A Constituição de 1988 estipulou, como dever da família, da sociedade e do Estado, a necessidade de se assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, vários direitos, bem como de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão (artigo 227).
Uma das formas de densificar esta preocupação foi a previsão de toda uma legislação especial aplicável àqueles que a lei declarar como inimputáveis em razão da idade, que, no caso brasileiro, é 18 anos (artigo 228 da Constituição, artigo 27 do Código Penal e artigo 104 do ECA), o que é reconhecido como cláusula pétrea por parte importante da doutrina constitucionalista.
Percebe-se, no âmbito do Direito Internacional dos Direitos Humanos, a preocupação com a temática dos direitos das crianças submetidas a procedimentos nos quais se alegue ter infringido as leis penais, que é tratada, dentre outros diplomas, pela Convenção sobre os Direitos da Criança, de 1989, e pela Resolução da Assembleia Geral da ONU que estipulou as Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração da Justiça da Infância e da Juventude (Regras De Beijing), de 1985.
De acordo com o Comitê para os Direitos da Criança, órgão responsável pelo monitoramento da implementação da Convenção de 1989, em seu Comentário Geral nº 24/2019, apesar de não haver a fixação de uma idade mínima para responsabilização penal na Convenção (artigo 40), é recomendado aos Estados partes que não a reduzam em nenhuma circunstância [1], razão pela qual deve ser respeitada a escolha do constituinte de 1988 e do legislador.
Nesse sentido, fica claro que a necessidade de se estabelecer órgãos jurisdicionais especializados e um procedimento especial para atender de forma diferenciada e específica às questões referentes àqueles declarados como inimputáveis em razão da idade é também uma exigência da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), conforme o precedente “Instituto de Reeducação do Menor vs. Paraguai”, de setembro de 2004 (Exceções preliminares, mérito, reparações e custas, §209) [2].
Assim, debater o aprimoramento do processo de execução de medidas socioeducativas é algo de extrema relevância, tendo em vista que está em jogo a privação de direitos básicos de pessoas em desenvolvimento físico e psicológico, isto é, que estão no processo de formação de sua personalidade. Para além deste aspecto qualitativo, há, igualmente, um fator quantitativo: de acordo com a Pesquisa Nacional de Medidas Socioeducativas em Meio Aberto [3], realizada em fevereiro e março de 2018 pelo então Ministério do Desenvolvimento Social, há 117.207 adolescentes e jovens em cumprimento de medidas socioeducativas de liberdade assistida e/ou prestação de serviços à comunidade, quantitativo que representa 82% de todas as medidas socioeducativas aplicadas no Brasil — ou seja, as medidas de semiliberdade e internação estão compreendidas nos demais 28%, o que totaliza mais de 25.000 adolescentes e jovens.
Nesse contexto, um dos princípios regentes do processo de execução de medidas socioeducativas é o da legalidade, encontrado no artigo 35, inciso I, da Lei nº 12.594/2012, a Lei do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase). De acordo com a previsão normativa, tal princípio consiste na impossibilidade de o adolescente receber tratamento mais gravoso do que o conferido ao adulto. Em outras palavras, não é possível que, no processo de aplicação de medidas socioeducativas, o adolescente sofra um tratamento mais oneroso que o adulto no processo penal.
Como exemplo de aplicação deste princípio, é possível citar decisão monocrática do ministro Ricardo Lewandowski [4], do STF, que, mesmo sem mencioná-lo expressamente, fez valer seu fundamento, ao conceder ordem de Habeas Corpus para anular a sentença condenatória e determinar que outra fosse proferida após a oitiva dos adolescentes (pacientes do remédio constitucional) como último ato da instrução. Vale a transcrição do seguinte trecho de sua decisão: “caso entenda-se que a nova redação do artigo 400 do CPP propicia maior eficácia à defesa, penso que deve ser afastado o previsto nos artigos 184 e 186 do ECA, no concernente à oitiva do menor no início da instrução processual”.
Entretanto, encontram-se, no ordenamento jurídico pátrio, situações que desrespeitam o princípio da legalidade no processo de execução de medidas socioeducativas. Na jurisprudência do STJ, menciona-se, por exemplo, a tese nº 8 da edição nº 54 do compilado “Jurisprudência em Teses”, segundo a qual “a atenuante da confissão espontânea não tem aplicabilidade em sede de procedimento relativo à apuração de ato infracional”.
Sobre este tema, é importante mencionar, primeiramente, que a atenuante da confissão espontânea, prevista no artigo 65, inciso III, alínea “d”, do Código Penal, busca fundamento na lealdade processual [5].
Isso porque, como já explicitou o Supremo Tribunal Federal (STF) [6], o direito subjetivo de não se autoincriminar (artigo 5º, LXIII, da Constituição Federal e artigo 8º, item 2, alínea “g”, da Convenção Americana de Direitos Humanos) constitui uma das mais eminentes formas de densificação da garantia do devido processo penal e do direito à presunção de não-culpabilidade. Portanto, o indivíduo que confessa, espontaneamente, a prática delituosa, assume uma postura sobremodo incomum, pautada na lealdade: afasta-se do próprio instinto do autoacobertamento individual para colaborar com a elucidação dos fatos. Logo, merece ser beneficiário dessa sanção premial na qual consiste a atenuação de sua sanção.
O STJ, sabendo da importância da atenuante da confissão espontânea para o processo penal, em outubro de 2015, editou a Súmula nº 545, aduzindo que “quando a confissão for utilizada para a formação do convencimento do julgador, o réu fará jus à atenuante prevista no artigo 65, III, d, do Código Penal”. Posteriormente, foi editada também a Súmula 630, a qual assevera que “a incidência da atenuante da confissão espontânea no crime de tráfico ilícito de entorpecentes exige o reconhecimento da traficância pelo acusado, não bastando a mera admissão da posse ou propriedade para uso próprio”.
Recentemente, inclusive, a 5ª Turma do STJ, com base naquela súmula, firmou o entendimento de que o réu terá direito à diminuição da pena pela confissão sempre que houver admitido a autoria do crime perante a autoridade, independentemente de a confissão ser usada pelo juiz como um dos fundamentos da condenação, e mesmo que seja ela parcial, qualificada, extrajudicial ou retratada [7].
No tocante ao processo de aplicação de medidas socioeducativas, contudo, o entendimento do STJ se volta no sentido contrário, para afastar a aplicação da atenuante da confissão espontânea. Os argumentos são no sentido de que não haveria correlação lógica para a incidência [8], já que o ECA não teria, por escopo, a imposição de pena, como o Código Penal [9], além do fato de que não há dosimetria no processo de aplicação de medidas socioeducativas [10] e não há previsão legal que possibilite a incidência da atenuante [11].
Observando os votos dos ministros nos habeas corpus que serviram de parâmetro para a fixação da tese, percebe-se que nenhum deles faz referência ao citado princípio da legalidade. No HC nº 102.158, o ministro Felix Fischer expõe que as medidas de semiliberdade e de liberdade assistida não têm prazo determinado (ECA, artigos 118, §2º e 120, §2º) e, por isso, mesmo que fosse possível, o reconhecimento da aludida atenuante não produziria qualquer consequência.
No HC nº 192.371, o ministro Sebastião Reis Júnior diz, expressamente, que “a confissão espontânea não tem lugar para fins de abrandamento da medida socioeducativa aplicada, já que o ‘Estatuto Menorista’ não tem por escopo a imposição de pena, tal qual o Código Penal e, sim, de medida socioeducativa, que tem como função precípua a reeducação e reintegração do menor na família e na sociedade”.
Por fim, nos HC nº 330.926 e 332.1176, os relatores (respectivamente, ministro Nefi Cordeiro e Ribeiro Dantas) explicitam que, “inexistindo dosimetria em aplicação de medida socioeducativa, tampouco previsão legal para atenuação da medida em face da confissão do adolescente, não há se falar em aplicação de medida mais branda, unicamente, por tal motivo”.
Observa-se, nos votos condutores, conforme dito, que não houve preocupação em mencionar o princípio da legalidade na fundamentação para, ao menos, problematizar a questão. A razão de decidir (ratio decidendi) em todos os julgados está focada em uma suposta incompatibilidade entre a atenuante da confissão espontânea e a natureza do processo de medida socioeducativa, por vários motivos: pois neste último não existe dosimetria, porque não existe previsão legal, ou, ainda, em razão do escopo diverso entre a aplicação de uma pena e de uma medida socioeducativa.
Entretanto, se, como dito, a atenuante da confissão espontânea possui fundamento na lealdade processual, de modo a premiar aquele que espontaneamente procura colaborar com o processo, é plenamente possível que os juízos da infância e da juventude procurem uma forma de beneficiar o adolescente que confesse.
Isso porque, onde houver o mesmo fundamento, haverá o mesmo direito (ubi eadem ratio ibi idem jus) — ainda mais quando se tratar de medidas socioeducativas em meio fechado (semiliberdade e internção), por haver restrição à liberdade do adolescente, e também pelo fato de que, inegavelmente, as medidas socioeducativas têm por objetivo a responsabilização do adolescente quanto às consequências lesivas do ato infracional (artigo 1º, §2º, da Lei do Sinase), assim como as penas em relação aos adultos.
O ideal, portanto, seria que o legislador identificasse o problema e introduzisse, no ordenamento jurídico, de forma expressa, o dever de aplicação da atenuante da confissão espontânea no processo de execução de medida socioeducativa (solução de lege ferenda, ou seja, segundo a lei a ser criada), ante a omissão normativa (de lege lata, isto é, segundo a lei criada) e o entendimento do STJ acima mencionado.
Contudo, enquanto isso não for feito, se um dia assim entender o legislador, é possível que a defesa, desde o início do procedimento, pleiteie esse direito do adolescente, o que não afasta também a possibilidade de o Ministério Público, como fiscal da ordem jurídica, e de os magistrados, como um dos Poderes responsáveis pelo resguardo dos objetivos da República Federativa do Brasil (especialmente, neste caso, o de promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação, de acordo com o artigo 3º, inciso IV, da Constituição Federal), encamparem, igualmente, tal entendimento.
Uma solução que se vislumbra seria o reconhecimento, pelo juízo da infância e da juventude, de um limite máximo de execução das medidas socioeducativas, no caso concreto de um adolescente que confesse a prática do ato infracional, inferior àquele previsto em lei.
Exemplificando: tendo em vista que o STJ permite a diminuição da pena no patamar de 1/6 quando o acusado confesse espontaneamente a infração penal e o prazo máximo de internação do adolescente que comete um ato infracional não poderá ser superior a três anos (artigo 121, §3º, do ECA), prazo igualmente aplicável à medida socioeducativa de semiliberdade (artigo 120, §2º, do ECA), é plenamente razoável que o juízo da infância e da juventude limite o prazo máximo, àquele caso concreto, a dois anos e seis meses.
O raciocínio acima exposto pode encontrar obstáculo prático no caso da medida de liberdade assistida, haja vista que o artigo 118, §2º, do ECA prevê um prazo mínimo de seis meses, o qual não poderia ser relativizado por uma interpretação judicial, sob pena de indevido ativismo judicial e inegável violação à separação dos poderes. Contudo, é possível encontrar solução na redação do próprio dispositivo mencionado: a substituição da medida por outra menos gravosa, como prestação de serviço à comunidade, reparação do dano ou advertência.
Portanto, percebe-se que, com base no princípio da legalidade sob o manto do Sinase (artigo 35, inciso I, Lei nº 12.594/12), o processo de aplicação de medidas socioeducativas não pode ser mais oneroso que o processo penal, já que o adolescente não pode receber tratamento mais gravoso do que o conferido ao adulto. Isso significa que, se há um benefício reconhecidamente aplicado no processo penal, ele deve se fazer presente no processo socioeducativo. Assim, todo o esforço hermenêutico feito pelo STJ para negar a aplicação da atenuante poderia ter sido empregado no sentido de encontrar uma forma de reconhecê-la ao processo socioeducativo.
[11] HC nº 332.176/DF, relator ministro Ribeiro Dantas, Quinta Turma, julgado em 3/11/2015, DJe de 13/11/2015.