Giovanna Burti: Suspensão de atividades a agente do agro

Em 29 de dezembro de 2022 foi sancionada a Lei nº 14.515/2022, que ocasiona grandes impactos aos agentes privados atuantes nas cadeias produtivas do setor agropecuário, regulados pelo Mapa (Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento).

Referida legislação altera e revoga (total e parcialmente) leis e decretos que regem o tema, trazendo entre suas disposições diretrizes aos processos administrativos de fiscalização agropecuária, além de elencar medidas cautelares e penalidades a serem aplicadas aos agentes que incidirem em infração.

Como exemplo de norma parcialmente revogada tem-se a Lei nº 7.889/1989, regulamentada pelo Decreto nº 9.013/2017, que dispõe sobre a inspeção sanitária e industrial dos produtos de origem animal (e dá outras providências).

O artigo 2º, inciso IV, da supracitada Lei nº 7.889/1989, trazia expressamente a possibilidade de aplicação da pena de “suspensão de atividade” em havendo a prática de atividade de risco ou ameaça de natureza higiênico-sanitária ou o embaraço à ação fiscalizadora. Por sua vez, seu decreto regulamentar, concedia dupla natureza à “suspensão de atividade”: 1) medida cautelar, cabível nos casos de evidência ou suspeita de que um produto de origem animal oferecesse risco à saúde pública ou fosse adulterado (nos termos do artigo 495, inciso II) e 2) sanção (nos moldes do artigo 508, inciso IV), nos exatos termos da supracitada norma regulamentada.

Já a nova Lei nº 14.515/2022 traz junto ao artigo 26, inciso II, a “suspensão temporária de atividade” tão somente como uma medida cautelar (aplicável, conforme dispõe o caput, ante a evidência de que uma atividade ou um produto agropecuário represente risco à defesa agropecuária ou à saúde pública ou em virtude de embaraço à ação fiscalizadora), que deverá ser imediatamente cancelada quando comprovada a resolução da não conformidade que deu causa à sua aplicação.

O artigo subsequente (artigo 27) elenca as penalidades incidentes, mas prevê apenas a “suspensão de registro, de cadastro ou de credenciamento”, não incluindo, portanto, a “suspensão de atividade” como uma sanção típica.

Da conjuntura normativa supra, emerge a seguinte questão: ainda vige a pena de “suspensão de atividade”? Isso porque, em que pese a expressa revogação pela nova legislação (artigo 50, inciso VII) do supracitado artigo 2º da Lei nº 7.889/1989, extinguindo a possibilidade de penalização do infrator sanitário com a “suspensão de atividade”, ela foi silente com relação ao quanto previsto no decreto que a regulamentou.

Para solução da dúvida, primeiramente, deve-se considerar o nível hierárquico das normas conflitantes. Tem-se que o Decreto nº 9.013/2017 é uma norma meramente regulamentar/executiva, a qual tem por fundamento de validade a lei regulamentada (Lei nº 7.889/1989). Sendo assim, revogada a sanção em lei formal, ela não pode perdurar, de forma autônoma e independente, unicamente embasada em um preceito regulamentar.

Nesse sentido, o doutrinador Celso Antônio Bandeira de Mello [1] conceitua o regulamento no Direito brasileiro como um ato geral e (de regra) abstrato, de competência exclusiva do Chefe do Poder Executivo. Sua finalidade é produzir disposições operacionais uniformizadas necessárias para a execução de leis, cuja aplicação demande atuação da Administração Pública. Ademais, pontua que, de acordo com os dispositivos constitucionais que caracterizam o princípio da legalidade, o regulamento é ato estritamente subordinado, considerado meramente subalterno e dependente de lei.

Em segundo plano, deve-se considerar, ainda, a extensão da compatibilidade entre as normas, seguindo parcela de entendimento doutrinário (a exemplo de Hely Lopes Meirelles [2]), jurisprudencial (destacando-se posicionamento do STJ [3]) e as regras gerais do direito brasileiro, notadamente a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Lindb), precisamente o artigo 2º, §1o.

No caso em apreço, tem-se que os textos do Decreto nº 9.013/2017 e da nova Lei nº 14.515/2022 são compatíveis apenas com relação à possibilidade de utilização da medida a cunho acautelatório. Portanto, pode-se concluir que há a “revogação tácita” do supracitado artigo 508, inciso IV, do Decreto nº 9.013/2017, que caracterizava a suspensão de atividade como uma penalidade típica, tornando-a inaplicável.

Considerando esse cenário, não se pode admitir que o administrador público permaneça aplicando a sanção de suspensão de atividade de forma autônoma (ou seja, tão somente embasado no Decreto nº 9.013/2017, que não mais se sustenta), situação que, não raramente, vem sendo observada no exercício da fiscalização agropecuária, notadamente na inspeção sanitária e industrial dos produtos de origem animal.

Sendo assim, nos processos administrativos e judiciais em curso, cuja discussão abrange o cabimento e/ou a proporcionalidade da sanção em debate, imperioso que a autoridade responsável promova sua anulação [4], especialmente à luz do princípio da novatio legis em mellius que impera no Direito Administrativo Sancionador, consagrado pela jurisprudência pátria [5].

Destarte, caso os agentes privados atuantes no setor agropecuário sejam surpreendidos com a aplicação da sanção de suspensão de atividades em caráter definitivo, e não meramente cautelar, devem questioná-la, seja perante a própria administração pública e/ou judicialmente, valendo-se dos mecanismos legais cabíveis.

 


[4] Não se alegue o cabimento da conversão da suspensão de atividade em multa (combinado com a celebração de termo de ajustamento de conduta), pois a Lei nº 14.515/2022 trouxe essa possibilidade exclusivamente ante as penas de suspensão de registro, de cadastro ou de credenciamento ou cassação de registro, de cadastro ou de credenciamento, conforme dispõe o artigo 37, §3º.

Giovanna Antonella Pannuto Burti é advogada no escritório Tojal Renault Advogados e especialista em Direito Administrativo pela PUC-SP.

Consultor Júridico

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