Opinião: IA e concorrência — navegando em mar aberto

Os debates sobre a interface entre inteligência artificial e concorrência têm se concentrado, de um lado, na aplicação da IA como ferramenta para investigações (computational antitrust[1], e de outro, na possibilidade de conluio algorítmico [2]. Embora alguns estudos apontem para a possibilidade de conluio tácito em cenários experimentais [3], outros indicam que sistemas de IA não seriam suficientes para resolver os problemas de instabilidade típicos do conluio entre humanos [4]. Em verdade, nenhum caso efetivo de conluio algorítmico foi detectado de forma conclusiva [5], razão pela qual Jérôme de Cooman refere-se ao tema como a “baleia branca do direito concorrencial” [6]: exaustivamente procurada, nunca encontrada.

Embora em abordagens sobre ética de IA, haja referência à preocupação quanto à potencial concentração no mercado, poucos trabalhos exploram a fundo o problema seguindo a metodologia de análise concorrencial [7]. Assim, parece oportuno, nesse campo, em vez de apenas olhar para impactos do uso da inteligência na concorrência ou enforcement, acender os holofotes para as condições de concorrência nos nascentes e crescentes mercados de IA.

Essa atenção faz sentido quando percebemos que sistemas de IA, principalmente para metodologias mais complexas de aprendizado de máquina, exigem enormes quantidades de dados, dependem de especialistas de elevada expertise, cada vez mais escassos no mercado, além de recursos computacionais em grande escala [8], cuja implantação pode ser bastante custosa.

Por exemplo, estima-se que os custos de treinamento do modelo de linguagem GPT-4 ultrapassem US$ 100 milhões [9]. No estado atual da tecnologia, principalmente quando falamos de modelos fundacionais, poucos agentes do mercado têm acesso aos recursos técnicos, humanos e financeiros necessários para criar seus próprios sistemas de IA de última geração [10].

Como resultado da combinação desses requisitos, os mercados de IA tendem a se concentrar em poucos atores dominantes. Os fornecedores que já despontam na liderança têm recursos humanos e financeiros suficientes para se tornarem grandes investidores em P&D e para captar sinergias com os mercados downstream [11], condições que, em conjunto, alavancam sua posição e competitividade, trazendo como reflexo um possível “fosso” a ser ultrapassado por novos participantes [12].

A grande maioria dos desenvolvedores não cria suas próprias tecnologias e dependem de soluções de IA como serviço, nos quais provedores técnicos de larga escala fornecem modelos pré-treinados a serem ajustados para aplicações específicas. Dessa forma, provedores de grandes modelos de IA tornam-se o coração de um ecossistema digital, com o orquestrador no centro e os agentes dependentes do serviço como orquestrados (complementors) na periferia.

Em um mesmo ecossistema de IA, orquestrados se organizam em uma série de relações de colaboração e concorrência. Dois ou mais orquestrados podem estar em concorrência direta se oferecem produtos ou serviços comparáveis, como seria o caso de duas empresas que utilizem o GPT-4 para oferecer um serviço de geração automatizada de contratos.

Já a colaboração pode tomar diversas formas, a depender das sinergias entre os serviços oferecidos. Por exemplo, tais serviços de geração automatizada podem se beneficiar de uma eventual integração com outro orquestrado que use o GPT-4 para extrair informações relevantes de contratos já existentes. Mas, independentemente de sua relação uns com os outros, os orquestradores são dependentes do orquestrador do ecossistema, utilizando a tecnologia ou serviços por ele disponibilizados vinculados e restritos aos termos por ele definidos.

Há, por outro lado, a concorrência entre ecossistemas, em torno da competição entre grandes players, que oferecem diferentes propostas de valor. É o caso, por exemplo, da competição entre os ecossistemas de sistemas operacionais Android e iOS, ou dos ecossistemas de e-books do Kindle e do iPad. Valendo-se desta perspectiva para examinar os mercados de IA, já é possível antecipar alguns desafios para a análise concorrencial.

Já de início, é necessário caracterizar a dinâmica da concorrência entre os participantes nos mercados de IA, mas a definição tradicional de mercado relevante pode ser complexa, considerando que sistemas de IA projetados para diferentes tarefas podem se sobrepor em algumas funções, além de haver sistemas baseados em IA de propósito geral, utilizados em vários mercados com aplicações distintas. Some-se que sistemas de IA podem fomentar diferentes serviços, oferecidos em mercados à jusante, o que dificulta a delimitação entre um mercado de IA e um mercado para um serviço potencializado por IA.

Outras questões, observadas em dinâmicas concorrenciais de ecossistemas, podem ser apontadas: a do aprisionamento (ou efeito lock in). Há um custo de aprendizagem e de implementação da solução de IA para os orquestrados, de modo que a migração para um novo ecossistema exige readequação completa dos procedimentos operacionais às especificidades técnicas das novas tecnologias de IA [13].

A proteção da solução de IA por segredos comerciais pode também significar barreira para a mobilidade e dinâmica competitiva [14], o que pode sugerir a regulação com imposição de requisitos de interoperabilidade [15], cujos impactos, porém, ainda precisam ser melhor estudados. Outra preocupação é a extensão em que os efeitos de rede orientados por dados podem afetar os mercados de IA, com o ciclo de feedback (feedback loop) entre o fornecimento da melhor solução e a coleta de maiores volumes e variedades de dados [16].

Por outro lado, é ainda discutível se os fatores de concentração são, efetivamente, consequência inevitável das atuais tecnologias de IA. Alguns argumentos sugerem tratar-se, na verdade, de aspecto contingente [17], considerando-se que há rivalidade entre os principais fornecedores de modelos de IA de grande porte e o lançamento de modelos de código aberto, como o LLaMA da Meta ou o Bloom da Hugging Face, podem trazer mais espaço para rivalidade. Os modelos de larga escala oferecidos por agentes de mercado estabelecidos também já provocaram algum grau de experimentação tecnológica, indicando que modelos relativamente pequenos podem ser bastante exitosos e competitivos, ao menos para determinadas tarefas [18].

O que se observa, por enquanto, é o engajamento de seus desenvolvedores em uma corrida para criar modelos cada vez maiores, o que pode apontar para um futuro oligopolizado.

Mas o apego a uma regulação ex ante, como a imposição de interoperabilidade, talvez sugerido pelo temor a tal cenário, vem exatamente de abordagens éticas e regulatórias, ou de política industrial [19], que não exploram o potencial dos instrumentos de análise antitruste como forma de solução ex post, como forma de garantir a contestabilidade de mercados de IA, seja por meio do controle prévio de concentrações econômicas, seja por meio da repressão a condutas.

A caracterização dos mercados de tecnologias de IA é, portanto, essencial para entender se as práticas dos atores nos mercados de IA afetam negativamente o excedente do consumidor [20] e, em caso afirmativo, se esses impactos adversos exigem uma resposta por parte das autoridades antitruste [21], ou, ao contrário, se esse mercado exigiria mesmo uma regulamentação preventiva [22].

Trata-se de um campo novo a ser explorado pelos especialistas e estudiosos, tanto juristas quanto economistas, de modo a compor conhecimento para subsidiar a atuação das autoridades concorrenciais, mas que não pode prescindir do conhecimento das especificidades técnicas da IA, que desempenham um papel triplo no direito da concorrência.

Primeiro, permite diferenciar em que medida aspectos técnicos consistem em vantagens competitivas ou verdadeiras barreiras à entrada. Segundo, permite entender como escolhas técnicas dentro de modelos de IA podem afetar a concorrência nos mercados downstream. Terceiro, permite a identificação de potenciais dinâmicas hibridas, que talvez ultrapassem as dimensões de concorrência intra e inter ecossistema: por exemplo, o desenvolvimento de modelos de código aberto e a experimentação com base neles pode levar a cenários em que os ecossistemas não são inteiramente fechados, mas admitem certo grau de integração entre seus constituintes, dando origem a formas de concorrência através dos ecossistemas, com um orquestrado se diferenciando por soluções externas para competir dentro do seu ecossistema, mas ao mesmo tempo reforçando a competição entre ecossistemas rivais (tudo  a depender das relações contratuais que começam a se estruturar nesses mercados). 

Importante lembrar, que, com a evolução da IA nas relações econômicas, esse conhecimento sobre a análise antitruste nos mercados de IA pode ser decisivo, no futuro, para entender a dinâmica de concorrência de todo e qualquer setor da economia. Seja porque a IA passa a estar integrada em uma série de produtos, seja pelo uso ubíquo da IA na análise e tomada de decisões estratégicas pelos agentes de mercado. Assim, os problemas e ferramentas conceituais da concorrência nos mercados de IA não estarão mais limitados aos mercados de tecnologia.

Nesse cenário, os eventuais riscos associados ao conluio algorítmico são apenas uma pequena parte dos desafios e oportunidades que a IA traz para o direito concorrencial. Por isso, em vez de caçar a baleia branca, o melhor é antes aprender a navegar pelas águas ainda não desbravadas dos mercados de IA.

 

Juliano Maranhão é professor da Faculdade de Direito da USP, sócio da Opice Blum Bruno e Vainzof Advogados e diretor do Instituto Legal Grounds.

Josie Menezes é advogada, mestre em Direito Administrativo pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), coordenadora do Núcleo de Infraestrutura do Legal Grounds Institute e membro do Comitê de Regulação do Ibrac.

Marco Almada é doutorando área de Regulação da Inteligência Artificial no Instituto Universitário Europeu e mestre em Direito Comparado, Europeu e Internacional pela mesma instituição.

Consultor Júridico

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