Como maciçamente noticiado, está em discussão, no Plenário do STF (RE nº 635.659, da relatoria do ministro Gilmar Mendes), questão relevantíssima a respeito da constitucionalidade do artigo 28 da Lei de Drogas, que tipifica o crime de posse de entorpecentes para uso próprio.
Basicamente, o que está em debate visa definir, de uma vez por todas, se a posse de drogas para o próprio consumo é, ou não, constitucional e, por consequência, se tal conduta pode, ou não, continuar sendo definida como crime (insta mencionar, por relevante, que a lei atual não prevê a imposição de pena privativa de liberdade ao mero usuário, mas sim, e apenas, sanções restritivas de direitos).
Muito embora o julgamento do assunto venha sendo postergado desde 2015, quando o recurso foi distribuído no Supremo Tribunal Federal, é certo que, agora, já está perto do seu final. Até o presente momento, seis ministros já proferiram seu respectivo voto, sendo certo que cinco deles — cada um à sua maneira — entenderam ser inconstitucional o artigo 28, da Lei 11.343/06; o que, na prática, equivale a descriminalizar a posse de entorpecentes para uso próprio.
Contudo, sem pretender aqui adentrar no mérito dos votos até agora proferidos, certo é que esse tema merece uma discussão mais aprofundada e criteriosa, bem como a participação ativa da sociedade e dos seus representantes, pois, de fato, não nos parece ser adequado resolvê-la de afogadilho, com esteio nas ideologias e no subjetivismo de cada ministro, tal como vem ocorrendo.
Afinal, não bastassem os diversos questionamentos jurídicos que envolvem a questão, há, ainda, uma infinidade de possíveis consequências sociais dela derivadas, as quais demandam uma melhor análise e, claro, uma maior prudência antes da canetada final.
Pois bem.
Sob o aspecto eminentemente jurídico, a primeira indagação que se faz atina com o tipo de droga que será “liberado” para o consumo pessoal. Até o presente momento, os votos proferidos pelos ministros da nossa Suprema Corte têm se posicionado pela descriminalização exclusiva da maconha (Cannabis sativa).
Ocorre, porém, que o princípio ativo alucinógeno da maconha — isto é, o tetra–hidrocarbinol (THC) — está presente em outros entorpecentes, igualmente difundidos em nossa sociedade, tais como o haxixe e o skunk. Ocorre, porém, que esses derivados, em razão da maneira como são produzidos, possuem uma quantidade bem maior de THC, o que os torna muito mais fortes e mais destrutivos ao organismo do que a própria maconha.
Dentro desse contexto, estariam os doutos ministros do STF, ao concordarem com a descriminalização apenas da maconha, liberando também os entorpecentes dela derivados? Até aqui nada foi dito a respeito, mas, seguramente, em virtude dos efeitos mais deletérios do skunk e do haxixe, é recomendável traçar essas diferenças já agora, sob pena de criar-se uma situação jurídica de difícil solução no futuro.
Outro questionamento jurídico que se faz à posição majoritária até aqui adotada pelo STF atina com a ideia de se diferençar usuário e traficante a partir da quantidade de drogas ou do número de plantas fêmeas cultivadas.
Muito embora seja mesmo muito difícil traçar um diferencial objetivo e seguro entre o usuário e o traficante, sobretudo naquelas situações em que são apreendidas pequenas porções de drogas, esse debate não pode se resumir apenas à mera quantidade do entorpecente.
Afinal, da mesma forma que, de um lado, o mero usuário pode, eventualmente, trazer consigo quantidade superior àquela que venha a ser fixada pelo STF, porque prefere fazer uma compra maior de entorpecente, para assim evitar deslocamentos constantes até o seu “fornecedor”, é certo que, de outro, alguém pode ser flagrado com quantidade até inferior ao limite que venha a ser estabelecido e, mesmo assim, em razão do dolo de repassar drogas a terceiros, continuar sendo tratado como traficante.
Ou seja, a simples quantidade de maconha apreendida, como critério único para traçar a diferença entre o usuário e o traficante, não é um parâmetro absolutamente seguro para dirimir a questão.
Além disso, ao se optar pela quantidade como elemento diferenciador, surge o risco potencial de que o tráfico de drogas, doravante, passe a ser efetuado por um número maior de pessoas (formiguinhas do tráfico), que portarão pequenas quantidades de entorpecente (maconha), justamente para tentarem ser qualificados como meros usuários. Em suma, da forma como a questão vem sendo abordada pelo STF, é enorme a possibilidade da venda de entorpecentes ser pulverizada por um número maior de pessoas, que trarão consigo (para venda) pequenas quantidades, assim dificultando a devida repressão penal.
E é bem nesse ponto que surgem graves consequências sociais.
Supondo que a inconstitucionalidade do artigo 28, da Lei de Drogas, seja definida e, com isso, do dia para a noite, referido delito deixe de existir no ordenamento jurídico (exclusivamente para maconha), o que ocorrerá logo no dia seguinte?
Seguramente, os usuários, que até então viviam nas sombras, passarão a consumir a droga abertamente, o que poderá servir de estímulo para que outras pessoas (incluindo crianças e adolescentes) passem a usar maconha. Além disso, o Estado, que hoje já não consegue dar conta do tratamento de dependentes químicos, será ainda mais onerado com o (esperado) agravamento do problema, pois o número de dependentes irá aumentar, exponencialmente.
Mas, não é só!
Ao que parece, na contramão do que deveria ser feito, a descriminalização virá antes da regulamentação.
Logo, uma vez liberado o uso da maconha, o consumo da erva, obviamente, será muito estimulado. Nesse ponto, cumpre indagar: quem poderá vender a droga? Qual quantidade cada usuário poderá adquirir? Quem produzirá, legalmente, a maconha? Como serão vistoriadas as plantações de cânhamo (planta da qual se extrai a maconha)? Como será a tributação da venda da droga?
Ou seja, sem a necessária regulamentação, o usuário, que hoje fica nas mãos dos traficantes, permanecerá deles dependendo para manter o seu vício. É evidente que, com a descriminalização, teremos um aumento enorme da demanda, mas, em contrapartida, não haverá a legalização da oferta, ou seja, por mais absurdo que possa parecer, o tráfico (de maconha) sairá fortalecido e será até incentivado (para suprir a compulsão de um número cada vez maior de usuários).
Enfim, por essas e outras razões, entendemos que o tema até pode (e deve) ser discutido, porém, seria mais lógico que o debate se realizasse no âmbito do Congresso Nacional, a fim de termos não só uma maior participação da sociedade, como também, se o caso, a aprovação da descriminalização pelos seus legítimos representantes, seguida da necessária regulamentação e, por fim, a consequente alteração legislativa da nossa lei penal.
Euro Bento Maciel Filho é advogado, professor universitário e mestre em Direito Penal pela PUC-SP.
Márcio Sérgio Christino éprocurador de Justiça do MP-SP, vice-presidente da Associação Paulista do Ministério Público e professor universitário.