Não é novidade para ninguém que as redes sociais nos permitem destilar muito ódio e ressentimento. Alguns até podem se justificar, dizendo que o ser humano sempre falou mal dos outros e que isso é natural. De fato. Mas se antes costumávamos revelar calúnias, injúrias e difamações para poucos amigos em quem se tinha confiança e intimidade, hoje — com as redes sociais — parece que não existe mais filtro para veicular e tornar público nossos pensamentos, por mais perversos que eles sejam.
Desse modo, muitas pessoas que usam as redes sociais como descrito nessa introdução estão na iminência de praticarem condutas tipificadas no Código Penal, principalmente a injúria.
“Art. 140. Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro.”
Esse crime é de ação penal privada, o que significa que não é o Ministério Público que oferecerá uma denúncia ao juízo. Na verdade, será a própria pessoa ofendia que, para ver seus ofensores processados e julgados, deve propor queixa-crime, nos moldes dos artigos 41, 44, 45 e, principalmente, os artigos 48 e 49, do Código de Processo Penal.
Até aqui, já dá para suspeitar de que não é algo tão simples como se imagina. Ainda mais quando se pensa no crime de injúria inserida no contexto das redes sociais.
Vejamos o que dispõe o artigo 48, do CPP:
“Art. 48. A queixa contra qualquer dos autores do crime obrigará ao processo de todos, e o Ministério Público velará pela sua indivisibilidade.”
Neste momento a seguinte pergunta acaba sendo inevitável: o querelante é obrigado a propor ação penal contra todos os usuários da rede social que compartilharam injúrias contra ele?
A resposta está no artigo 49, do mesmo diploma. Vejamos:
“Art. 49. A renúncia ao exercício do direito de queixa, em relação a um dos autores do crime, a todos se estenderá.”
Em outras palavras, e objetivamente, a resposta à pergunta é sim! O querelante é obrigado — em função do princípio da indivisibilidade — a propor queixa-crime contra todos os que tenham o injuriado.
Dessa maneira, se o ofendido não oferecer a queixa-crime contra todos os usuários que lhe injuriaram, significa que ele está renunciando ao seu direito de queixa. A consequência prática disso: tal renúncia alcançará todos os usuários que o ofendido conseguiu identificar e listar na sua queixa-crime.
Aos olhos de quem nasceu após a popularização da internet e das redes sociais, esse quadro pode parecer desproporcional, considerando que as pessoas dessas gerações compreendem a elevada velocidade e dinamicidade com que os comentários são criados e removidos das redes sociais. No minuto que antecede o protocolo da queixa-crime, centenas de milhares de comentários injuriosos podem ter surgido na rede social por onde a injúria foi divulgada.
Aqui, precisamos destacar que o motivo dessa regra processual decorre do princípio da indivisibilidade da ação penal privada, o qual, segundo Filho et al (2021) é:
“[…] aplicável apenas à ação penal privada, segundo a jurisprudência do STJ e do STF – [e] tem outra conotação, pois na ação privada é aplicável o princípio da disponibilidade (ou seja, discricionariedade em oferecer ou não a denúncia). Justamente por isso tem sentido falar em indivisibilidade da ação penal privada. A ideia é a seguinte: o ofendido tem disponibilidade em decidir se vai oferecer queixa-crime, mas não tem disponibilidade em escolher contra quem vai oferecer a queixa, pois deve abranger todos os agentes da conduta delitiva, sob pena de extinção da punibilidade. Ou seja, a indivisibilidade é uma limitação à discricionariedade do ofendido, para evitar que se utilize desse poder como forma de vingança ou de persecuções seletivas ou arbitrárias.” (FILHO; TORON; BADARÓ, 2021). (Grifamos).
Desse modo, a queixa que não inclui todas as pessoas contra as quais pesam os indícios do crime de injúria acaba violando o princípio da indivisibilidade. Logo, não deve ser recebida pelo magistrado.
Nesse caso, o papel do promotor do Ministério Público se restringe a apenas advertir o querelante que a não inclusão de algum agente implica renúncia do direito de queixa em relação a todos.
Talvez esse raciocínio gere até um certo desconforto, tamanha a injustiça que se possa vislumbrar com o contexto das redes sociais. E, nesse instante, a seguinte pergunta é inevitável: E se o ofendido não conseguir identificar todos os agentes?
Nessa hipótese, se a queixa-crime é ofertada apenas contra os agentes conhecidos — sem mencionar os desconhecidos —, então não há violação do princípio da indivisibilidade.
É exatamente isso o que a nossa jurisprudência atual do Superior Tribunal de Justiça pacifica (e acalma o sentimento de injustiça). Debrucemo-nos sobre a sua leitura:
“RECURSO ESPECIAL. STJ. WESTEI CONDE Y MARTIN JUNIOR interpõe recurso especial, fundado no art. 105, III, ‘a’, da Constituição Federal, contra acórdão do Tribunal de Justiça do Estado de Pernambuco no Recurso em Sentido Estrito n. 0004841-97.2017.8.17.0000. O recorrente apresentou queixa-crime contra as ora recorridas por suposta prática dos ilícitos previstos nos arts. 138, 139 e 140, qualificados pelo art. 141, II e III, todos do Código Penal. O juízo de primeira instância extinguiu a punibilidade das investigadas por haver sido caracterizada a renúncia tácita, uma vez que a inicial não abrangeu todos os corréus. A Corte de origem manteve a decisão de primeira instância. […]
A Corte de origem assim se manifestou (fls. 222-652): […]
Sem maiores delongas, meu voto é pelo improvimento do presente recurso. […]
Como bem esclarecido no parecer da D. Procuradoria de Justiça, em matéria criminal:
‘In casu, observa-se que a acusação recai sobre comentários realizados na rede social chamada FACEBOOK, que, segundo o querelante, veiculam condutas ofensivas. Verifica-se dos autos que a notícia veiculada por Maria Sofia Barbosa Carneiro e compartilhada por Sayonara Freire de Andrade, qual seja:
‘Porque não recebeu voz de prisão por agredir a policial!???!!! Se fosse qualquer outro cidadão teria sido algemado na HORA. Um erro não justifica outros! E não é a primeira vez que esse cidadão se vale do cargo para abusar do poder e agredir e subjugar outros servidores públicos’, foi também curtida e comentada por outras pessoas, que, no mesmo contexto e lapso temporal, concordaram com o que estava sendo dito e, ainda, corroboraram com tais supostas ofensas, vejam-se como exemplos o que disseram ‘Aurora Regina’, ‘Teresinha Ferreira’ e ‘Glória Souza Ramos’, respectivamente: ‘Arrogante!’ Abuso de Poder!! ‘e ‘ O pior é que segundo consta os abusos continuam com outras’.
Além de outros tantos comentários que também derivam da mesma atitude tomada pelo então querelante, que ensejou o comentário veiculado pelas recorridas (…).
1. Ora, não se pode, como tenta o recorrente, dissociar os comentários proferidos como se fossem diferentes ações simplesmente porque não foram idênticos.
Da análise das provas colacionadas aos autos vê-se que as supostas ofensas foram proferidas por diferentes pessoas diante da mesma notícia, havendo, inclusive, o uso de palavras semelhantes.
Ademais, importante acrescentar que é plenamente possível tecnologicamente, saber quem foram os autores de todos os comentários feitos, lá que estão todos identificados através de suas contas vinculadas ao ‘FACEBOOK’. E, ainda como já afirmado acima, se um ou outro não for identificado, não há problema na continuidade da ação, o que não cabe é, sabendo que há outros autores identificáveis, ignorá-los. Assim, constata-se, claramente, a incidência da coautoria e necessidade de aplicação do princípio da indivisibilidade. Desta feita, como o ora recorrente não poderia ter ‘escolhido’ quem queria processar, o ato de ajuizar a ação contra tão somente duas pessoas e não contra todas que supostamente o ofenderam, subentende-se ter havido uma renúncia tácita com relação aos demais.
E como supramencionado, segundo a dicção legal, a ‘renúncia ao direito de queixa, em relação a um dos autores do crime, a todos se estenderá’. Portanto, forçoso reconhecer a extinção da punibilidade em razão da renúncia tácita ao direito de queixa nos termos do art.107, V e 49, ambos do Código de Processo Penal (…)’. […]
Ante o disposto, nego provimento ao Recurso em Sentido Estrito e, MANTENHO A SENTENÇA QUE EXTINGUIU A PUNIBILIDADE DE MARIA SOFIABARBOSA CARNEIRO e SAYONARA FREIRE DE ANDRADE, conforme determina os artigos 49 e 61 do CPP. […]
É evidente que se, em crimes contra a honra praticados por meio das redes sociais, for aplicada a obrigatoriedade indiscriminada de oferecimento de queixa-crime contra todos aqueles que porventura fizeram comentários e/ou o compartilhamento da mensagem ofensiva (coautoria/participação), tornaria inviável, em muitos casos, o exercício do direito de ação da vítima.
Na hipótese, a rede social empregada foi o Facebook, instrumento de amplo alcance em termos de visualização e de participação de usuários. Assim, ainda que seja possível a identificação da conta que promoveu o comentário e/ou o compartilhamento da ofensa, a quantidade de interações pode tornar inviável, conforme já destacado, que a vítima exerça seu direito de ação, em clara ofensa à proibição de proteção insuficiente do bem jurídico tutelado.
Assim, no caso dos autos, entendo que a pretensão do recorrente deve ser provida em parte, apenas para determinar o prosseguimento da ação penal contra as recorridas, no tocante ao crime de calúnia. É que, considerados a data dos fatos e o presente momento, estariam prescritos, pela pena máxima cominada, os crimes de injúria e de difamação.
II. Dispositivo
À vista do exposto, dou provimento, em parte, ao recurso especial, para afastar a renúncia tácita reconhecida na origem e determinar o prosseguimento da ação penal contra as recorridas, somente em relação ao crime de calúnia.” (STJ – REsp: 1767249 PE 2018/0242906-0, Relator: Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, Data de Publicação: DJ 14/03/2022). (Grifamos).
Portanto, o princípio da indivisibilidade da ação penal privada de fato obriga o querelante a propor a ação contra todos os agentes do fato criminoso, sob pena de — escolhendo um ou outro agente para processar — implicar a renúncia tácita ao direito de ação contra todos os agentes.
Todavia, como (quase) nada é absoluto no Direito, esse princípio é flexibilizado quando o contexto do crime não permite ao querelante listar todos os agentes que cometeram o crime, como na injúria por meio de compartilhamento de postagem em redes sociais.
Referência
FILHO, Antônio; TORON, Alberto; BADARÓ, Gustavo. Título III – da ação penal in: Código de Processo Penal Comentado. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2021. Disponível em: https://thomsonreuters.jusbrasil.com.br/doutrina/1353727455/codigo-de-processo-penal-comentado. Acesso em: 28 out. 2022.
Natanael Zotelli é mestre em Estudos de Linguagens pela UFMS, graduando em Direito pela Uninove, com especialização latu sensu em Legislação
Penal, ex-professor substituto na Unifei, em Itajubá (MG), e estagiário do
escritório Freitas Martinho Advogados, em Bauru (SP).