O poder é tema de constante reflexão no direito societário, a realidade das companhias abertas no Brasil revela uma forte tendência de concentração acionária, predominando estruturas societárias com aglomeração de poderes nos administradores e nos acionistas controladores, sendo estes últimos os responsáveis por reverberar suas vontades na maioria das deliberações da companhia, instrumentalizando toda estrutura da empresa para salvaguardar seus próprios interesses em detrimento da própria companhia e dos demais sócios [1].
No Brasil, a Lei nº 6.404 de 1976 (Lei das Sociedades Anônimas) nasceu possuindo como um de seus principais pilares o desenvolvimento do mercado de capitais no país, incorporando importantes mecanismos para reduzir a posição de desprestígio dos acionistas minoritários, considerando principalmente a correlação positiva entre a proteção dos investidores frente a possíveis abusos de administradores e controladores, visto que, sem a devida guarita legal, não haveria o incentivo e a segurança basilares para o desenvolvimento das negociações acionárias.
Dentre tais mecanismos, a ação de responsabilidade em face dos acionistas controladores e dos administradores surge com a finalidade de tutelar o interesse social (ou seja, da sociedade, e não dos sócios ou dos controladores) frente condutas abusivas ocorridas no exercício do poder de controle da sociedade. A Lei 6.404/1976 prevê a possibilidade de
ações para responsabilização dos administradores nos casos de prejuízos causados à companhia (artigo 159) e dos controladores nos casos de prejuízos decorrentes de atos praticados com abuso de poder ou em violação de seus deveres e responsabilidades (artigo 246).
A responsabilização prevista no artigo 159, ou seja, as ações que objetivem a reparação de prejuízos causados à companhia pelos administradores podem ser realizadas em duas modalidades: a ação social e a ação individual.
A ação social é subdividida em: 1) ut universi, quando movida, dentro do prazo legal, pela própria companhia, após deliberação dos acionistas em assembleia geral; 2) ut singuli derivada, quando a assembleia geral delibera a favor da propositura da ação de responsabilidade, mas não a ajuíza no prazo de três meses, podendo qualquer acionista fazê-la; e 3) ut singuli originária, quando a assembleia geral da companhia delibera pela
não propositura da ação, cabendo aos acionistas com, pelo menos, 5% do capital ingressar em juízo visando a devida responsabilização dos administradores. Por sua vez, a ação individual é aquela fundamentada no direito do acionista ou de terceiro diretamente afetado obter a reparação por prejuízos causados ao seu patrimônio. É necessário destacar que o parágrafo segundo do artigo 159 veda expressamente a participação, através dos votos na assembleia geral, do administrador ou dos administradores contra os quais a ação será proposta.
Já ação prevista no artigo 246 da Lei 6.404/1976 dispõe que os controladores deverão reparar os danos causados à companhia controlada oriundos de atos de abuso de poder, sendo os legitimados para sua propositura: 1) os acionistas que representem 5% ou mais do capital social; e 2) quaisquer acionistas, desde que prestem caução pelas custas e honorário de advogado devidos no caso de a ação ser julgada improcedente.
Uma das principais polêmicas contidas no artigo 246 advém da necessidade ou não de prévia aprovação assemblear para a propositura de ação de responsabilidade em face do controlador, na qual se aplicaria, ressalvadas suas particularidades, a regra do artigo 159 à hipótese do artigo 246. Logo, a Lei de Sociedades Anônimas apresenta uma lacuna que deve ser suprida com a aplicação, por analogia, dos requisitos contidos no artigo 159? Ou a disposição do artigo 246 consubstancia a opção do legislador no sentido de, deliberadamente, dispensar a deliberação em assembleia geral como requisito para a propositura da ação de responsabilidade em face do controlador?
Sobre tal temática, tanto o Superior Tribunal de Justiça quanto a Comissão de Valores Mobiliários foram instados a se posicionar, adotando, contudo, posicionamentos distintos.
No Superior Tribunal de Justiça a questão já foi suscitada no julgamento do REsp 1.214.497/RJ no qual foi firmado o entendimento favorável a aplicação extensiva do artigo 159 para a ação social de responsabilidade dos controladores, aplicando-se, caso o acionista não tenha sofrido prejuízo direto, a necessidade de: 1) inércia da companhia, caracterizada pela não proposição da ação de responsabilização em face dos controladores no prazo de três meses da deliberação da assembleia neste sentido; ou 2) recusa da companhia, em sede de assembleia geral, em promover a ação de responsabilização, facultando aos acionistas que representem, pelo menos, 5% do capital social propô-la.
Ainda, por ocasião do julgamento do REsp 12207.956/RJ, a 4ª Turma do STJ entendeu pela aplicação, por analogia, da norma do art. 159 às ações de responsabilidades movidas em face dos controladores, ou seja, sendo os danos causados diretamente à companhia, seriam cabíveis as ações sociais ut universi e ut singuli, respeitando as disposições dos
parágrafos 3º e 4º do supracitado artigo. Portanto, visando a reparação dos prejuízos ocasionados pelos controladores à companhia, a deliberação assemblear do tema constituiria requisito de validade para a propositura da ação.
Mais recentemente, no Conflito de Competência nº 185.702/DF, envolvendo conflito de competência decorrente de três procedimentos, ajuizados em tribunais arbitrais vinculados à mesma câmara de arbitragem, nos quais era pleiteada a responsabilização dos controladores por condutas ilícitas praticadas na gestão da companhia e confessadas em
sede de acordo de colaboração premiada e de leniência celebrado com o Ministério Público Federal. O Superior Tribunal de Justiça reconheceu a competência do tribunal onde tramitava o procedimento arbitral ingressado pela companhia, mesmo que posterior aos procedimentos iniciados pelos acionistas minoritários.
O ministro Marco Aurélio Bellizze, relator do Conflito de Competência, esclareceu, ainda, ser inconcebível que a companhia, titular do direito lesado e diretamente prejudicada pelos controladores, seja tolhida de prosseguir com a ação social de responsabilização, tempestiva e autorizada pelo órgão assemblear, simplesmente porque os acionistas
minoritários, em antecipação à deliberação e, consequentemente, ilegítimos para a propositura, se precipitaram no ingresso da responsabilização, objetivando, provavelmente, o prêmio de cinco por cento disposto no artigo 246.
Em visão divergente aos paradigmas do STJ mencionados acima, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM), em março deste ano, na consulta realizada no Processo Administrativo nº 19957.007423/2021-12, entendeu pela rejeição da extensão dos requisitos previstos para a ação de responsabilidade contra o administrador à ação movida contra acionista
controlador.
Na resposta do colegiado da CVM, foi destacado que aplicar a obrigatoriedade de prévia deliberação assemblear para propositura da ação prevista no artigo 246 resultaria um desprestígio a posição dos minoritários, pois permitiria que os controladores obstassem a ação movida por estes, além de um prejuízo ao sistema de incentivos e desincentivos que o legislador intentou ao criar um sistema de responsabilidade efetiva com o objetivo de controlar o abuso da maioria.
O diretor relator João Accioly destacou não ser crível que a legislação societária tivesse deixado a temática de lado a ponto que ensejasse a aplicação análoga de outro artigo, algo tão central quanto a necessidade ou desnecessidade de uma assembleia não teria como ter sido objeto de desatenção do legislador, sobretudo se considerar que, diante de
tal falta, também estariam silentes importantes questões como a possibilidade de voto do acionista controlador, futuramente réu, em caso de deliberação favorável à ação de responsabilidade. Portanto, a ausência de menção à assembleia geral significa, efetivamente, que ela não é necessária.
A posição defendida pela CVM possui mais sentido ainda ao considerar que, conforme estabelecido pela própria Lei de Sociedades Anônimas, em seu artigo 116, “a”, o acionista controlador é aquele titular de direito de sócio que lhe asseguram, permanentemente, a maioria dos votos nas deliberações da assembleia geral. Por conseguinte, quando a maioria de acionistas é composta pelos supostos perpetradores do abuso, a ação de
responsabilidade em face do controlador consubstanciaria um pedido para que esses acionistas processassem a si mesmo [2].
E mais, quando julgou necessário, o legislador, explicitamente, adicionou ao texto legal a exigência de deliberação, vide o já mencionado artigo 159, e quando não, conferiu tão somente ao órgão competente, sem necessidade de deliberação, a responsabilidade para propositura de ação, por exemplo a ação prevista no artigo 246 e a ação de responsabilidade
em nome da companhia em face de terceiros (artigo 144). Portanto, a ausência de prévia deliberação constitui regra, sendo o artigo 159 a exceção, visto que, nestas ações, o administrador configuraria o polo passivo da demanda, razão pela qual seria necessário que um órgão distinto avaliasse e decidisse a questão, no caso a assembleia geral [3].
Assim como silente em relação à necessidade de aprovação assemblear, o artigo 246, diferentemente do artigo 159, nada dispõe sobre as eventuais regras de impedimento de voto dos controladores, que seriam essenciais no caso de ocorrência de assembleia deliberativa para propositura da ação, logo não há como concluir pela cegueira deliberada do legislador acerca de tais determinações, pois quando vislumbrou a necessidade das
deliberações pela assembleia geral e das regras de impedimento de voto, expressamente acrescentou no texto legal, assim, se não o fez, há que se deduzir, por consequência, pela desnecessidade destas na ação de responsabilidade em face dos controladores.
Portanto, é fundamental atentar que a ação prevista no artigo 246, conforme leciona Calixto Salomão Filho [4], é imperiosa para reativar a participação do minoritário na sociedade, mesmo que sob a perspectiva litigiosa. Assim, atribuir, por analogia, requisitos à ação de responsabilidade em face dos controladores, pensada pelo legislador como instrumento de efetividade no controle do controlador nas sociedades, resultaria em acrescentar mais um óbice ao acesso à justiça por parte dos minoritários, em um cenário no qual a sua própria proteção decorre, justamente, de sua participação como titulares, por direito, destes instrumentos, litigando em nome próprio no polo ativo da demanda, atuando na tutela dos interesses da sociedade, titular do direito material, na qualidade de substitutos processuais [5].
[1] SALOMÃO FILHO, Calixto. O novo direito societário: eficácia e sustentabilidade. 5ª. ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2019.
[2] FISCHEL, Daniel. The Demand and Standing Requirements in Stockholder Derivative Lawsuits. University of Chicago
Law Review, vol. 44, 1976, pag. 185.
[3] BUSCHINELLI, Gabriel Saad Kik e BRESCIANI, Rafael Helou Aspectos Processuais da Ação de Responsabilidade do Controlador movida por Acionista Titular de Menos de 5% do Capital Social (artigo 246, §1º, “b”, da Lei 6.404/76). Processo Societário. Vol. II. Coord. Flávio Luiz Yarshell e Guilherme Setoguti J. Pereira. 2015, p. 259-260.
[4] SALOMÃO FILHO, Calixto. op. cit. p. 455.
[5] BUSCHINELLI, Gabriel Saad Kik e BRESCIANI, Rafael Helou. op. cit. p. 263-264.
Victor Taranto é advogado no escritório Müller, Novaes, Giro e Machado Advogados nas áreas de Direito
Empresarial, societário e compliance e pós-graduado em Direito Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas (FGV).