O setor imobiliário costuma ser visto como conservador e elitizado. No geral, é necessário ter muito dinheiro tanto para empreender, como para investir no ramo. Nesse contexto, a grande maioria da população brasileira vê a aquisição de um único imóvel como um grande sonho — por vezes inalcançável.
De outro lado, vivemos um processo de crescente descentralização das finanças, bem como da expansão e facilitação das relações entre empresários atuais ou potenciais e seus pares, clientes e investidores. A própria noção de investidor vem se alterando e se tornando mais diversa, na medida em que maiores camadas da população vêm conseguindo ter acesso ao mercado.
Esses processos são catalisados, entre outros fatores, pelo surgimento e difusão de novas tecnologias, as quais podem ser mecanismos importantes para a democratização desse universo. No setor imobiliário em específico, a tokenização de ativos apresenta possibilidades interessantes para, a um só tempo, facilitar as transações, permitir novos tipos de negócios, aumentar e democratizar a disponibilidade de capital e, de maneira correlata, as oportunidades de investimento.
O presente artigo tem por finalidade expor quatro possíveis aplicações práticas para a tokenização de ativos imobiliários. Por ora, são especulações, oportunidades. Não se sabe ao certo como serão efetivamente recebidas pelo mercado, tampouco como e quando se dará a sua regulação pelo poder público. O futuro — próximo — dirá [1].
Antes de passar ao cerne do estudo, esclareçamos nossa referência conceitual. Como nos explica Dayana de Carvalho Uhdre, “o termo ‘token’ é tomado, na maioria das vezes, como representações digitais e criptografada de ativos. E essas representações podem se referir tanto a ativos existentes no mundo ‘real’, físico — daí se falar em ‘tokenização de ativos’ (verdadeiros ‘avatares’ desses bens ou direitos) — quanto a ativos nativos e exclusivos do mundo virtual (nativos de blockchain), caso em que estaríamos diante dos ‘criptoativos’ em sentido estrito, digamos assim. Usamos a locução ‘em sentido estrito’, porque muitas vezes os termos ‘criptoativos’ e tokens são tomados como sinônimos” [2].
Assim, tokenização “é o processo de conversão de on chain ou off chain assets em tokens que podem ser emitidos, transferidos ou registrados em um sistema blockchain. Esse processo ‘converte o valor de qualquer objeto’ (tangível ou intangível) em um token inserido em um contexto de uma contabilidade distribuída” [3].
Blockchain, por sua vez, é um sistema descentralizado de bancos de dados mantido em redes computadorizadas. Ele surge de uma variedade de tecnologias, como redes peer to peer, criptografia público-privada e mecanismos de consenso, para criar bases de dados extremamente resilientes e resistentes a interferências indevidas, nas quais todos podem inserir e armazenar informações de forma transparente e permanente, assim como realizar todo tipo de transação econômica [4].
Dessa forma, os tokens podem circular por meio da blockchain, em relações peer to peer, sem intermediários. Essas negociações ocorrem por intermédio de smart contracts, contratos em código e automatizados, que são automaticamente cumpridos na medida em que se concretizam as condições previamente estipuladas.
Fixadas essas premissas, passemos às quatro possíveis aplicações práticas da tokenização do mercado imobiliário. Elas são exemplos, e de modo algum pretendemos esgotar as possibilidades de utilização desse mecanismo no ramo.
Facilitação para aquisição de imóveis
Uma das primeiras formas pelas quais os tokens foram utilizados — e possivelmente a com maiores complicações — é para transferir imóveis com mais facilidade e agilidade. Para isso, cria-se um ou mais tokens representativos do bem, os quais podem ser negociados e transferidos de modo instantâneo na blockchain, sem a necessidade das grandes burocracias vinculadas à compra de imóveis tradicional.
O problema é que, no direito brasileiro, a propriedade imobiliária se transfere apenas com o registro na matrícula, e a própria validade de negócios relacionados a imóveis de valor superior a 30 salários-mínimos é condicionada à forma de escritura pública (respectivamente, artigos 1.245 e 108 do Código Civil).
Ou seja, em princípio, a transferência do token representativo do imóvel gera no máximo uma relação obrigacional entre o adquirente e o alienante, mas não confere àquele direito real sobre o bem, tampouco permite a oposição do negócio a terceiros. Por conseguinte, nesses moldes, é um arranjo bastante frágil e não traz segurança às partes.
Uma possível atenuação ao problema se dá pelo registro do token na matrícula do bem, a qual pode constar igualmente no título digital. Por essa via, o registro público passa a conter expressamente a informação de que a propriedade cabe àquele que possuir o token, devidamente discriminado no documento.
Esse modelo foi proposto inicialmente pela empresa Netspace, a partir de cujas iniciativas o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul editou o Provimento nº 38/2021, o qual regulamenta “a lavratura de escrituras públicas de permuta de bens imóveis com contrapartida de tokens/criptoativos e o respectivo registro imobiliário pelos Serviços Notariais e de Registro do Rio Grande do Sul”.
Porém, nos termos do provimento, mesmo o registro do token na matrícula do imóvel não confere direito real sobre o bem. Tem-se apenas uma relação obrigacional com o proprietário registrado, em virtude da qual este se obriga a observar a posse daquele que for proprietário do título digital.
Realmente, o direito brasileiro não permite conclusão diversa. Portanto, é questionável se essa primeira aplicação da tokenização realmente faz sentido, em especial para o comprador que deseja utilizar o imóvel a longo prazo, uma vez que não parece proporcionar segurança ao negócio.
Facilitação de investimentos em imóveis
Uma perspectiva mais interessante é a facilitação de investimentos em imóveis. Isso porque é possível que os tokens representem parcelas de bens já existentes ou futuros. Isto é, um único imóvel pode ser repartido em diversos tokens, os quais conferirão direitos sobre uma parte ideal do bem — aqui não há qualquer pretensão de transferência de propriedade, mas apenas direitos obrigacionais. De igual maneira, pode-se conferir tokens representativos de imóveis ainda não construídos, para o financiamento da obra.
De um lado, isso permite que pequenos investidores possam se beneficiar de oportunidades de investimentos até então restritas àqueles com grande disponibilidade de capital. Por meio da compra de tokens que representem parcelas de projetos ou imóveis já construídos, é possível investir em empreendimentos imobiliários sem grandes aportes e, ainda assim, beneficiar-se dos lucros.
De outro lado, possibilita que empreendedores possam captar recursos de forma mais ampla, sem precisar recorrer necessariamente a grandes investidores e instituições financeiras. Dessa maneira, serve também como porta de entrada a empresários menos estabelecidos, que não possuam crédito ou recursos próprios.
Por exemplo, uma pequena incorporadora pretende construir um edifício de médio porte, para o qual precisa de vinte milhões de reais. Poderia buscar recursos junto aos bancos, tendo que aceitar as condições frequentemente desfavoráveis impostas por eles. Poderia, ainda, procurar grandes investidores e constituir SPEs ou SCPs, como de praxe — o que nem sempre é fácil.
Pode, agora, emitir dois milhões de tokens, cada um no valor de dez reais, representantes de uma fração do imóvel a ser construído, e vendê-los aos investidores que estiverem interessados. Quando da conclusão da obra e venda das unidades, os proprietários dos tokens recebem sua fração de lucros — podendo ter participado do projeto com meros dez reais.
De forma ainda mais arrojada, a incorporadora pode criar uma operação de antecipação de recebíveis. Ou seja, vender os tokens representativos de frações do empreendimento logo de início, com uma margem de lucro, dando aos token holders a possibilidade de auferir parte do resultado financeiro ao final da obra.
Essas alternativas geram um pool de recursos similar a um fundo imobiliário, mas sem todas as inúmeras e onerosas obrigações escriturais, contábeis, administrativas, entre outras, impostas a eles pela Instrução nº 472/08 da CVM. Em vista desses fatores, a constituição de um FII só se justifica para empreendimentos de dezenas ou até centenas de milhões, que não são a realidade da maioria dos empreendedores brasileiros.
Isso posto, é necessário tomar cuidado para que a venda dos tokens não se dê no formato de oferta pública de valores mobiliários, o que implicaria a necessidade de registro prévio na CVM, com diversos ônus. Para esse fim, deve-se prestar especial atenção às disposições do artigo 3º da Instrução nº 160/2022 da autarquia, que estabelece o que se entende por esse tipo de oferta. Aliás, o ente regulador se manifestou expressamente sobre o tema por meio do Parecer de Orientação nº 40/2022, cuja leitura é obrigatória.
Funding para a relação entre incorporadoras e terrenistas
A tokenização também pode ser utilizada para investir no início dos empreendimentos. Em particular, pode viabilizar a relação entre incorporadoras e terrenistas — os proprietários dos terrenos sobre os quais se pretende implementar o projeto — ou investidores dispostos a adquirir o terreno em favor da obra.
De modo geral, elas se dão por meio de permuta — o terrenista troca seu terreno por área construída do empreendimento — ou pela constituição de uma sociedade em conta de participação (SCP) ou sociedade de propósito específico (SPE) entre as partes.
Por evidente, essa relação nem sempre é tranquila e apresenta riscos para ambas as partes. Do lado do terrenista, é frequente que prefira receber o valor de seu imóvel de uma vez, sem participar dos riscos do empreendimento. Do lado do empresário, é comum que não queira manter vínculo com um terceiro ao longo de todo o ciclo da incorporação.
Uma alternativa é que a incorporadora adquira o terreno com recursos próprios, mas isso raramente é viável em termos financeiros. Outra é buscar um investidor que o faça, porém isso nem sempre é fácil e não elimina a eventual ingerência de um terceiro no projeto.
O uso de tokens pode facilitar essa relação. Nesse modelo, o terreno é adquirido pela empresa ou por um investidor, mas tokenizado de maneira fracionada e vendido a diversos outros investidores, nos moldes explicados acima. Assim, o adquirente do imóvel em si não precisa arcar com o seu valor, pois este é custeado pelos compradores dos tokens, os quais, por sua vez, recebem os lucros consideráveis da operação ao final [5].
Clubes de vantagens, benefícios e cashback
Para além disso, é possível conferir tokens aos compradores de determinados imóveis que lhes propicie certa vantagem, como a associação a um clube, entrada em espaços especiais, descontos. Trata-se de um utility token, nos moldes dos NFTs não sustentados por ativos físicos — diferentes dos security tokens, portanto.
Uma iniciativa interessante é a da empresa Housi, que criou um cashback token. Por meio dele, os adquirentes de unidades autônomas de um condomínio em São Paulo recebem direitos sobre uma fração ideal de um complexo comercial junto ao imóvel e administrado pela empresa. Assim, auferem parcela dos aluguéis pagos pelos comerciantes, os quais cobrem os custos das cotas condominiais [6].
Conclusão
A tokenização apresenta oportunidades interessantes para o mercado imobiliário, mas está longe de ser uma panaceia. É necessário analisar com cuidado os projetos que a envolvem, sobretudo levando em consideração que a propriedade, no direito brasileiro, só se transmite com o registro.
Feita essa ressalva, não há dúvida de que a utilização de tokens permite estratégias mais dinâmicas e, em certa medida, democráticas nesse meio. Assim, pode representar uma prática relevante para os empreendedores, investidores e proprietários de imóveis.
O presente artigo buscou explorar algumas das possibilidades já em circulação para essa tecnologia. Seu potencial, no entanto, vai muito além: o avanço tecnológico vem abrindo caminho a todo tipo de inovação. Cabe ao direito acompanhá-lo.
Referências
DE FILIPPI, Primavera; WRIGHT, Aaron. Blockchain and the Law: the rule of code. Cambridge: Harvard University Press, 2018.
GOMES, Daniel de Paiva; GOMES, Eduardo de Paiva; NEISTEIN, Rubens. Contributos práticos sobre a tokenização no setor imobiliário: os caminhos e as expectativas envolvendo a estruturação de novos negócios. In GOMES, Daniel de Paiva; GOMES, Eduardo de Paiva; CONRADO, Paulo. Criptoativos, Tokenização, Blockchain e Metaverso. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2022.
Matheus Setti é mestrando em Direito do Estado, graduado pela UFPR e sócio do escritório Andrade Setti Advogados.