A injúria relacionada à orientação sexual, embora ainda não esteja tipificada, é reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) como uma forma de racismo, compreendido em sua dimensão social. Como tal, ofensas homofóbicas se constituem em crimes de ação penal pública, cujo titular é o Ministério Público (MP).
Com base nesse entendimento, a 9ª Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) proveu recurso em sentido estrito interposto pelo MP e recebeu denúncia contra um homem acusado de injuriar um casal de mulheres com expressões homofóbicas. O crime imputado foi o do artigo 140, parágrafo 3º, do Código Penal.
“A conduta narrada na exordial é, de fato, apta a lesionar o bem jurídico tutelado pela norma —a igualdade, a honra subjetiva do indivíduo —, sendo, efetivamente, o processamento do crime de competência do Ministério Público”, anotou o desembargador Roberto Grassi Neto, relator do recurso.
O juiz José Romano Lucarini, da 1ª Vara Criminal de Santos, havia rejeitado a denúncia sob o fundamento de carência de pressuposto processual (artigo 395, inciso II, do Código de Processo Penal). Segundo ele, por se tratar de crime de ação privada, o MP não seria parte legítima para ajuizá-la.
“Com o devido respeito, não é o caso de uma injúria racial com motivação homofóbica. A homofobia foi, isto sim, o próprio móvel da vontade do agente. A atitude sob exame não teve como pano de fundo qualquer questão racial”, justificou o magistrado. Para ele, não é cabível uma interpretação mais extensiva, sob pena de se criar um tipo penal.
No entanto, conforme apontou o relator, a lacuna legislativa citada pelo juiz já foi objeto do julgamento conjunto, pelo STF, em 13 de junho de 2019, da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) 26, do Distrito Federal, e do Mandado de Injunção (MI) 4.733, também do DF.
Grassi observou que o STF “reconheceu a mora” do Congresso Nacional para incriminar atos atentatórios a direitos fundamentais dos integrantes da comunidade LGBTQI+ e decidiu, por maioria de votos, pelo enquadramento da homofobia e da transfobia como racismo, até que seja editada a respectiva lei.
Conforme os acórdãos da ADO 26/DF e do MI 4.733/DF, “as condutas homofóbicas e transfóbicas, reais ou supostas, que envolvem aversão odiosa à orientação sexual ou à identidade de gênero de alguém, por traduzirem expressões de racismo, compreendido este em sua dimensão social, ajustam-se, por identidade de razão e mediante adequação típica, aos preceitos primários de incriminação definidos na Lei nº 7.716, de 08/01/1989”.
Ainda segundo essas decisões do STF, “o conceito de racismo, compreendido em sua dimensão social, projeta-se para além de aspectos estritamente biológicos ou fenotípicos, pois resulta, enquanto manifestação de poder, de uma construção de índole histórico-cultural motivada pelo objetivo de justificar a desigualdade e destinada ao controle ideológico, à dominação política, à subjugação social e à negação da alteridade, da dignidade e da humanidade daqueles que, por integrarem grupo vulnerável (LGBTI+) e por não pertencerem ao estamento que detém posição de hegemonia em uma dada estrutura social, são considerados estranhos e diferentes, degradados à condição de marginais do ordenamento jurídico”.
Para o relator, representa violação ao princípio constitucional da proporcionalidade excluir da proteção da norma do artigo 140, parágrafo 3º, do CP, os atos atentatórios à honra subjetiva, em razão da orientação sexual. Acompanharam o seu voto os desembargadores Alcides Malossi Junior e Silmar Fernandes.
No processo, segundo o MP, as vítimas, que são companheiras, caminhavam de mãos dadas e o acusado as chamou de “sapatões”. A denúncia detalha que o homem as segurou pelo braço e, entre outras grosserias, também declarou: “vem aqui que eu vou te ensinar a ser mulher, suas sapatões (sic)”. Os fatos ocorrem em junho de 2022.
Rese 0012439-40.2022.8.26.0562