos terminais, sejam eles passageiros (destinatários finais) ou outras pessoas que transitem por suas dependências (consumidores por equiparação).
Firmada a premissa de que há relação de consumo, todos os fornecedores envolvidos na cadeia de fornecimento de produtos e serviços, por regra, respondem de forma objetiva [1] e solidária, nos termos do parágrafo único do artigo 7º [2] e do artigo 14 do CDC [3], conforme será detalhado adiante.
Analisando-se a relação jurídica entre as consumidoras e a companhia aérea, trata-se de relação contratual, cujo objeto é a prestação de serviço de transporte, cujo conteúdo é caracterizado por uma obrigação de resultado e de segurança, em que a companhia aérea se obrigou a transportá-las, bem como as respectivas bagagens, de forma segura, da origem até o destino, por força da chamada cláusula de incolumidade [4].
Voltando aos fatos, a partir do momento em que as malas das passageiras foram pesadas, etiquetadas e ingressaram na esteira de bagagens no guichê de check-in e despacho da companhia aérea, esta se tornou guardiã daquelas, garantindo que chegariam ao destino tal como lhe foram entregues na origem, nada importando para as consumidoras se na logística empregada no transporte das bagagens há outros players terceirizados pela companhia aérea para realizar o carregamento das bagagens. Isso porque, se o fornecedor terceiriza alguma etapa do fornecimento do serviço, atrai a aplicação do artigo 34 do CDC, que estabelece sua responsabilidade solidária pelos atos de seus prepostos ou representantes legais [5].
Passando-se à verificação da responsabilidade da administração do Aeroporto Internacional de São Paulo (Guarulhos), igualmente há, como visto, relação jurídica de consumo. Assim como ocorre com o transporte aéreo, trata-se de serviço público prestado por pessoa jurídica de direito privado (sociedade empresária), sob o regime de concessão pelo Poder Público, remunerado por tarifa, assim como ocorre na prestação de outros tipos de serviços públicos em que o Superior Tribunal de Justiça reconhece como submetidos à disciplina do CDC, v.g., serviços rodoviários [6], fornecimento de energia elétrica [7], fornecimento de água e tratamento de esgoto [8] e pedágio [9].
No caso da sociedade empresária que administra o aeroporto de Guarulhos, sua responsabilidade solidária tem fundamento na falha da segurança em relação ao controle de acesso dos trabalhadores que atuam no terminal do aeroporto.
A respeito da segurança no aeroporto de Guarulhos, Lito Sousa, especialista em aviação, esclareceu resumidamente, em live realizada em seu canal no YouTube [10], como funciona a segurança naquele local, descrevendo as diversas camadas de segurança criadas pela administração do aeroporto pelas quais os trabalhadores da área restrita do estabelecimento precisam passar para obter uma credencial para exercer suas funções.
Em síntese, são checados antecedentes criminais dos trabalhadores, em diversas esferas. Superada essa fase, o trabalhador obtém um crachá contendo um número que é reproduzido nas partes anterior e posterior do colete utilizado nas operações, e que é verificado pelos agentes de segurança aeroportuária (Apacs), havendo nesse número um código específico, controlado, inclusive, pela Polícia Federal, conforme esclarece o referido especialista.
Apesar de todas as camadas de segurança acima descritas, de alguma forma a segurança foi rompida, permitindo a efetiva ação de criminosos na área restrita do aeroporto, os quais retiraram as etiquetas fixadas nas bagagens pertencentes às vítimas, fixando-as nas malas contendo a droga traficada. Mas, à luz do Direito do Consumidor e do sistema de responsabilidade civil objetiva do fornecedor, pouco importa o modus operandi dos criminosos, pois, objetivamente, o que se busca é identificar a falha de segurança do estabelecimento, uma vez que o artigo 8º do CDC [11] consagra a teoria da qualidade [12], vinculada à cláusula de segurança de produtos e serviços no mercado de consumo.
Acrescente-se, ainda, que, com fundamento no princípio da confiança [13], o CDC não exige que o produto ou serviço ofereça segurança absoluta, mas um nível de segurança compatível com o que é legitimamente esperado pelo consumidor, individual ou coletivamente [14]. Nesse sentido, considerando-se que entre as principais características ostentadas por aeroportos está a oferta de um ambiente altamente controlado — e portanto seguro —, parece-nos possível afirmar que a expectativa de segurança da coletividade de consumidores que utilizam esses locais cria neles a confiança de que não sofrerão qualquer dano decorrente das operações neles realizadas.
Para concluir, em relação à natureza do dano sofrido pelas vítimas, não encontramos dificuldades para presumir que aquelas passaram por intensos sentimentos pânico, incertezas, pela humilhação de terem sido escoltadas algemadas pelo aeroporto de Frankfurt, pelo medo do que poderiam sofrer enquanto estiveram encarceradas, aguardando o desfecho do caso. A prisão injusta, inquestionavelmente, produz efeitos psicológicos que transcendem o que alguns órgãos do Poder Judiciário costumeiramente tacham como “mero aborrecimento”.
Some-se a isso o fato de as vítimas estarem em viagem de férias, que afinal foram arruinadas pelo episódio em questão. Nesse contexto, ganham relevância as teorias que propõem o direito do consumidor à compensação pelo tempo de vida perdido [15], em decorrência de ato ilícito do fornecedor, uma vez que o tempo que as vítimas reservaram ao lazer foi substituído por tempo no cárcere.
Ante tais considerações, pensamos que os danos extrapatrimoniais sofridos pelas duas brasileiras ocorreram in re ipsa, e sua extensão deve ser medida considerando-se a ocorrência do dano moral em sentido estrito (strictu senso) e a lesão ao seu tempo vital.
Parágrafo único. Tendo mais de um autor a ofensa, todos responderão solidariamente pela reparação dos danos previstos nas normas de consumo.
[3] Art. 14. O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos.
[5] “O art. 34 repete a idéia do sistema geral do direito civil, de que o empregador é responsável pelos atos de seus prepostos (art. 932, III, do CC⁄2002, antigo art. 1.521, III, do CC⁄1916), mas inova ao visualizar uma cadeia de fornecimento solidariamente responsável (todos e cada um por todos) entre o preposto (com vínculo trabalhista) ou o representante autônomo (sem vínculo trabalhista) e o fornecedor principal de produtos e serviço, ou organizador da cadeia de fornecimento de produtos e serviços. O CDC impõe a solidariedade mesmo àqueles que teoricamente são independentes, tendo em vista o fim comum, que é fornecer o produto e o serviço” (MARQUES, Claudia Lima. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. 2. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 510). No sentido da desnecessidade de vínculo trabalhista para a caracterização da preposição: “Para o reconhecimento do vínculo de preposição, não é preciso que exista um contrato típico de trabalho; é suficiente a relação de dependência ou que alguém preste serviço sob o interesse e o comando de outrem” (STJ, Resp 304.673, Min. Barros Monteiro, 4ª T., J. 25.09.2001, DJ. 11.3.2002).
[11] Art. 8° — Os produtos e serviços colocados no mercado de consumo não acarretarão riscos à saúde ou segurança dos consumidores, exceto os considerados normais e previsíveis em decorrência de sua natureza e fruição, obrigando-se os fornecedores, em qualquer hipótese, a dar as informações necessárias e adequadas a seu respeito.
Fernando Martins é promotor de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais, professor da Universidade Federal de Uberlândia e diretor do Brasilcon.