No último dia 30 de maio, a Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei nº 490, de 20 de março de 2007 (PL 490/07), que “altera a Lei n° 6.001, de 19 de dezembro de 1973, que dispõe sobre o Estatuto do Índio”.
De autoria do ex-deputado Homero Pereira (PR-MT) e sob a relatoria do deputado Arthur de Oliveira Maia (União-BA), o projeto previa, originariamente, que a demarcação de terras indígenas, sob a competência da Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas), deveria ser transladada à competência do Congresso, sob o fundamento de que “somente os legítimos representantes do povo brasileiro podem decidir sobre o destino de significativa parcela do território nacional, e examinar […] os mais diversos conflitos de interesses gerados pelas demarcações das terras indígenas” (BRASIL, 2007, p. 4).
Tal aprovação também incluiu a modificação do artigo 231 da Constituição (CF/88 ou apenas “Constituição”) adotando um limite temporal, antes inexistente: são terras tradicionalmente ocupadas pelos povos indígenas aquelas que, na data da promulgação da Constituição de 1988, atendessem aos requisitos exigidos pela legislação.
Com isso, instituiu-se no plano legislativo a denominada tese do “marco temporal” de ocupação das terras indígenas, outrora suscitada pelo STF (Supremo Tribunal Federal) no emblemático julgamento da Pet. 3.388-4/RR, relativa à demarcação da terra indígena Raposa Serra do Sol, localizada no estado de Roraima (RR).
O processo principal se encerrou em 19 de março de 2009, quando se consagrou vitorioso o voto-vista do ministro Carlos Alberto Menezes Direito, fixando-se dezenove “condicionantes” (ou “salvaguardas”) para a definição da demarcação da terra indígena Raposa Serra do Sol.
Segundo essa tese, o direito ao usufruto de uma terra indígena só deveria ser reconhecido em relação à área ocupada no momento da promulgação da Constituição, ou seja, 5 de outubro de 1998 [1]. Assim, pode-se dizer que, nesta ocasião, a Corte Suprema brasileira interpretou a expressão “terra que tradicionalmente ocupam”, consignada no artigo 231 da Constituição, como sendo “terras que tradicionalmente ocupam na data de 5 de outubro de 1988”. Essa interpretação, altamente restritiva em direitos fundamentais e questionada por diversas entidades, caiu “como uma luva” no discurso político de deputados da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) — a chamada “bancada ruralista”.
No entanto, há de se convir que essa medida não encontra lugar apenas no Congresso. Antes, é respaldada por diversas decisões judiciais, que, contrariando o entendimento fixado no julgamento dos Embargos de Declaração à Pet. 3.388-4/RR, de 23 de outubro de 2013 [2], estenderam as condicionantes impostas naquela ocasião a diversas outras terras indígenas. Ademais, tal medida se fortaleceu com a publicação do Parecer nº 001/2017 da Advocacia Geral da União (AGU), que pretendia ampliar a aplicação das condicionantes fixadas no julgamento da Pet. 3.388-4/RR a todas as demarcações [3].
Por conseguinte, o procedimento de demarcação de terras indígenas quedou-se praticamente inerte durante os governos de Michel Temer (2016-2018) e Jair Bolsonaro (2019-2022), à revelia do que estabelece o texto constitucional, que fixou prazo certo para a demarcação das terras indígenas (artigo 67 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da CF/88 [4]).
Em 30 de outubro de 2022 o presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi eleito com a promessa de criação de um Ministério dos Povos Indígenas, além do compromisso de demarcar todas as terras indígenas pendentes de reconhecimento e legalização no território nacional [5], fazendo cumprir o texto constitucional [6].
Não obstante, o imbricado jogo político parlamentar fez com que, na quarta-feira, 24 de maio de 2023, o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), pautasse a análise da atribuição de regime de urgência ao PL 409/07, o qual foi aprovado com 324 votos a favor, 134 votos contrários e uma abstenção [7]. Ato contínuo, em 30 de maio de 2023, os deputados aprovaram o projeto, com um placar de 283 votos favoráveis, 155 votos contrários e uma abstenção.
São inúmeras as organizações que se manifestaram contrárias ao projeto, dentre elas, a ONU Direitos Humanos na América do Sul, que, através de seu chefe, Jan Jarab, alertou: “aprovar o projeto conhecido como marco temporal seria um grave retrocesso para os direitos dos povos indígenas no Brasil, contrário as normas internacionais de direitos humanos” [8].
A Organização já havia apresentado ao Congresso, em novembro de 2021, um parecer analisando aspectos do projeto de lei que são incompatíveis com as normas internacionais de direitos humanos. No documento, assinado pela Subprocuradora-Geral da República aposentada Deborah Duprat, ressalta-se que “nenhum, absolutamente nenhum dos inúmeros documentos internacionais arrolados no capítulo anterior, estabelece uma data limite para a reinvindicação de direitos territoriais indígenas”. E mais, a jurista ressalta a inconvencionalidade do projeto de lei, uma vez que
A Corte IDH, como visto acima no caso Xákmok Kásek vs. Paraguai, tem jurisprudência firmada no sentido de que não há uma vigência temporal para o direito à reinvindicação das terras indígenas. Enquanto essas terras se mantiverem como a base material e espiritual da identidade dos povos indígenas, o direito à sua reinvindicação permanece vigente [9].
No mesmo sentido, a Câmara de Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais do Ministério Público Federal (6CCR/MPF), vinculada à Procuradoria-Geral da República (PGR), divulgou nota pública reafirmando a inconstitucionalidade do PL 490/07.
Os procuradores destacaram que o PL 490/2007 não foi submetido à consulta prévia, livre e informada dos povos indígenas, à revelia do que determina a Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), incorporada ao ordenamento jurídico brasileiro. Nessa perspectiva, o projeto de lei, que busca modificar o regime de demarcação de terras indígenas através de lei ordinária, além de inconvencional, seria inconstitucional.
Nesse ínterim, espera-se que o a Corte Suprema brasileira, ao julgar o Recurso Extraordinário com Repercussão Geral nº 1.017.365, relativo à Terra Indígena Ibirama/Laklaño e pautado pela presidência do tribunal, retome as bases constitucionais sobre a qual está assentada, declarando a inconstitucionalidade da tese do “marco temporal”.
De igual modo, aspira-se que o Senado, à diferença da Câmara dos Deputados, observe adequadamente o rito legislativo, a constitucionalidade do projeto e as normativas internacionais de direitos humanos ao qual o Estado brasileiro está submetido — dentre elas, a Convenção nº 169 da OIT. Se não desta forma, estaremos por comprometer integralmente o compromisso ético e moral que todos nós, brasileiros, assumimos com a Constituição Cidadã, e fazendo com que, novamente, “o Brasil envergonhe o Brasil”.
[4] Artigo 67. A União concluirá a demarcação das terras indígenas no prazo de cinco anos a partir da promulgação da Constituição.
Alessandra Marchioni é doutora em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Professora da Universidade Federal de Alagoas (Ufal) e coordenadora do Núcleo de Estudos em Direito Internacional e Meio Ambiente (Nedima) da Faculdade de Direito de Alagoas (FDA/Ufal).
Matheus Barbosa de Melo é advogado, mestrando em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e pesquisador vinculado ao Laboratório de Pesquisa em Desenhos Institucionais (Lapedi) da Faculdade de Direito do Recife (FDR/UFPE)