Em 1986, foi editada a Lei n° 7.498 dispondo sobre o exercício da enfermagem, tendo a Lei n° 14.434, de 2022, acrescido dispositivos para prever piso salarial nacional dos enfermeiros contratados sob o regime celetista no valor de R$ 4.750,00, com pisos proporcionais aos técnico e auxiliar de enfermagem e parteira. Para os servidores públicos civis da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios, autarquias e fundações, também foi fixado o mesmo valor do piso, independentemente de situação demográfica, geográfica, epidemiológica e socioeconômica e a natureza dos serviços de saúde [1].
Contudo, antes da publicação da referida Lei n° 14.434, em agosto de 2022, foi promulgada a Emenda Constitucional n° 124, em julho de 2022, para acrescer ao artigo 198, os §§12 e 13, para dispor que lei fixaria o valor do piso da enfermagem. Meses após a edição da Lei n° 14.434, foi promulgada a Emenda Constitucional n° 127 promovendo alterações na Constituição, em especial no artigo 198, ao qual acresceu os §§14 e 15, para obrigar a União a prestar assistência financeira aos entes federativos e às entidades privadas da saúde que prestam serviços ao SUS mediante ajustes jurídicos.
Essas mudanças, consideradas inconstitucionais pela Confederação Nacional de Saúde, Hospitais, Estabelecimentos e Serviços (CNSaúde), ensejou a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 7222 ADI-MC-Ref-Segundo) frente ao STF, cujo julgamento foi concluído em junho de 2023, com publicação em julho.
Em maio de 2023, foi editada a Portaria GM/MS n° 597, estabelecendo critérios e parâmetros relacionados à transferência de recursos para a assistência financeira complementar da União destinada ao cumprimento dos pisos salariais nacionais dos enfermeiros, técnicos, auxiliares e parteiras, exercício 2023, de que trata a EC n° 127 ora referida.
A decisão do STF na ADI 7.222, determina, em resumo, que:
a) Servidores públicos civis da União, autarquias e fundações públicas federais: a implementação do piso salarial nacional deve ocorrer na forma prevista na Lei n° 14.434/22, que alterou a Lei n° 7.498/86.
b) Servidores públicos dos Estados, Distrito Federal e Municípios, autarquias e fundações, bem como aos profissionais contratados por entidades privadas que atendam, no mínimo, 60% de seus pacientes pelo SUS: a) a implementação da diferença remuneratória resultante do piso salarial nacional deve ocorrer na extensão do quanto disponibilizado, a título de assistência financeira complementar, pelo orçamento da União; b) eventual insuficiência da assistência financeira complementar mencionada no item 2.a da Decisão, instaura o dever da União de providenciar crédito suplementar, cuja fonte de abertura serão recursos provenientes do cancelamento, total ou parcial, de dotações tais como aquelas destinadas ao pagamento de emendas parlamentares individuais ao projeto de lei orçamentária destinadas a ações e serviços públicos de saúde ou direcionadas às demais emendas parlamentares, incluídas as de relator.
c) Não sendo tomada a providência acima mencionada, não será exigível o pagamento do piso pelos demais entes federativos.
d) O piso salarial deve ser pago de modo proporcional a carga horária que seja inferior a oito horas-dia ou 44 horas-semana.
e) Profissionais celetistas, a implementação do piso salarial nacional deverá ser precedida de negociação coletiva entre as partes, como exigência procedimental imprescindível, levando em conta a preocupação com demissão em massa ou prejuízos para os serviços de saúde.
f) Não havendo acordo coletivo, incidirá a Lei n° 14.434, de 2022, desde que decorrido o prazo de sessenta dias, contados da data da ata do julgamento.
g) Incidência dos efeitos da decisão do STF para os servidores públicos da União, dos Estados, do Distrito Federal e profissionais contratados pelas entidades mencionados na Decisão do STF (item 1 e 2) devem observar o disposto na Portaria GM/MS n° 597, de 2023.
Mesmo após a decisão do STF na ADI 7.222 e a Portaria ministerial, dúvidas ainda persistem, especialmente para os estados e municípios. Daí o Ministério da Saúde (MS) ter publicado recentemente (agosto/2023), Cartilha sobre o Piso da Enfermagem dispondo sobre a aplicabilidade da legislação, sem, contudo, esgotar a matéria.
Preliminarmente importa dizer sobre a abrangência do conceito de servidores públicos civis para fins de recebimento do piso salarial, que deve compreender os servidores públicos de regime estatutário e celetista da Administração Direta e Indireta, como as citadas autarquias e fundações, havendo que se entender que as empresas públicas de saúde federais, como o Hospital de Clínicas de Porto Alegre, o Grupo Hospitalar Conceição, vinculados ao Ministério da Saúde, estão incluídas nessa obrigatoriedade de cumprimento do piso e devem ter previstos em seus orçamentos federais, recursos para tal despesa.
Lembramos, ainda, da Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (Ebserh), empresa pública vinculada ao MEC, que também está obrigada ao pagamento do piso da enfermagem nos hospitais universitários federais que administra, cabendo à União garantir ao MEC as dotações orçamentárias necessárias, sem, contudo, incluí-las nos cálculos do piso da saúde, que somente podem ser as despesas discriminadas na LC n° 141, de 2012, com destaque para o seu artigo 12;
Este artigo pretende se debruçar quase que exclusivamente no conceito de entidades filantrópicas e de prestadores de serviços privados, conforme redação do §14 do artigo 198 da EC n° 127/2022, que obriga a União a prestar assistência financeira complementar aos estados, ao Distrito Federal e aos municípios e às entidades filantrópicas, bem como aos prestadores de serviços contratualizados que atendam, no mínimo, 60% (sessenta por cento) de seus pacientes pelo sistema único de saúde, para o cumprimento dos pisos salariais. O texto constitucional refere-se aos entes federativos; as entidades filantrópicas; e aos prestadores de serviços contratualizados (com entes ou entidades SUS).
Inicialmente, cumpre definir a natureza orçamentária da assistência financeira devida pela União. Nos termos da Lei n° 4.320, de 1964, essa assistência financeira, também denominada de auxílio na Cartilha do Ministério da Saúde, tem natureza de subvenção social. Regis Fernandes de Oliveira [2] conceitua a subvenção ou auxílio como “forma de suplementação de recursos, nos campos especiais da assistência social, médica e educacional ou para cobrir insuficiência de caixa de entidades estatais”. Ainda segundo o autor, as subvenções, de forma geral, somente servem para atender as despesas de custeio, que são as dotações orçamentárias para manutenção de serviços, conservação de obras e de bens móveis”, com o §3° da Lei n° 4.230, de 1964, definindo-a como transferências que se destinam a instituições públicas ou privadas de caráter assistencial ou cultural, sem finalidade lucrativa.
O texto constitucional, além de mencionar os entes federativos (estados, DF e municípios), discriminou duas categorias de entidades privadas: as filantrópicas e os prestadores de serviços contratualizados que prestem mais de 60% de seus serviços ao SUS. Importante definir à luz dos preceitos constitucionais e legais, quem são as entidades e os prestadores de serviços, dado que a redação constitucional não o fez e a sua interpretação deve se dar à luz de preceitos da própria Constituição e do arcabouço jurídico regente da matéria.
O Ministério da Saúde, na Portaria GM/MS n° 597, de 2023, definiu essas duas categorias de entidades privadas, de um modo um pouco diferente, ao disciplinar o seguinte:
1) entidades sem fins lucrativos que participam de forma complementar do SUS (não utilizou a expressão entidades filantrópicas); e
2) prestadores de serviços de saúde, de qualquer natureza, que participam de forma complementar do SUS, com prestação de no mínimo 60% de seus serviços.
A redação da Portaria visa interpretar o que sejam entidades filantrópicas (entidades sem finalidades lucrativas em geral) e prestadores de serviços de saúde, de qualquer natureza, que participem de forma complementar do SUS, mediante ajuste jurídico.
Esclareça-se que a participação complementar no SUS refere-se tão somente às entidades privadas, que podem ser com ou sem finalidades lucrativas (§1° do artigo 199 da CF). Desse modo a expressão qualquer natureza empregada na Portaria ao referir-se aos prestadores de serviços, significaria somente as entidades privadas sem fins lucrativos, com ou sem Cebas (antiga filantropia), por não poder ser consideradas a entidade pública como participante complementar do SUS. Na realidade esta é o próprio SUS, (Administração Direta e Indireta). A Cartilha do Piso da Enfermagem, por sua vez, trata desse tema em seus itens 5, 9,10,11 e 15.
O item 11 da Cartilha, que dispõe sobre quais estabelecimentos de saúde privados têm direito a receber o auxílio federal para o pagamento do piso salarial da enfermagem, esclarece tratar-se de instituições privadas filantrópicas ou não, que atendam no mínimo 60% dos pacientes pelo SUS e que tenham contrato com o gestor local na forma do Anexo 2, do Anexo XXIV, da Portaria de Consolidação GM/MS n° 2, de 2017.
Por sua vez, a Portaria de Consolidação 2, de 2017, no Anexo XXIV, do Anexo 2 – que fixa diretrizes para a contratualização de hospitais no âmbito do SUS (anterior PRT MS/GM 3410/2013), estatui o seguinte:
“Artigo 1º Ficam estabelecidas as diretrizes para a contratualização de hospitais no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS) em consonância com a Política Nacional de Atenção Hospitalar (PNHOSP).
Artigo 2º As disposições deste Anexo se aplicam a todos os entes federativos que possuam sob sua gestão hospitais integrantes [3] do SUS:
I – públicos com, no mínimo, 50 leitos operacionais;
II – privados com fins lucrativos com, no mínimo, 50 leitos operacionais; e
III – privados sem fins lucrativos com, no mínimo, 30 leitos operacionais, sendo pelo menos 25 destinados ao SUS.”
Pela redação da Portaria de Consolidação, artigo 2°, inciso II e III (uma vez que o inciso I refere-se as entidades públicas), todas as entidades privadas, com ou sem fins lucrativos, ali referidas, estão compreendidas na expressão instituições privadas filantrópicas ou não, que atendam no mínimo 60% dos pacientes pelo SUS e que tenham contrato com o gestor local, (item 11 da Cartilha). Assim a Cartilha conceituou quem são as entidades filantrópicas e os prestadores de serviços contratualizados, conforme disposto do artigo 198, §14.
Em acordo a interpretação do Ministério da Saúde, são elegíveis para receberem a assistência financeira da União (também denominada de auxílio pela Cartilha) para pagamento do piso salarial da enfermagem, as entidades sem fins lucrativos, com ou sem certificado de entidade beneficente de assistência social (Cebas) como exemplo as qualificadas como organizações sociais ou organização da sociedade civil de interesse público (Oscip); as associações privadas da área da saúde denominadas de serviço social autônomo; as associações e fundações privadas; as entidades privadas lucrativas, desde que qualquer uma delas prestem no mínimo 60% de seus serviços ao SUS e mantenham ajuste jurídico com o poder público estadual, distrital ou municipal.
Aqui abrimos um parênteses para esclarecer que anteriormente à Constituição atual, as entidades sem fins lucrativos poderiam ou não ser certificadas, em acordo à normatividade regente à época (Lei n° 91, de 1935 [4], dentre outras), como entidades filantrópicas. A Constituição, artigo 195, §7° e Lei Complementar n° 187, de 2021 regulam hoje a matéria. Assim as entidades privadas sem fins lucrativos, que atuam na área da saúde, educação e assistência social, podem obter o certificado de entidade beneficente de assistência social, não mais existindo a certificação ou o título de entidade filantrópica dada pelo poder público anteriormente, substituído pelo Cebas.
A questão que deve aqui ser apreciada está na interpretação alargada e não restrita dada pela Cartilha do Ministério da Saúde aos prestadores de serviços de saúde contratualizados que prestam no mínimo 60% de seus serviços ao SUS, ao incluir as entidades com finalidades lucrativas, conforme Portaria de Consolidação n° 2.
Essa modalidade de assistência financeira, ou auxílio, conforme mencionado na Cartilha, que cabe à União prestar aos entes e entidades da saúde para complementação do pagamento do piso salarial da enfermagem, por se enquadrar na categoria financeira de subvenção social, conforme mencionado acima, da Lei n° 4.320, de 1964, encontra restrições constitucionais e legais.
Desse modo, a interpretação a ser dada a expressão prestadores de serviços de saúde contratualizados deve ser feita à luz da própria Constituição para não gerar conflito interpretativo, antinomia jurídica constitucional, pelo fato de a Constituição, artigo 199, §2°, vedar expressamente a concessão de auxílio ou subvenção às pessoas jurídicas com finalidades lucrativas na área da saúde:
“Artigo 199, §1°: ‘é vedada a destinação de recursos públicos para auxílios ou subvenções às instituições privadas com fins lucrativos’.”
Assim a hermenêutica consonante à Constituição é a de que entidades filantrópicas seriam as entidades privadas sem fins lucrativos certificadas como entidade beneficente de assistência social (que sucedeu a antiga certificação de filantropia); e os “prestadores de serviços contratualizados”, seriam as entidades sem fins lucrativos sem certificação Cebas, que mantém qualquer forma de ajuste jurídico com o SUS (contratualização), como poderiam ser as organizações sociais, as Oscips, as associações e fundações privadas sem o título de entidade beneficente de assistência social. (Cabe aqui observar que as organizações sociais se obrigam a prestarem 100% de seus serviços ao SUS, sempre).
Outro entendimento não seria possível, uma vez que a assistência financeira federal prevista no §14, artigo 198 da Constituição, é uma subvenção social, conforme a Lei n° 4.320, de 1964, vedada a sua concessão pela Constituição às entidades privadas lucrativas, ainda que mantenham contrato com entes ou entidades públicas do SUS, até porque nesses casos, a lei regente das relações contratuais seria a lei das licitações e contratos a que estão submetidas.
Desse modo, a redação da Cartilha ao estender a assistência financeira federal às entidades contratualizadas com fins lucrativos que prestem 60% de seus serviços ao SUS, sob qualquer modalidade de ajuste jurídico, fere o disposto no §2° do artigo 199 da Constituição.
Contudo, as empresas, sociedades privadas que prestam serviços ao SUS na ordem de 60% de seus serviços, obrigadas a pagar o piso da enfermagem, observados os acordos coletivos de trabalho, estão sob o regime da Lei de Licitações e Contratos (Lei n° 8.666, de 1993 e Lei n° 14.133, de 2021), quando cabe então revisão das cláusulas econômico-financeiras do contrato por fato superveniente que rompa com o equilibro econômico contratual, prejudicando o seu cumprimento.
Na realidade, o SUS atua com três regimes distintos de prestadores de serviços: 1) o regime contratual sujeito à lei de licitação e contratos incidente sobre às entidades com finalidades lucrativas e as sem fins lucrativos, dependendo da situação negocial (Lei de Licitação e Contratos); 2) o regime da complementaridade de serviços que faltam ao poder público, mas existente no setor privado, com preferência para as entidades sem fins lucrativos, mediante ajustes jurídicos próprios (artigo 26 da Lei n° 8.080, de 1990); 3) o regime das parcerias e fomento público com organizações sociais, Oscips, associações, fundações privadas etc., mediante celebração de convênios, contrato de gestão, termos de fomento ou de colaboração, dentre outros (regido por leis diversas), sujeitas a ajustes jurídicos, sendo todas as entidades, sem finalidades lucrativas, com ou sem Cebas. Para os dois últimos (itens 2 e 3), a subvenção é admitida, enquanto para as primeiras 1), as lucrativas, é vedado.
Talvez a medida mais correta seria a revisão dos valores dos procedimentos de saúde SUS que incluem enfermagem e correspondentes aditamentos aos ajustes firmados. O próprio STF eximiu os entes federativos e as entidades contratualizadas (sem fins lucrativos), sem condições financeiras, do pagamento do piso, caso a União não efetive a assistência financeira devida, o que pressupõe ônus financeiro unilateral não previsível e superveniente (fato do príncipe). O aditamento dos ajustes jurídicos é obrigatório em todas as situações, para todos.
Outra questão, são as formas de contratação pelo poder público de pessoal para a saúde. Não há tão somente no serviço público da saúde, servidores civis estatutários e celetistas. Há as cooperativas, a pessoa jurídica individual e a pessoa física autônoma. Incidiria sobre esses contratos — que não são de pessoal, pois seria obrigatório o concurso público — a obrigação de a União prestar assistência financeira? No nosso entendimento esses contratos são de prestação de serviços e não de pessoal.
Por conclusivo, a assistência financeira é devida pela União aos entes federativos (Administração Direta e Indireta), e consequentemente aos seus prestadores de serviços privados de saúde, em no mínimo 60% de sua capacidade, sem fins lucrativos, para a complementação do pagamento do piso salarial da enfermagem, conforme decisão do STF.
Como as entidades privadas com finalidades lucrativas regidas pela Lei de Licitações e Contratos podem pedir revisão de seus contratos, caso fique demonstrado o desiquilíbrio econômico-financeiro com o piso salarial da enfermagem, caberia à União, Ministério da Saúde, rever os valores das transferências interfederativas obrigatórias para incluir esse ônus financeiro que recairá sobre os entes contratantes, que são os estados, o Distrito Federal e os municípios, injustamente.
O SUS, na realidade, precisa melhorar o seu financiamento para então prever valores compatíveis com seus custos reais, especialmente, os valores do rateio federativo, em ação conjunta Executivo-Legislativo. O esforço que ambos os poderes empreenderam para custear a nova despesa do piso da enfermagem, criando situações esdruxulas, como a assistência financeira federal ao setor público e privado, quando o mais simples e correto seria melhorar o financiamento da saúde para possibilitar compatibilizar seus recursos com as suas necessidades reais, o que não exigiria a criação de toda essa engenharia jurídica, orçamentária e financeira, bastante complexa.
Lenir Santos é advogada sanitarista, doutora em saúde coletiva pela Unicamp, professora colaboradora da Unicamp e presidente do Instituto de Direito Sanitário Aplicado (Idisa).