Após mais de uma década de descumprimento de decisões do CNJ (Conselho Nacional de Justiça), finalmente o TJ-RJ (Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro) passou a disponibilizar em seu próprio site, desde o final de agosto de 2023, a emissão gratuita de certidões de distribuição de feitos ajuizados, inclusive para as Comarcas da Capital, Niterói e Campos dos Goytacazes, que possuem cartórios de distribuição privatizados.
Realidade já observada na quase totalidade do Poder Judiciário, o TJ-RJ estava na lanterna e, até 2023, vinha cobrando, nas Comarcas da Capital, Niterói e Campos dos Goytacazes, valores que chegavam a superar os R$ 1.000 por certidões que em outros estados (e até mesmo em outros municípios do Rio de Janeiro) eram fornecidas gratuitamente.
Embora tal direito, de aplicação imediata, já fosse assegurado pelo artigo 5º, XXXIV, b, da Constituição [1], que determina a gratuidade na obtenção de certidões para defesa de direitos e esclarecimento de situações de interesse pessoal, foram necessários anos para que os obstáculos à sua efetivação fossem superados.
Isso porque, ao longo de todo esse tempo, o TJ-RJ e as serventias de distribuição por ele delegadas mantiveram a cobrança, ao argumento das mais diversas teses que, quase sempre, restringiam o alcance do mencionado dispositivo constitucional.
Argumentava-se, por exemplo, que a gratuidade era direcionada somente a repartições públicas, inaplicável aos ofícios de distribuição privatizados; ou que seria cabível a cobrança caso a certidão se destinasse a “fins negociais”, criando o cenário perfeito para manutenção da arrecadação em uma das situações nas quais mais comumente se observava a procura por tais certidões, a exemplo das transações imobiliárias.
Buscava-se, assim, afastar a existência de um “interesse pessoal”, conforme exata expressão contida no artigo 5º, XXXIV, b, da Constituição, alegando existir um “interesse negocial” como fundamento para a cobrança de emolumentos (como se existisse um interesse negocial autônomo, desprovido de qualquer interesse pessoal).
Essas teses foram rechaçadas paulatinamente a partir das variadas reclamações e processos administrativos ingressados no CNJ, cujas decisões a respeito do tema quase sempre eram contestadas no STF [2], que, no entanto, acertadamente mantinha a higidez das determinações do órgão de controle do Poder Judiciário.
Os primeiros Pedidos de Providências (PP) ingressados no CNJ sobre o tema remontam aos idos de 2009 [3], que levaram o Conselho a reconhecer o direito à gratuidade da expedição de certidões de distribuição criminais, em caráter geral e normativo, a todos os Tribunais de Justiça. Posteriormente, os efeitos foram ampliados para as certidões cíveis.
Em 2013, novo PP [4] foi intentado no CNJ, desta vez em razão do descumprimento da gratuidade pelos 1º, 2º, 3º e 4º Ofícios de Distribuição da Comarca da Capital do Rio de Janeiro.
Aqui, abre-se um breve parêntesis: na cidade do Rio de Janeiro existem 4 cartórios extrajudiciais que dividem o registro de distribuição de feitos judiciais, a depender da competência do processo [5].
Como se não bastasse a ausência de qualquer racionalidade nessa divisão, que só revela a ineficiência do Estado, o Rio de Janeiro inovou e foi além: previu a existência de um outro distribuidor judicial privado na capital, o 9º Ofício de Distribuição, com competência para o registro de distribuição das ações que tramitam perante as Varas de Fazenda Pública [6].
Essa delegação a particulares, além de irregular — dado que as atividades de registro e emissão de certidões cíveis e criminais constituem atividades propriamente judiciais e, portanto, indelegáveis [7] — padecem de qualquer lógica, ainda mais ante a informatização dos processos eletrônicos, distribuídos perante os sistemas do próprio Tribunal.
Na Comarca da Capital do TJ-RJ, por exemplo, chegou-se à desarrazoada situação em que qualquer cidadão poderia fazer uma consulta pública de processos em seu nome no site do tribunal. Porém, para pedir uma certidão que atestasse as mesmas informações, deveria se dirigir a 5 cartórios extrajudiciais diferentes e pagar valores que poderiam superar mil reais.
Fechando o parêntesis e voltando ao referido PP, o CNJ confirmou o alegado descumprimento e determinou que o TJ-RJ se abstivesse de cobrar taxas e emolumentos em relação às certidões emitidas pelos 1º, 2º, 3º e 4º Ofícios de Distribuição [8].
De toda sorte, o aludido PP não foi suficiente para que suas determinações fossem cumpridas. A emissão de certidões gratuitas permaneceu sendo obstaculizada, seja por exigências descabidas por parte dos cartórios, seja até mesmo pela falta de informação direcionada ao público geral sobre a existência da gratuidade em si.
Com efeito, nova reclamação foi interposta no CNJ [9], que, mesmo julgada procedente (novamente determinando ao TJ-RJ que se abstivesse de cobrar pela emissão das certidões de distribuição cíveis e criminais), também não foi suficiente para que a gratuidade fosse efetivamente implementada, ante as diversas interpretações que se sucederam sobre o teor da decisão do conselho, que, no fim, acabavam restringindo o alcance da gratuidade.
Foi necessária a interposição de uma nova Reclamação para Garantia das Decisões (RGD) perante o CNJ, cuja decisão foi noticiada aqui, para que todas as controvérsias fossem eliminadas e o entendimento acerca da ampla gratuidade fosse finalmente sedimentado.
A decisão, reconhecendo a recalcitrância do TJ-RJ no descumprimento das decisões do CNJ há mais de uma década e o quadro anômalo que se instalou no Estado do Rio de Janeiro com a delegação de um serviço indelegável, determinou que o tribunal oferecesse, em seu próprio site, “o serviço público judicial de expedição de certidões de distribuição de processos judiciais de qualquer natureza, de forma gratuita, inclusive para as comarcas da Capital, Niterói e Campos dos Goytacazes, bem como a divulgar amplamente, com destaque, o oferecimento deste serviço em seu sítio eletrônico e em todos os seus canais de comunicação, inclusive redes sociais, e ainda alterar seus atos normativos incompatíveis com a presente determinação”.
Comemora-se, finalmente, a implementação dessa facilidade, eliminando um abismo que existia entre as comarcas do Rio de Janeiro (e entre este Estado e outros do país), que já dispunham desse serviço de forma gratuita e eletrônica.
Assim, encerra-se um capítulo de despropositada desigualdade, no qual parcela relevante da população vinha sendo onerada pela cobrança de certidões de distribuição que desde a promulgação da Constituição deveriam ser gratuitas.
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[1] Artigo 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
(…)
XXXIV – são a todos assegurados, independentemente do pagamento de taxas:
(…)
b) a obtenção de certidões em repartições públicas, para defesa de direitos e esclarecimento de situações de interesse pessoal;
[2] Cite-se, por exemplo, o MS nº 33.187, relator: ministro Alexandre de Moraes, DJe-092 14/05/2018; e o MS nº 28.831, relator: ministro Teori Zavascki, DJE-091 05/05/2016.
[3] PPs nº 0003846-40.2009.2.00.0000 e 0005650-43.2009.2.00.0000.
[4] PP nº 0004882-78.2013.2.00.0000.
[5] Artigo 9º, I, II e VI do Código de Organização e Divisão Judiciárias do Estado do Rio de Janeiro:
Artigo 9º – Na Comarca da Capital, observado, quanto à Serventia do 10º Ofício, o estabelecido no artigo 125, incumbe aos Oficiais do Registro de Distribuição:
I) aos dos 1º e 2º Ofícios, o registro dos feitos da competência das Varas de Órfãos e Sucessões, das Varas Criminais e os contenciosos e administrativos das demais Varas, salvo as da Fazenda Pública, que lhes forem distribuídos;
(II) aos dos 3º e 4º Ofícios, o registro das habilitações para casamento, dos feitos de competência das Varas Criminais e dos contenciosos e administrativos das demais Varas, salvo os da Fazenda Pública, que lhes forem distribuídos;
(…)
VI) ao do 9º Ofício, o registro dos feitos da competência das Varas da Fazenda Pública do Estado (artigo 124), que lhes forem distribuídos.
[6] Nesse sentido, PPs nº 415 e 721.
[7] Ao acatar a ordem do CNJ e determinar a abstenção na cobrança de emolumentos pelos 1º, 2º, 3º e 4º Ofícios de Distribuição, o TJRJ incluiu o 9º Ofício de Distribuição como destinatário da determinação. Este, então, insurgiu-se contra essa inclusão, alegando que a determinação do CNJ não foi a ele direcionada e que suas certidões teriam natureza fazendária, logo, dotadas de “interesse público”, não se amoldando à gratuidade constitucional que mencionaria o “interesse pessoal”. O recurso foi acatado pelo Conselho da Magistratura do TJRJ (Recurso Hierárquico nº 0000001-53.2015.8.19.0810) e, sob essa guarida, as certidões de distribuição de feitos sob competência do 9º Ofício de Distribuição permaneceram sendo cobradas até meados de 2023, quando sobreveio decisão do CNJ na RGD nº 0002154-83.2021.2.00.0000.
[8] Reclamação para Garantia das Decisões (RGD) nº 0003124- 54.2019.2.00.0000.
Matheus Laveglia é estudante de direito na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) e engenheiro de produção da Petrobrás, atuando com licitações e contratos.