A PEC da Reforma Tributária (PEC nº 45/2019), aprovada pela Câmara dos Deputados depois de várias manobras regimentais e a toque de caixa, tem entre seus pontos controversos a criação do Conselho Federativo do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), um monstrengo criado pelo novíssimo artigo 156-B.
Antes de mais nada, vale rememorar que a Constituição de 1988 adotou o consolidado modelo federativo que prevê autonomia administrativa, legislativa e financeira para os entes federativos. Não é à toa que o nome oficial do nosso país é República Federativa do Brasil.
A relevância do pacto federativo é tanta que a própria Constituição buscou mecanismos para impedir que qualquer modificação por meio de emenda constitucional possa suprimir a forma federativa do Estado, transformando-a em cláusula pétrea.
O artigo 1º da Constituição estabelece que o Brasil é formado pela união indissolúvel de quatro entes federados, em três esferas: a União, os estados e os municípios, além do Distrito Federal que acumula as competências estaduais e municipais. Mais à frente, a própria Constituição determina as competências de cada um desses entes, definindo também sobre quais matérias cada um deles poderá legislar.
Sobre Direito Tributário, o artigo 24, I da CF (que não será alterado pela PEC nº 45) determina que a competência legislativa é concorrente a todos os entes, de modo que a União definirá normas gerais sobre tributação, que serão de observância obrigatória pelos demais entes federativos, a quem compete suplementar as normas federais.
Lembramos ainda que, por força do artigo 146, II e III da CF (que também não sofrem qualquer alteração pela PEC em comento), o instrumento adequado para que a União defina normas gerais de tributação é a lei complementar.
Dito isso, apontamos que, no âmbito do Direito Administrativo aprendemos que a administração direta é exercida pelos entes federativos e que as demais entidades, apesar de deterem autonomia e personalidade jurídica própria, estão vinculadas a um dos referidos entes políticos.
Assim, por exemplo, uma autarquia ou fundação pública será, necessariamente, federal, estadual, municipal ou distrital, sendo que seus orçamentos estão vinculados ao orçamento geral do ente, que é quem detém autonomia legislativa para elaborar suas leis orçamentárias. Além disso, as competências legislativas dos entes da administração indireta são residuais e meramente regulatórias, não tendo força de lei e não podendo se sobrepor às leis.
O novo Conselho Federativo do Imposto sobre Bens e Serviços subverte toda essa lógica clássica e fica difícil imaginar sua viabilidade sem qualquer ofensa ou violação ao pacto federativo.
O texto da PEC aponta que o referido conselho detém competências administrativas exercidas de forma integrada pelos estados, pelos municípios e pelo Distrito Federal e que poderá, entre outras atribuições, editar normas infralegais sobre temas relacionados ao IBS, de observância obrigatória pelos entes que o integram.
O parágrafo 1º do artigo 156-B prevê que o Conselho Federativo do IBS será uma “entidade pública sob regime especial, terá independência técnica, administrativa, orçamentária e financeira”. Dessa forma, esse “Conselhão” não seria um novo ente federativo, apesar dos superpoderes que lhe são conferidos constitucionalmente.
Contudo, como entidade pública, o Conselho Federativo do IBS deve estar, obrigatoriamente, vinculado e tutelado por algum dos entes políticos (União, estado, município ou DF), mas o questionamento que fica é: qual será esse ente político?
Poderíamos relacionar o Conselho Federativo aos consórcios públicos regidos pela Lei nº 11.107/05, que seriam uma espécie de associação pública interfederativa que integra a administração indireta de todos os entes que a compõem. Contudo, não soa viável que o Conselho Federativo se vincule, simultaneamente, a 26 estados, 5.568 municípios e ao Distrito Federal.
Pensemos na dificuldade para conseguir viabilizar a aprovação, em conjunto, de uma lei orçamentária, por 26 assembleias legislativas, 5.568 câmaras de vereadores e uma câmara legislativa simultaneamente. Seria, realmente, algo kafkiano.
Pior ainda se o Conselho Federativo do IBS estiver sob tutela da União, integrando sua administração indireta federal e submetendo seu orçamento à aprovação do Congresso Nacional. Ora, como seria possível, em uma federação, que a autonomia legislativa e administrativa dos entes federados fosse limitada e restringida por uma entidade pertencente à administração federal sem incorrer em inconstitucionalidade?
Outro ponto crítico e polêmico é o fato de o mencionado conselho ter competência para “editar normas infralegais sobre temas relacionados ao imposto, de observância obrigatória por todos os entes que o integram”.
Chamamos atenção para dois pontos importantes: o primeiro é que a CF não dá competência para o Conselho Federativo legislar sobre Direito Tributário, mas sobre um tributo especifico. Além disso, destacamos que a PEC nº 45 utiliza o termo “normas infralegais”, o que deixa evidente que, à luz da Pirâmide de Kelsen tão cara aos operadores do direito, os atos normativos editados pelo Conselho Federativo estariam hierarquicamente abaixo das leis, sendo, portanto, um ato normativo secundário no mesmo patamar dos decretos, portarias e instruções normativas.
Assim, outros questionamentos surgem: é possível um ato normativo secundário, hierarquicamente inferior, limitar e restringir a competência dos estados-membros, dos municípios e do Distrito Federal para editarem suas leis sem violar a competência legislativa definida na própria Constituição? É possível, em uma federação, que as normas dessa nova entidade (que não é um ente político) se sobreponham à autonomia administrativa e legislativa dos entes políticos sem violar o pacto federativo?
Esses questionamentos apontam que, se aprovadas, certamente as alterações promovidas pela PEC nº 45/2019 não ficarão imunes a discussões quanto a sua constitucionalidade, afinal, emendas constitucionais também podem ser objeto de ação de controle de constitucionalidade.
Enquanto isso, aguardemos as cenas dos próximos capítulos de sua tramitação no Congresso.
Mário Oli do Nascimento é advogado tributarista do escritório Terra e Vecci Advogados e pós-graduado em Planejamento Tributário pela Universidade Federal de Goiás.