Não aplicação da nova Lei de Licitações atrapalha governança digital

A nova de Lei de Licitações (Lei 14.133/2021) é uma tradução clara dos desafios de governança digital que o Brasil enfrenta. Isso porque, apesar de já estar vigente, sua aplicação ainda depende do fim da execução prática da Lei 8.666/93, o que só vai ocorrer no ano que vem.

Essa é a análise de Marçal Justen Filho, sócio-fundador do escritório Justen, Pereira, Oliveira & Talamini Sociedade de Advogados e coordenador de projetos de licitações e contratos administrativos da Escola Nacional de Advocacia. Ele falou sobre o assunto na mesa de discussões “Governança digital e as inovações legislativas”, que fez parte do XI Fórum Jurídico de Lisboa, evento que reuniu no fim de junho vários dos mais importantes nomes do Direito do Brasil e da Europa. O debate foi mediado pelo secretário da Casa Civil do estado do Rio de Janeiro, Nicola Miccione.

Justen Filho afirmou que a mudança legislativa sobre o tema tem sido vista pela grande maioria dos operadores do Direito como uma circunstância puramente licitatória. “A nova Lei de Licitações significa, na visão de 99% das pessoas, um novo regime para contratação pública no sentido de trazer regras para procedimentos. Na verdade, ela é o primeiro passo de uma enorme reforma administrativa do Estado brasileiro. Talvez isso justifique a dificuldade para o início da sua aplicação.”

Segundo ele, a norma adotou uma sistemática de transição muito peculiar, pois ficou estabelecido que ela entraria em vigor na data de sua publicação, mas, ao mesmo tempo, a lei antiga continuaria em vigor, podendo ser aplicada pelas autoridades administrativas.

“Como decorrência disso, tem sido aplicada apenas a lei antiga. A nova Lei de Licitações continua como uma espécie de imagem a desafiar todos nós, quando, por outro lado, a quantidade de inovações trazidas por essa lei, especialmente no tocante à governança digital, é muito significativa.”

O advogado se queixou da Lei 8.666/93, que permanecerá ativa até 1º de abril de 2024: “Ela é uma lei do papel, antiga, reflexo dos anos 1950 e 1960 no Brasil. Ela continua para o passado, não para o futuro. A 14.133 é a lei do futuro, da informática, é a lei em que todos os recursos de tecnologia devem ser integrados à atividade administrativa.”

Justen Filho observou que a ideia de que integridade é essencial apenas para a administração pública não pode prosperar.

“Ela tem de ser vista igualmente do ponto de vista do particular. Isso significa que nos contatos de grande vulto, aqueles com valores superiores a R$ 200 milhões, é obrigatório que o particular contratado implante programas de integridade destinados a assegurar o cumprimento das suas obrigações, de um modo consoante com a boa-fé.”

Na avaliação do advogado, dois dos principais problemas do Brasil são a ineficiência e a corrupção na contratação administrativa. “Isso é algo que todos nós como cidadãos esperamos que seja superado. Como superar isto? Não basta punir. Não basta, obviamente, a nossa pura e simples vontade. Nós precisamos de uma reforma legislativa. Nós temos de aplicar essa nova lei, que lamentavelmente continua tendo a sua aplicação retardada em parcela significativa das unidades federativas. A nova Lei de Licitações traz a incorporação de soluções de governança no âmbito público e privado com a ampla utilização dos recursos digitais.”

Poderes digitais

Pesquisador do Centro de Inovação, Administração e Pesquisa do Judiciário da FGV Conhecimento, José Leovigildo de Melo Coelho Filho destacou que não se pode perder de vista o conceito que guia o uso da tecnologia com boa-fé, principalmente quando a inteligência artificial se faz presente. “É a solução de grandes problemas da sociedade. Uma vez que ela, bem endereçada e bem tratada, com a utilização da ética e de boa-fé, tem um grande impacto.”

Ele lembrou que algoritmos já têm sido usados em serviços públicos ao redor do mundo, e citou o caso dos Estados Unidos, onde a Food and Drug Administration (FDA), que regulamenta serviços relacionados à saúde no país, já autorizou o uso de inteligência artificial em softwares médicos. “A gente já tem casos de uso. Mais de 300 algoritmos foram aprovados nos últimos dois ou três anos. Existe algoritmo aprovado nos EUA para analisar raio-x sem a necessidade de intervenção humana, em determinados níveis de criticidade e diagnóstico.”

Sobre o Projeto de Lei 2.338/2023, apresentado pelo presidente do Senado Federal, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), que regula a inteligência artificial no Brasil, o pesquisador disse que devem ser levadas em consideração a complexidade tecnológica, a transdisciplinaridade e a ausência de profissional de tecnologia no grupo que está formalizando o projeto.

Diretor da Escola de Comunicação, Mídia e Informação da Fundação Getulio Vargas (FGV), Marco Aurelio Ruediger defendeu a necessidade de maior investimento para aprimorar a estrutura organizacional dos tribunais e dos fóruns, diante do avanço tecnológico, principalmente por causa das redes sociais e da inteligência artificial, para proteger os processos eleitorais.

“Esse investimento tem se acontecer. Só que esse investimento, que era absolutamente necessário um ano atrás, e que continua sendo, talvez não seja mais suficiente. A inteligência artificial veio para ficar. E é necessária uma ampliação das estruturas de apoio ao Judiciário no seu dia a dia, em função das redes sociais.”

Já o codiretor executivo da AqualtuneLab, conselheiro do InternetLab e assessor jurídico da Presidência do Tribunal Superior do Trabalho Paulo Rená da Silva Santarém afirmou que, quando se pensa em constitucionalismo digital, deve-se confrontar a ideia de soberanos absolutos de empresas tecnológicas. Ele citou, como exemplo, Elon Musk, bilionário dono do Twitter, CEO da Tesla e vice-presidente da OpenAI.

“Os desafios digitais que decorrem da sociedade da informação são incontáveis. Nesses cenários, temos algumas pessoas que vão achar que a tecnologia é capaz de solucionar todos os nossos problemas, deixando de ver que há pessoas que estão desconectadas e que essa desconexão agrava diferenças que já existiam.”

Procurador do estado do Rio de Janeiro, Gustavo Binenbojm destacou que, quando a internet surgiu, ela foi considerada uma ferramenta neutra, construindo-se um mito de que as pessoas se comunicariam entre si superando intermediários em níveis locais, nacionais e globais. “Isso simplesmente não acontece. A neutralidade da internet, das redes sociais, é uma falácia.”

Ele citou exemplos em que redes sociais tiveram, direta ou indiretamente, responsabilidade em conflitos ao redor do mundo: a saída do Reino Unido da União Europeia; o genocídio promovido por forças militares contra muçulmanos ruaingas em Mianmar; e as tentativas de golpes contra a democracia nos Estados Unidos (6 de janeiro de 2021) e no Brasil (8 de janeiro de 2023).

“O ponto é superar essa ideia da neutralidade da rede e criar um dever geral de diligência específico, não baseado na decisão judicial, senão o Judiciário sai como vilão da história porque não tem parâmetros de decidir e as redes sociais não têm uma decisão democrática legislada para atuar.”

O evento

Esta edição do Fórum Jurídico de Lisboa, que aconteceu entre 26 e 28 de junho, teve como mote principal “Governança e Constitucionalismo Digital”. O evento foi organizado pelo IDP, pelo Instituto de Ciências Jurídico-Políticas da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (ICJP) e pelo Centro de Inovação, Administração e Pesquisa do Judiciário da FGV Conhecimento (CIAPJ/FGV) 

Ao longo de três dias, a programação contou com 12 painéis e 22 mesas de discussão sobre temas da maior relevância para os estudos atuais do Direito — entre eles debates sobre mudanças climáticas, desafios da inteligência artificial, eficácia da recuperação judicial no Brasil e meios alternativos de resolução de conflitos.

Clique aqui para assistir a mesa de debate ou veja abaixo:

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