No último mês, houve um desdobramento inédito no processo de recuperação judicial de um abatedouro de aves do interior paulista, por meio da brilhantíssima decisão proferida pela juíza Renata Salmaso, da 1ª Vara da Comarca de Tietê (SP).
A decisão do juízo recuperacional foi considerada inédita pelos especialistas, bem como dividiu opiniões entre os atuantes da área ao eleger a figura do watchdog para exercer a função de gestor provisório da empresa, em razão do afastamento dos sócios administradores, por entender que: “as ações da Recuperanda se enquadram como prejudiciais à preservação da empresa e bom andamento do feito recuperacional”.
Nesse sentido, a decisão do juízo paulista foi fortemente impulsionada não só com o relevante teor dos relatórios apresentados pelo watchdog nomeado, como também pelos argumentos apresentados por um dos credores quirografários da recuperanda, cujas alegações foram acatadas, inclusive, pelo Ministério Público, o qual além de corroborar com a necessidade de afastamento dos sócios administradores da empresa, ainda solicitou cópias das petições apresentada pelo credor, a fim de instruir o inquérito policial para apuração de crimes previstos na Lei nº 11.101/2005 (Lei de Recuperação Judicial e Falências) [1].
Destaque-se trecho relevante da decisão inédita, proferida pela juíza Renata Salmaso:
“Diante do quanto exposto, considerando as ações da Recuperanda que se enquadram como prejudiciais à preservação da empresa e bom andamento do feito recuperacional, DEFIRO os pedidos contidos às fls. 8596/8610 e 8790/9791 para DETERMINAR:
1 – o afastamento dos sócios administradores da Recuperanda, nomeando- se de forma provisória, como gestor (em analogia ao § 1o, artigo 65, da Lei no 11.101/05), o observador judicial (oportunizando a este as informações/documentação necessárias para cumprir com as obrigações definidas em decisão de fls. 7690/7711), que deverá, no prazo de 3 (três) dias, se manifestar nos autos sobre referido encargo, indicando profissional competente para o ato e os nomes dos sócios administradores da Recuperanda atuantes; (…)
2 – No mais, autorizo que o Ministério Público proceda a extração das cópias que julgar pertinentes para encaminhamento à Autoridade Policial.”
A figura do watchdog
A nova Lei de Recuperação Judicial e Falências (LRF) não prevê a figura do watchdog — ou “cão de guarda” como é popularmente chamado. No entanto, a demanda pelo trabalho técnico desses profissionais tem crescido de forma exponencial nos processos de recuperação judicial.
O watchdog desempenha a função de observador judicial no processo recuperacional, visto que, é nomeado pelo juiz para exercer diariamente a fiscalização referente à movimentação da empresa, como forma de se evitar qualquer tipo de fraude ou desvio de recursos.
Ao contrário do administrador judicial, sua função versa estritamente em relatar ao juízo recuperacional sobre a condução das atividades econômico-financeiras da empresa que se encontra em processo de recuperação, tutelando pelo princípio da transparência e, garantindo o investimento adequado dos recursos do fluxo de caixa, afastando qualquer tipo de ato fraudulento praticado contra os credores de boa-fé.
Não obstante, a nomeação do watchdog vem sendo comumente requerida, como também ocorreu recentemente no caso da Americanas S.A (AMER3), em que os credores solicitaram a inclusão do expert para apurar as inconsistências financeiras da auditoria, a fim de acompanhar o processo de recuperação judicial da varejista, conforme publicado pelo Valor Econômico [2].
Mais adiante, a recuperação da Novonor S.A — antiga Odebrecht — é outro caso que confirma a tendência de alta na utilização da figura do watchdog. O plano engloba a reestruturação de passivos superiores a R$ 60 bilhões, sendo que, o “cão de guarda” atuou no monitoramento do acordo de inação celebrado entre a recuperanda Novonor e seus credores [3].
Portanto, o que se vê é que, a utilização do watchdog, quando empregada de forma adequada, poderá auxiliar na condução dos processos de recuperação judicial, conferindo transparência para casos que são verificadas suspeitas de fraude, esvaziamento patrimonial, bem como inconsistências financeiras, situações estas que acabam por prejudicar (para não dizer inviabilizar) os interesses dos credores.
Questiona-se: e por qual motivo a decisão foi considerada inédita?
A matéria explorada levantou importantes debates e dividiu opiniões no meio jurídico já que, conforme preceitua o §1º, Artigo 65, da LRE 11.101/2005, quem deveria exercer as funções de gestor provisório seria o administrador judicial e não o watchdog, como foi determinado pelo juízo recuperacional paulista. A referida Lei 11.101/2005 prevê o seguinte:
“Art. 65. Quando do afastamento do devedor, nas hipóteses previstas no art. 64 desta Lei, o juiz convocará a assembleia-geral de credores para deliberar sobre o nome do gestor judicial que assumirá a administração das atividades do devedor, aplicando-lhe, no que couber, todas as normas sobre deveres, impedimentos e remuneração do administrador judicial.
§1º. O administrador judicial exercerá as funções de gestor enquanto a assembleia-geral não deliberar sobre a escolha deste.”
Contudo, por analogia ao comando legal supracitado, houve a convocação da OnBehalf Auditores e Consultores (watchdog), para atuar como gestor provisório da recuperanda, em razão do relevante e aprofundado trabalho do expert até então elaborado nos autos, que vinha sendo exercido desde julho de 2022 — constatando diversas irregularidades nas atividades da empresa, sob a gestão de seus sócios administradores.
Não obstante, na decisão proferida, a juíza dra. Renata Salmaso também determinou que os sócios administradores da recuperanda terão que informar, periodicamente, ao “cão de guarda”, sobre as tratativas comerciais e demais questões administrativas pertinentes, “cooperando de forma ampla para planejamentos necessários de compras, gestão e produção, com a finalidade de garantir a continuidade das operações“.
Desta forma, conclui-se que, a figura do watchdog vem adquirindo não só visibilidade, mas relevante importância na área de recuperação judicial e falências, como forma de garantir maior transparência aos credores, se mostrando como um importante aliado do Juízo na fiscalização das atividades empresariais.
Portanto, ainda que a decisão em comento divida opiniões, é certo que, a figura do watchdog, se bem empregada, pode ser uma estratégia interessante não só para auxiliar na reorganização do fluxo de caixa da empresa que se encontra em recuperação judicial — a fim de conferir a plena quitação das obrigações contraídas — como também para coibir os maus utilizadores do instituto da recuperação judicial, os quais, em alguns casos, a utilizam de maneira oportunista, e não por necessidade.
Caroline Moraes Vital de Oliveira é advogada responsável pela área de recuperação de crédito do escritório Otto Gübel Sociedade de Advogados, formada em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e pós-graduada em Direito Penal.
Alany Beatriz Gimenes é estagiária da equipe de recuperação de crédito do escritório Otto Gübel Sociedade de Advogados e aluna de Direito na Pontifícia Universidade Católica de Campinas.