Nos artigos dos dias 23 de abril de 2022 e 30 de abril de 2022, foram publicadas nesta coluna algumas reflexões levantadas pelo professor argentino Alberto Binder durante a aula magna do curso de pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI. Pouco mais de um ano depois, a aula de encerramento do curso contou com a participação de uma das mais importantes pesquisadoras sobre o Tribunal do Júri do mundo, a professora Valerie Hans [1], da Universidade de Cornell (EUA), autora de mais de 150 publicações sobre julgamento por jurados.
Suas pesquisas são fundamentais para o aprimoramento do Tribunal do Júri e subsidiam milhares de outros estudos em todos os continentes. Para entender seus posicionamentos, em primeiro lugar, faz-se necessário entender o contexto do júri na ordem mundial. Um estudo publicado em 2021 [2] indicou que atualmente existem 71 países que possuem julgamento com cortes escabinadas — em que jurados leigos decidem em conjunto com magistrados — e 56 países com o modelo de julgamento de júri formado apenas por cidadãos.
Já em relação à quantidade de decisões tomadas por leigos (ou corte híbrida, ou júri) em casos criminais por continente, tem-se que, na África, 72% dos julgamentos são realizados por jurados leigos; na Ásia, 42%; na Oceania, o maior percentual, 93%; na Europa, 70%; na América do Norte, 78%; e na América do Sul, o menor percentual, apenas 33%.
Esses números revelam a importância desse modelo de julgamento. Em outro diapasão, a nível qualitativo, nos últimos 50 anos diversas pesquisas mostraram os benefícios e os prejuízos do julgamento pelo júri, principalmente nos Estados Unidos, país que, de forma absoluta, realiza uma grande quantidade de sessões.
De acordo com Valerie Hans, como principais vantagens desse modelo citam-se a incorporação dos valores contemporâneos da própria comunidade na interpretação e busca dos fatos que estão sendo julgados; a correção de erros e testes de interpretação na fase de deliberação dos jurados; a proteção contra preconceitos e vieses típicos dos julgadores profissionais.
No entanto, chama especial atenção a correlação entre o Tribunal do Júri e a democracia. A Suprema Corte americana, em Duncan v. Louisiana (1968) expressou que “proporcionar a um acusado o direito de ser julgado por um júri de seus pares dá a ele uma proteção inestimável contra um promotor corrupto ou excessivamente zeloso e contra um juiz complacente, tendencioso ou excêntrico”. Mas a importância vai muito além disso. A legitimidade de uma decisão tomada pelo júri vincula-se aos princípios do próprio sistema acusatório, pois oferece um julgamento genuinamente público e transparente, em que:
(a) As partes, acusação e defesa, têm a oportunidade de produzir provas perante os julgadores;
(b) As partes têm a real possibilidade de serem ouvidas;
(c) O Conselho de Sentença é formado pela comunidade e o resultado da decisão é publicizada imediatamente.
Assim, os princípios da oralidade e da imediatidade restam materializados neste modelo de julgamento. Em que pese em diversas oportunidades, nessa coluna, tenha sido discorrido sobre como, no processo penal brasileiro, o procedimento do júri é o que mais se aproxima do sistema acusatório [3], frisa-se que é indispensável ter a percepção que isso também acontece nos demais ordenamentos jurídicos.
Outra questão umbilicalmente ligada à democracia exposta por Valerie é a necessidade de formação de um júri diverso. Por mais que a maior parte das pesquisas norte-americanas tenham seu foco de atenção na diversidade racial [4], a diversidade também deve incluir a de gênero e a de classes socioeconômicas. Refere-se principalmente àquilo que temos insistido sobre a necessidade de representação da sociedade no júri [5], que não somente deveria perpassar por um aumento na quantidade de membros do Conselho de Sentença, mas também pela formação adequada da lista de jurados. Por derradeiro, um júri diverso é visto com especial legitimidade pela própria comunidade.
Para aqueles que acreditam que no júri “ganha” aquele que melhor “engana” os jurados, a professora aponta diversas pesquisas empíricas que certificam que as provas apresentadas em plenário constituem o fator mais relevante para o veredito [6]. Assim, aquela alegação — quase um mantra entoado pelos detratores do júri — de que júri seria um “grande teatro” não possui qualquer fundamento científico.
Impossível não apontar o impacto causado nos próprios jurados que participam de alguma sessão do júri. Uma pesquisa recém realizada descobriu que, após esta vivência, os jurados desenvolveram uma melhor percepção sobre o sistema de júri (88,5%), sobre o sistema de justiça em geral (79.7%), sobre o próprio governo (55,5%) e até em relação à polícia (56,9%) [7]. Com isso, comprova-se não apenas a importância do júri para a comunidade como um todo (naquilo que se denomina de “caráter pedagógico” do júri [8]), mas inclusive nos próprios jurados que compuseram o Conselho de Sentença [9].
Enfim, as pesquisas científicas apontam que as vantagens no julgamento por jurados superam, em muito, as desvantagens. Talvez a maior crítica ao nosso modelo, que também já havia sido apontado pelo professor Alberto Binder, também bastante discutido por nós em outras oportunidades [10], é a ausência de deliberação entre os jurados. Ainda pelo viés crítico, Valerie Hans indicou que a quantidade de jurados afeta a qualidade da decisão, restando demonstrado que uma composição de 12 jurados julga de maneira mais correta e confiável do que júris com formações menores [11].
Todas essas ponderações, que expõem a umbilical ligação entre o júri, o sistema acusatório e a democracia, são fundamentais para um Estado Democrático de Direito. Neste sentido, um estudo mostrou uma diferença significativa na correlação entre os índices de medida de democracia dos países que possuem um sistema de júri, sendo que aqueles com o maior índice possibilitam a existência efetiva do julgamento por jurados [12].
O Tribunal do Júri continua a ser um modelo a ser seguido para que tenhamos uma Justiça mais humana e respeitadora de valores democráticos. Apesar de o procedimento necessitar de aprimoramento — com vistas a concretizar, principalmente, os direitos e garantias constitucionais e convencionais dos acusados —, as pesquisas demonstram que se trata de uma forma de julgamento que propicia decisões de maior qualidade, justas e imparciais.
Rodrigo Faucz Pereira e Silva é advogado criminalista, pós-doutor em Direito (UFPR), doutor pelo Programa Interdisciplinar em Neurociências (UFMG), mestre em Direito (UniBrasil) e coordenador da pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI.