O presidente Lula defendeu, recentemente, a ideia de não se dar publicidade aos votos individuais dos ministros do Supremo Tribunal Federal, para assim privilegiar o resultado da decisão colegiada e não expor os membros da corte a uma pressão pública desnecessária.
Essa proposta, surgida logo após a crítica de segmentos sociais progressistas à atuação dita conservadora do ministro Zanin, foi imediatamente execrada pela opinião pública. Como questionamento mais aparente, apontou-se a possível redução da transparência nos julgamentos da corte.
Há espaço, todavia, para o debate público da proposta, em ambiente democrático, despido das paixões político-partidárias ou de qualquer viés ideológico.
A criação da TV Justiça, a partir de quando se passou a transmitir ao vivo as sessões do Supremo, alterou significativamente a forma como a sociedade brasileira e a imprensa percebem e reagem à atuação de seus ministros. A Justiça no Brasil de hoje se transformou num “programa televisivo”, que não lembra, nem de longe, “o outro desconhecido”, que é como o ministro Aliomar Baleeiro, em tom de pilhéria, costumava se referir ao STF de outrora.
Essa midiatização da Suprema Corte submeteu seus integrantes ao escrutínio popular. Esse comportamento ostensivo da grande mídia, também chamado de “publicidade opressiva”, atingiu um nível preocupante de recrudescimento, a ponto de os ministros do Supremo já não poderem caminhar pelas ruas do país e do mundo sem serem admoestados.
A sociedade se acostumou, já há algum tempo, a acompanhar a atuação individual e isolada de 11 ministros do Supremo, como se cada um deles fosse um tribunal distinto. Não sem razão cunhou-se a metáfora das “11 ilhas”. A maior parte das decisões judiciais é proferida pelo relator, sem que a deliberação seja prontamente submetida ao crivo do órgão colegiado competente, o que subverte o princípio basilar da colegialidade, instaurando um clima de absoluta insegurança jurídica.
A atuação individual de seus ministros gerou diversos tensionamentos entre o Supremo e os demais Poderes da República. Por exemplo, no julgamento da cautelar na ADPF 402, o ministro Marco Aurélio, monocraticamente, afastou Renan Calheiros da presidência do Senado, pelo fato de o senador figurar como réu em ação penal pela prática de peculato. A Mesa Diretora do Senado recusou-se a cumprir a decisão do relator até que fosse referendada pelo plenário do Supremo. Por maioria de votos, a decisão foi reformada, tendo sido Renan Calheiros mantido na presidência do Senado, retirando-o apenas da linha sucessória presidencial. Esse é um bom exemplo de como a “individualização” no Supremo pode enfraquecer a segurança jurídica.
A colegialidade de um tribunal de vértice não se resume, todavia, à mera deliberação colegiada. Ela pressupõe mais que isso, impondo que o resultado vá além do simples somatório de votos individuais. A colegialidade própria (ou plena) demanda decisões institucionais, fruto do amadurecimento coletivo do trabalho realizado pela corte. E isso só se alcança se o processo decisório fortalecer posições orgânicas em detrimento de manifestações individuais. É importante que o tribunal cultive a postura do diálogo entre seus membros, para que as decisões proferidas sejam efetivamente do tribunal.
Em boa parte do mundo, as cortes constitucionais debatem reservadamente e proclamam as decisões em público. Algumas permitem que as divergências sejam publicizadas, outras nem isso. As deliberações, quase sempre, têm perfil monolítico, são fruto da construção colegiada do consenso, sem atribuir relevância para as posições individuais. No Brasil, diferentemente, os debates são públicos. Os votos são publicizados em audiência, muitas vezes com transmissão ao vivo na TV Justiça. Na proclamação de resultados, dá-se publicidade às posições vencidas.
No modelo norte-americano, por exemplo, os casos que chegam à Suprema Corte são submetidos, primeiramente, a uma audiência pública, na qual os advogados de ambas as partes apresentam as suas razões e argumentos, oportunidade em que os Justices (como são chamados os juízes da Suprema Corte norte-americana) costumam fazer perguntas e debatem o caso com os advogados. Os casos são decididos em outra oportunidade, nas chamadas Justice’s Conference, da qual só os juízes podem participar. Concluída a votação, o mais antigo da maioria indica quem fará o voto majoritário da Corte. O mais antigo da dissidência escolhe quem redigirá o voto da minoria. Se um Justice concordar com o resultado, mas não com os fundamentos, ele pode apresentar uma concurring opinion (voto de concordância). Qualquer Justice pode apresentar em separado uma dissenting opinion (voto contrário). Todos eles são publicados. O único sigilo se refere aos debates deliberativos. Assim, existe um voto da maioria, um voto da minoria (se houver divergência) e cada Justice pode fazer publicar um voto pessoal de convergência ou divergência, caso ache necessário consignar a sua posição pessoal. Mas isso não é obrigatório.
Não há nesse modelo estadunidense qualquer violação à transparência ou ao princípio da publicidade. Não são decisões secretas. Os votos da maioria e da minoria são publicados como votos do tribunal, podendo cada Justice, se assim desejar, publicizar a sua posição pessoal, não sendo esta, todavia, obrigatória. Os jurisdicionados sabem exatamente o que foi decidido. Eles conhecem a posição vencedora e seus fundamentos, têm acesso à posição vencida e suas razões e, eventualmente, podem acessar votos individuais de convergência ou divergência.
Não se está aqui a defender a importação “cega” do modelo norte-americano, até porque o sistema lá é muito diferente do nosso, a começar pelo número de processos submetidos a julgamento, lá na casa das centenas e aqui na casa dos milhares ao ano. Se não se pode simplesmente reproduzir o modelo alienígena, nada impede que o nosso se aperfeiçoe a partir de ricas experiências hauridas do direito comparado. No modelo estadunidense é nítida a preocupação em preservar as convicções pessoais do Justice e de isolar o ambiente decisório das pressões da opinião pública, em busca da maturidade institucional e da efetiva colegialidade.
Essas preocupações são extremamente relevantes e devem pautar o debate sobre o modelo ideal para a Suprema Corte. Ao defender que os votos não sejam divulgados, não se referiu o presidente Lula, certamente, aos seus fundamentos, mas a autoria deles. Um tribunal transparente é aquele que expõe os fundamentos de suas decisões para que sejam escrutinados no debate público, e não aquele que expõe o autor de cada uma de suas manifestações fracionárias. Quanto mais protagonismo ganham os autores em face do conteúdo próprio das decisões, menor é a importância institucional do colegiado.
A fundamentação do ato judicial é imposição da própria Constituição para legitimá-lo democraticamente. Portanto, as razões que embasam uma decisão não podem ser secretas; devem sempre acompanhá-la. Conhecer as razões de uma decisão, todavia, não é o mesmo que conhecer a sua autoria. Deixar de indicar o autor de um voto não viola a exigência republicana de transparência, se, em contrapartida, o tribunal expuser a decisão com clareza, indicando os seus fundamentos, inclusive os que foram rejeitados.
Qual o modelo ideal? Isso ainda não podemos dizer até porque não houve o necessário debate. Aqueles que execraram precipitadamente a manifestação do presidente Lula sequer se deram ao trabalho de entender a complexidade do tema, tendo emparedado a crítica na necessidade de preservação da transparência. É inteiramente válida a preocupação do presidente com o atual nível de interferência externa nas deliberações do Supremo. É preciso atentar para esse fato e discutir o modelo em um ambiente democrático, buscando preservar a colegialidade e blindar os ministros de interferências externas indesejadas. Ao mesmo tempo, é necessário que o modelo garanta transparência às decisões do Supremo e seus fundamentos, inclusive os minoritários.
O Supremo é necessariamente uma empreitada coletiva, cujo resultado se pretende melhor do que a soma das opiniões individuais de cada ministro que o compõe. Essa sinergia só se consolida quando os seus integrantes firmam o compromisso de se empenharem na busca por uma deliberação genuinamente coletiva. Requer, de cada um, disposição para abandonar posições individuais e vontade de perseguir uma opinião institucional coesa. O tribunal deve ser capaz de falar com uma “única voz” e de professar um só discurso.
A partir da reflexão lançada pelo presidente Lula, talvez seja possível projetar no futuro o dia em que as “11 ilhas” voltarão a ser continente.
Marcos Meira é advogado, procurador de Estado e presidente da Comissão Especial de Direito de Infraestrutura do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil.