Foi publicado no último dia 21 de julho o Decreto nº 11.615/23, trazendo nova regulamentação à Lei nº 10.826/03, que constitui um “diploma-esqueleto”, regulando ora o mínimo sobre o tema, ora — inclusive, é forçoso reconhecer — aquém do necessário, tornando a regulamentação essencial para sua aplicação. Essa característica da lei tem como consequência a possibilidade de alteração significativa do regime jurídico por ela estabelecido por ato infralegal.
Armas e munições de usos permitido e restrito
Diversos conceitos intrínsecos à aplicação da Lei nº 10.826/03 foram delegados ao regulamento, na forma de seu artigo 23. Dois conceitos são de grande importância para aplicação desta Lei, tendo sido delegados ao regulamento por seu artigo 23: “uso restrito” e “uso permitido”. Essa dicotomia das armas de fogo lícitas no Brasil, uso restrito e uso permitido, não pode ser ignorada pelo regulamento, porque prevista expressamente na Lei.
As armas de fogo de uso permitido são aquelas acessíveis à população em geral, e as de uso restrito as acessíveis apenas a certos órgãos ou pessoas, restando vinculadas a uma atividade específica (segurança pública, defesa nacional, caça, esporte ou colecionamento).
A nova regulamentação, mais próxima ao regime anterior a 2019, e inclusive mais restrita do que este, deixa de tratar como armamento permitido os de calibres universalmente utilizados para defesa pessoal, como .38 SPL, .9mm Luger, de amplo uso policial, inclusive no Brasil. Estes exemplos são de munições de mesmo diâmetro, baixa energia e velocidade.
Neste ponto, ao impedir o acesso a armamento adequado à defesa pessoal àqueles que preenchem os requisitos legais para adquirir arma de fogo, a regulamentação parece deixar de dar adequado cumprimento à Lei nº 10.826/03.
Sobre o tema, o (Supremo Tribunal Federal), no julgamento da ADI 6.466, externou entendimento de que o poder regulamentar sobre as armas de fogo deve ser restrito ao que de forma diligente e proporcional garanta o necessário à segurança dos cidadãos.
Não parece preencher o critério da jurisprudência uma regulamentação que permita acesso mais facilitado a armas de fogo — instrumentos letais por sua natureza, independentemente de calibre, energia do projétil ou regime de disparo — cujo uso seja inadequado ou ineficaz para a defesa pessoal, pois isso cria um risco público abstrato sem, em contrapartida, promover efetivamente a segurança privada concreta do interessado.
Lado outro, o decreto inova ao prever casos de uso permitido e restrito de acordo com o tamanho do armamento, rompendo com as sucessivas regulamentações da lei. Neste ponto, ainda que imperfeita, a iniciativa do regulador não se mostra totalmente dissonante do sistema estabelecido pelo diploma legislativo, restando similar a legislações de outros países, em que as armas de porte contam com restrições maiores do que as portáteis.
Com efeito, se o porte de arma de fogo é, por decisão legislativa, algo excepcional, não faria sentido, sob tal ótica, que as armas de porte sejam ordinariamente de uso permitido. Ocorre que as limitações aos armamentos de uso restrito restaram demasiadas, um ponto a merecer, salvo melhor juízo, melhor regulação.
O Decreto nº 11.615/23 criou a seguinte estrutura: cabe a órgãos do Poder Executivo a definição de armas e munições de uso permitido e restrito, observadas as limitações previstas no próprio decreto, quais sejam: serão sempre de uso permitido as armas e munições que constem dos incisos do artigo 11 e serão sempre de uso restrito as armas e munições que constem nos incisos do artigo 12. As armas e munições que não constem expressamente dos dispositivos regulamentares serão classificadas pelo ato normativo inferior.
Referido sistema de classificação se mostra um pouco complexo, notadamente em relação às munições: as armas de fogo de porte que utilizem munição que possua energia superior a 407 J, e as próprias munições, são sempre de uso restrito, por previsão expressa do artigo 12, III, do regulamento.
Já as armas longas de alma raiada, de repetição, cuja munição possua energia inferior a 1620 J são sempre de uso permitido, de acordo com a previsão do artigo 11, II. Tem-se, assim, uma situação um tanto quanto inusitada: as armas de fogo em questão são de uso permitido, mas suas munições são de uso restrito.
A situação se torna mais confusa com a previsão do artigo 13 do decreto, que veda a comercialização de armas e munições de uso restrito, exceto para os órgãos e pessoas ali previstos, nos quais não se encontram as pessoas físicas e jurídicas que adquiram os armamentos de uso permitido que se valem de munição de uso restrito.
A solução interpretativa é: mesmo se tratando de munições de uso restrito, são de comercialização implicitamente permitida para as pessoas que tenham adquirido o armamento classificado de uso permitido, seja diretamente pelo artigo11, II, do Decreto nº 11.615/23, seja pelo ato conjunto a ser editado.
Aquisição de arma de fogo
A maior diferença em relação ao regime imediatamente anterior se encontra na previsão do inciso III do caput do artigo 15, ao prever a necessidade de comprovação da efetiva necessidade para a posse do armamento, não apenas para a obtenção do porte.
A previsão regulamentar segue o entendimento do STF fixado na ADI 6119, no sentido de que a posse de arma de fogo só pode ser deferida às pessoas que demonstrem a efetiva necessidade. A previsão legal literal do artigo 4º da Lei nº 10.826/03 é de simples declaração da efetiva necessidade, opondo-se à necessidade de comprovação desta para o deferimento do porte de arma de fogo. O decreto, na mesma linha do entendimento do STF, trata ambas as situações sob o mesmo prisma, o da comprovação.
Trata-se a “efetiva necessidade” de conceito jurídico indeterminado, de forma que uma questão que não parece resolvida é se para a posse de arma de fogo esse requisito seja menos rígido do que para o porte ou se, reconhecida a necessidade da posse, o porte de arma de fogo seja também deferido ao interessado com fundamento nos mesmos fatos.
É importante ressaltar que não goza a autoridade policial federal de discricionariedade ao analisar os requerimentos dos particulares. O ato de autorização é vinculado, ainda que precise dispor acerca de conceito jurídico indeterminado.
A distinção é relevante: o ato discricionário é aquele exarado no contexto de conveniência e oportunidade, em uma situação em que a Administração pode livremente optar por dois caminhos igualmente lícitos. Já os atos vinculados, ainda que necessitem de consideração sobre elementos “incertos”, como o referido conceito indeterminado de efetiva necessidade, impõe à Administração o dever de escolher unicamente a decisão adequada.
Ponto que parece causar dúvidas é a previsão do artigo 15, §1º. A previsão nos parece ociosa. Visa apenas a tornar claro que, para a aquisição de arma de fogo de defesa pessoal, vinculada ao Sinarm, também as pessoas ali mencionadas devem demonstrar o atendimento aos requisitos legais e regulamentares como as demais.
Não rege a norma em comento a aquisição das armas de fogo finalisticamente destinadas à caça excepcional, esporte ou colecionismo, conforme se extrai do artigo 8º da Lei n. 10.826/03 e dos artigos 18, 30 e 31 do Decreto nº 11.615/23, mediante expedição do certificado de registro pelo Exército, e restam vinculadas à finalidade declarada pelo interessado.
Atiradores desportivos e clubes de tiro
A nova norma prevê três níveis de atiradores desportivos, diminuindo para todos o número de armas de fogo que podem ser adquiridas a praticamente um quarto do anterior. A concessão do certificado de registro e sua manutenção também restaram alteradas pelo novo decreto regulamentar. Dois pontos chamam a atenção.
O primeiro diz respeito à exigência de habitualidade por calibre registrado. O segundo diz respeito ao número de habitualidades, que chega a 20 para o nível 3, havendo ainda a exigência de participação em 6 competições. O número de habitualidades já se mostra punitivo por si, com a devida vênia, e isso se exacerba com a previsão do caput referente à habitualidade por calibre apostilado.
A redação do dispositivo resta, também, dúbia. O inciso I prevê que as habitualidades ocorram em eventos distintos. Essa exigência não consta dos demais incisos. O regulamentador parece intentar exigir um número mínimo de comparecimento a locais de treino e de competições, ante a redação não repetida.
A interpretação que deve prevalecer é que se considera um “evento distinto” cada treino realizado com um calibre num dado dia, ou uma etapa de uma competição que utilize referido calibre, observado o número mínimo de oito dias distintos, pois só o inciso I tem referida limitação.
Os demais treinamentos e competições podem ocorrer num mesmo dia. Já a possibilidade de se utilizar mais de um calibre em um mesmo “evento” também parece possível. Ainda assim, com a devida vênia, a norma se afigura um tanto quanto excessivamente restritiva.
As agremiações em que praticado o esporte do tiro também sofreram restrições. Para além de questões formais do meio utilizado, vê-se criada uma “zona de quarentena” entre escolas e clubes de tiro, o que parece padecer de vício material.
Isso porque cria restrição: desnecessária ao fim que parece pretender obter porque o incremento da segurança pública não depende da restrição à localização de estabelecimentos do tipo; inadequada, ainda, aos fins a que se propõe, tratando unicamente de distância física entre locais não correlacionados, não de critérios de segurança; desproporcional em sentido estrito, pois pode inviabilizar o funcionamento de agremiações de tiro desportivo em cidades inteiras, sem que se tenha dados de qual benefício isso traria para a coletividade. Aparenta-se, assim, desatendida a regra de proporcionalidade, na vertente de proibição de excesso, além de ser veiculada por meio de norma excessivamente genérica.
O artigo 38 §1º também merece censura. Sob a roupagem de concessão de período de transição, pretende verdadeira aplicação retroativa do caput, algo não consentâneo com os princípios do direito administrativo. A alteração ou revogação do ato de licenciamento deve se dar por decisão administrativa fundada em fatos supervenientes, emitida após regular procedimento.
Já o inciso III, que limita o horário de funcionamento, veicula norma materialmente hígida. Trata-se de limitação razoável e adequada aos fins a que pretende, ao reduzir a circulação de pessoas com armas de fogo durante a noite, reduzindo, assim, risco abstrato trazido pela movimentação de pessoas com referidos equipamentos em tal horário, não impondo, em contrapartida, sacrifício relevante a direitos dos usuários do serviço.
A questão da regularidade formal do referido inciso, contudo, parece um pouco controvertida. É possível sustentar-se haver permissivo na Lei nº 10.826/03 para criação de tal requisito, consubstanciado na expressão genérica “condições de uso” do artigo 8º. Por outro lado, a limitação parece conflitar com o art. 3º, II, da Lei n. 13.874/19, norma posterior, contudo geral.
Respeito ao atos jurídicos perfeitos
Merece elogio a atuação do legislador regulamentar ao prever, no artigo 79, a manutenção das situações jurídicas devidamente formadas sob o regime anterior. A segurança jurídica é dever do Estado, e uma relevante alteração de política pública como a presente não poderia mesmo ser feita sem um regime de transição. A solução dada pelo regulamento mostra-se adequada, respeitando as legítimas expectativas dos particulares.
Quanto aos proprietários de armas registradas no Sinarm, não parece haver qualquer dúvida. Questão que se coloca é se o proprietário de arma de fogo de uso restrito, que esteja sob o regime do artigo 79, e que seja atirador desportivo, precisa de se adequar ao previsto nos artigos 35, III, e 36, III. A resposta é negativa, uma vez que a norma especial do art. 79 garante ao proprietário do equipamento a permanência desta sob seu domínio e a aquisição de munição.
Para tanto, basta que permaneça na condição de atirador esportivo, em quaisquer dos níveis previstos no atual regulamento. Isso porque, caso o particular não mais se enquadre no conceito de atirador desportivo deverá dar destinação aos armamentos.
Quanto a tal destinação, deve-se observar a norma do artigo 79, §1º, que impede a alteração da finalidade originalmente declarada quando da aquisição da arma de fogo tida por de uso restrito pelo decreto ora em vigor. A norma em análise impede que a arma de fogo que se enquadre no caput seja transferida para outro registro.
A regra vale apenas para os equipamentos que se enquadrem no caput. As armas de fogo de uso restrito que venham a ser adquiridas pelas pessoas previstas nos incisos do artigo 13 não possuem tal limitação, aplicável apenas ao regime de transição.
Os novos limites quantitativos, previstos nos artigos 15, §2º, 36, 39, III, “a” e 42 também não se aplicam retroativamente, mas apenas imediatamente. Mais uma vez, as razões para isso são o princípio da irretroatividade das leis, respeito ao ato jurídico perfeito e uma interpretação do próprio regime de transição trazido pelo decreto.
Observe-se que o artigo 79, §2º, permite o registro das armas cujas autorizações foram expedidas no regime anterior. Naturalmente, essas autorizações de compra foram expedidas observando-se os limites de aquisição então vigentes. Aplicam-se, portanto, os novos limites imediatamente, isto é, caso o interessado possua menos armas de fogo do que o autorizado para a condição na qual pretende adquirir o armamento.
A situação não se altera quando da renovação do Craf (Certificado de Registro de Arma de Fogo) que venha a vencer. A renovação é mera extensão no tempo da autorização já concedida sob o regramento anterior, de forma que os limites vigentes quando da autorização de compra é que devem ser observados, não os vigentes quando da renovação do registro. Ainda que houvesse dúvida quanto ao ponto, o caput do artigo 79 não prevê limitação temporal.
Questão controversa é a redução do prazo de validade dos Crafs, prevista no artigo 80. Quer nos parecer que essa redução, ao menos de forma genérica, não se afigura possível. Com efeito, a anulação de ato administrativo só pode ser feita em caso de ilegalidade, e não se vislumbra ilegalidade alguma em registro concedido de acordo com regulamentação a seu tempo válida, vigente e eficaz.
O registro de arma de fogo, a exemplo da autorização de compra, como acima delineado, também é ato administrativo vinculado, não podendo, assim, ser meramente revogado por razões de conveniência e oportunidade. No ponto, portanto, o artigo 80 viola o princípio da irretroatividade da norma jurídica, malferindo o ato jurídico perfeito. Ainda que se entenda possível a reemissão de todos os registros com o novo prazo previsto no regulamento, isto só seria possível por decisão administrativa individual após regular procedimento administrativo, não de forma genérica como previsto.