Macedo Jr.: Liberdade acadêmica ou liberdade de expressão?

A universidade não é a praça pública, onde todos têm o direito de falar qualquer coisa. Mas nela estão garantidos os direitos necessários para que realize o seu fim de busca e produção do conhecimento

O tema da liberdade de expressão tem atraído crescente interesse por parte da população, da academia e do sistema de justiça. As manifestações políticas, o ativismo na internet e, também, a polarização do debate político forneceram amplo material para novas decisões e reflexões sobre o tema. A politização de ambientes estranhos à esfera estritamente pública, como as instituições de ensino e pesquisa, em particular a universidade, também gerou novos questionamentos acerca do significado e extensão da ideia de liberdade acadêmica. Para muitos, a liberdade acadêmica não é senão um caso particular da liberdade de expressão em geral e estaria regulada pelos mesmos princípios. Entendo que esta observação é problemática e potencialmente enganosa.

Para entender a questão é importante entender quais são algumas das principais fundamentações usualmente invocadas para a proteção da liberdade de expressão em geral, realizada no âmbito da esfera pública, como a liberdade de expressão de natureza política, religiosa e artística. Existem basicamente três justificativas para a liberdade de expressão, por vezes defendidas com fundamentos exclusivos, por vezes pela sua combinação e soma.

São elas: 1) a sua importância para o desenvolvimento do conhecimento, visto que ela garantiria que o mercado de ideias seria capaz de fomentar e aperfeiçoar o processo de conhecimento; 2) a função ética, de permitir o desenvolvimento e a autorrealização do ser humano, através da garantia de sua aspiração de autoexpressão e 3) o seu papel político de facilitação do processo político necessário ao autogoverno democrático. Neste ponto, a liberdade de expressão teria uma função legitimadora do poder, ao garantir que todos, indistintamente, pudessem participar do processo de formação da opinião pública.

Cada uma destas justificativas fornece uma parcela relevante para a compreensão da importância da liberdade de expressão política, religiosa ou artística, por exemplo. Costumamos, por exemplo, admitir que o processo de confrontação de ideias é fundamental para a produção da verdade na política e para a formação da melhor opinião sobre em quem votar. Entendemos ser um atentado à democracia a limitação do direito a criticar posições políticas com as quais não concordamos. Usualmente imaginamos que a crítica pública (no livre mercado de ideias) contribui para o processo de amadurecimento e esclarecimento de nossas opiniões políticas.

Também entendemos que a censura à arte limita a capacidade de livre expressão da sensibilidade e crítica do artista, frustrando o importante valor de sua realização e autoexpressividade. Por fim, admitimos que os processos eleitorais com a participação de todos, igualitariamente, garantem a legitimidade da autoridade política constituída por estes processos. Julgamos legítimo um governo mesmo quando não votamos nele, desde que tenhamos tido a oportunidade de defender discursivamente alternativas a ele e assim participarmos da formação da opinião pública.

Um ponto importante e comum nestas justificativas tradicionais da liberdade de expressão reside na ideia de igualdade que nela está pressuposta. No campo político, artístico ou religioso, todos possuem o mesmo direito de expressar as suas ideais. A expressão não está reservada a apenas alguns ou a algumas ideias. A liberdade de expressão protege uma ampla gama de discursos, mesmo que eles possam parecer equivocados, ruins ou até mesmo perniciosos.

Admitimos que o mau artista tem o direito de produzir e divulgar a sua arte, que qualquer pessoa pode defender o seu ponto de vista político, independentemente da qualidade de seus argumentos e ideias, e que a liberdade de expressão religiosa deve ser garantida a todos os crentes e credos, independentemente do conteúdo. De maneira geral, protege-se neutralidade de conteúdo ao se garantir o direito igualitário de todos se manifestarem.

Será que estes mesmos valores e justificativas se aplicam quando pensamos na liberdade acadêmica? Entendo que não. Em primeiro lugar, é preciso notar que o ambiente universitário, marcado pelos seus propósitos centrais de promover o ensino e a pesquisa, orienta-se pela busca do conhecimento construído a partir de certa metodologia e certos cânones de objetividade.

Na academia nem todas as ideias têm lugar. Um professor que produz um trabalho em frontal dessintonia com os critérios de excelência acadêmica não conseguirá publicar seu trabalho numa revista científica e poderá até mesmo ser afastado de suas funções ou não ser efetivado em seu cargo. Se apresentar ideias não legitimadas pela comunidade acadêmica dificilmente terá sucesso até mesmo em sua empreitada em ingressar na universidade. A faculdade de Geografia não aceita terraplanistas, nem a faculdade de Química aceita trabalhos produzidos segundo a teoria do flogístico. No mundo acadêmico, não está garantido o direito de todos a expressarem qualquer ideia. Antes o contrário, considera-se um imperativo da busca do conhecimento a discriminação das más ideias das boas ideias. O livre mercado igualitário de ideias não contribui para o desenvolvimento do conhecimento. É apenas por meio do controle da qualidade das boas ideias que a universidade é capaz de gerar conhecimento útil para a sociedade.

Não se imagina que um congresso de Medicina oncológica poderia se beneficiar da liberdade de expressão de especialista em gnomos e magia para discutir as melhores terapias para o câncer. A sociedade valoriza muito o saber dos experts. Buscamos médicos quando estamos doentes porque esperamos que o profissional que nos atende expressará o conhecimento médico. Consideramos que um oncologista que não oferece o tratamento médico adequado segundo a Medicina a um paciente, substituindo-o por preleções religiosas ou místicas, não atua no âmbito de sua liberdade de expressão. Ele pode, inclusive, ser responsabilizado por sua má conduta profissional. Como médico, no consultório, ele não tem liberdade de expressão para dar uma mera opinião qualquer. O mesmo ocorre com o médico professor e pesquisador, que não tem liberdade para divulgar e ensinar qualquer tipo de ideia.

No campo da política, contudo, não fazemos a exigência de que apenas os experts tenham direito à palavra. Na política todos são considerados experts ou, ao menos, têm o mesmo direito de expressão que os experts e acadêmicos. O mesmo ocorre no campo da religião e da arte, onde a má qualidade da arte ou das crenças não afeta o direito de todos de exprimi-las.

Ainda que se possa falar, que também no campo da política, da arte e da religião existe algum tipo de conhecimento, é certo que se trata de um conhecimento distinto daquele prestigiado na academia, do conhecimento produzido pelas disciplinas acadêmicas. Trata-se de um conhecimento que supomos ser acessível a todos e liberto das condicionantes metodológicas impostas pelo saber acadêmico.

Em segundo lugar, é importante notar que a produção e reprodução de conhecimento (pesquisa e ensino) desempenham um papel importante para a sociedade e para os indivíduos. A boa gestão da política e a elaboração de boas políticas públicas dependem do conhecimento acadêmico. O mundo vivenciou de maneira dramática isso durante a recente pandemia de Covid-19. Durante a crise percebeu-se como era importante fazer políticas de saúde pautadas pelo conhecimento acadêmico produzido nas universidades. Neste sentido, o conhecimento acadêmico tem um papel importante para a sociedade, para a democracia e para o autogoverno, mesmo quando ele é indireto. Em outras palavras, a sociedade cometeu à universidade moderna o papel de criar e reproduzir conhecimento acadêmico quando vislumbrou a sua importância para a tutela de interesses como a saúde, bem-estar, desenvolvimento humano, para a boa realização do autogoverno democrático etc. É bastante razoável supor que esta sua finalidade vinculada à produção do conhecimento tenha variado no curso da História, quando se prestou a outros valores como os de reprodução da elite, formar o bom cidadão, o cidadão ético etc..

Tais considerações não implicam em afirmar que a liberdade não seja importante para a academia tal como ela hoje está estruturada, ou que não exista liberdade acadêmica. Ela existe, mas é ditada pelas características da finalidade desta instituição no mundo contemporâneo, e não pelas justificativas clássicas para a liberdade de expressão.

Para a universidade ser capaz de produzir conhecimento é necessário que se garanta a liberdade de crítica, de pesquisa e de desafiar o conhecimento do passado. Sabemos como a limitação da crítica pode prejudicar não apenas o conhecimento no campo das ciências humanas, mas até mesmo das ciências exatas e biológicas. Basta lembrar no atraso tecnológico gerado na antiga União Soviética quando as disciplinas de genética e de computação foram proibidas na universidade por serem consideradas potencialmente contrárias aos interesses do comunismo.

A liberdade de pesquisa e crítica é fundamental para a vida acadêmica e produção do conhecimento universitário, mas não se trata de qualquer crítica e de qualquer pesquisa. Contribui para a reprodução e ampliação do conhecimento acadêmico a reflexão feita dentro dos protocolos e métodos legitimados pela academia. A academia, neste sentido, não é um ambiente igualitário para a produção do conhecimento, mas antes uma instituição em que o poder se concentra nas mãos de quem possui a expertise acadêmica.

Evidentemente, um membro da academia possui ampla liberdade de expressão ampla quando participa do debate na esfera pública. Neste contexto, um físico, um médico e ou um cientista político possuem o mesmo direito de expressão que um leigo simpatizante de péssimas ideias. Contudo, no contexto acadêmico, nem o leigo tem o direito de exprimir as suas ideias, nem o expert de lecionar ou argumentar senão dentro dos cânones da excelência acadêmica.

É por este motivo que quando acadêmicos escrevem em jornais, se apresentam na TV e atuam como agentes políticos, estão resguardados em sua mais plena liberdade de expressão, sendo ridículo e autoritário querer responsabilizá-los ou silenciados no campo de suas atividades universitárias. É oportuno lembrar que o procurador-geral da República, Augusto Aras, agiu desta forma ao encaminhar representação ao Conselho de Ética da USP contra docente daquela instituição (1). No campo acadêmico, ele poderá ser julgado e responsabilizado, mas por critérios acadêmicos, nunca políticos.

Pela mesma razão, um médico, no contexto acadêmico e profissional, poderá ser criticado e até punido se defender ideias frontalmente contrárias ao conhecimento médico acadêmico. Nada o impedirá, contudo, de defender ideias não sintonizadas com a medicina acadêmica, em outros contextos (na esfera pública), como num programa de entrevistas, numa conversa social ou numa manifestação pública.

Por fim, não se pode esquecer que as regras de convívio para a realização dos propósitos da universidade envolvem também o respeito aos padrões de civilidade e respeito e inclusão que não se confundem com os padrões usualmente admitidos no campo político. Na política podemos admitir formas mais agressivas, não inclusivas e ofensivas de expressão de ideias que não seriam cabíveis no ambiente acadêmico em razão das finalidades especificas da universidade, isto é, produção e reprodução do conhecimento acadêmico.

Esta distinção também permite compreender que o discurso político dentro da universidade pode ser admitido quando ele se prestar, ainda que indiretamente, à realização dos propósitos desta instituição. A universidade não é a praça pública, a ágora moderna, um local onde todos têm o direito de falar, e falar qualquer coisa. Mas nela estão garantidos os direitos de liberdade acadêmicas necessários para que realize o seu fim de busca e produção do conhecimento. Assim, se e quando ela julgar conveniente para suas finalidades acadêmicas, por exemplo, autorizar que uma pessoa com ideias “não acadêmicas” seja convidada para dar uma palestra, ela poderá fazê-lo livremente.

Isto está longe do reconhecimento de que todos têm o direito de se expressar no contexto universitário.

*artigo originalmente publicado em “O Globo”


Referências

(1) Ver: https://jornal.usp.br/universidade/comissao-de-etica-da-usp-arquiva-representacao-contra-conradohubner-mendes/

18/9/2023, Ronaldo Porto Macedo Junior: Liberdade acadêmica ou liberdade de expressão?

https://oglobo.globo.com/blogs/fumus-boni-iuris/post/2023/09/ronaldo-porto-macedo-junior-liberdade-academica-ou-liberdade-de-expressao.ghtml 11/12

Ronaldo Porto Macedo Junior é professor titular no Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Faculdade de Direito da USP.

Consultor Júridico

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