A 3ª Turma da 6ª Câmara do Tribunal Regional do Trabalho de Campinas, por votação unânime, entendeu ser atribuição do Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) fundamentar as decisões relacionadas a atos de concentração econômica também com base em potenciais repercussões trabalhistas, sendo necessário ouvir os sindicatos potencialmente afetados pelos atos de concentração.
Com devido respeito a opinião dos ilustres desembargadores, o acordão contém equívocos que se espera sejam corrigidos pelo TST (Tribunal Superior do Trabalho) ou até mesmo pelo STF (Supremo Tribunal Federal).
Em uma apertada síntese, o TRT-15 determinou ao Cade que 1) a instrução dos procedimentos de concentração deverá contar com informações solicitadas a cada um dos sindicatos laborais potencialmente afetados e 2) a decisão relativa a procedimento de ato de concentração econômica deverá, para além dos fundamentos econômicos, apreciar as possíveis repercussões trabalhistas provenientes do ato de concentração.
A decisão se deu no contexto do julgamento de recurso no curso de ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público do Trabalho (MPT), na qual a atuação do Cade à frente dos procedimentos de atos de concentração econômica das sociedades Citrovita e Citrosuco, dentre outras, é colocada em xeque.
O MPT fundamenta que a análise das repercussões trabalhistas estaria no escopo das atribuições do Cade enquanto defensor do interesse coletivo e da ordem econômica, compreendida pela valorização do trabalho e livre iniciativa [1]. Nesse sentido, sustenta que caberia ao Cade rejeitar os atos de concentração que colocassem em risco a manutenção de empregos ou impor como condição à aprovação que os envolvidos não reduzissem seus quadros de colaboradores, ainda que embasados no aprimoramento da atividade econômica e desenvolvimento mercadológico.
O Cade argumenta que sua missão institucional é a defesa da livre concorrência, de modo que não estaria autorizado pelos comandos constitucionais e infraconstitucionais a restringir atos de concentração com base em repercussões trabalhistas, potenciais ou concretas.
O Cade esclarece que a Lei Federal nº 12.529, de 30 de novembro de 2011 (Lei 12.529) não estabelece a preservação de empregos como um bem jurídico que deverá ser considerado no exercício de suas atribuições. Por isso, restringir a atividade econômica com base nesses fundamentos violaria os princípios constitucionais aplicáveis e o próprio Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência (SBDC). Aliás, até onde se tem conhecimento, nenhum órgão antitruste do mundo desenvolvido faz tal análise.
Nesse sentido, fundamenta que o contrário atentaria contra o princípio da legalidade, que é o nascedouro do regime jurídico-administrativo e pelo qual “a Administração Pública só poderá ser exercida na conformidade da lei” [2], bem como à separação dos poderes e o arcabouço jurídico desenvolvido pelo legislador no âmbito da Lei 12.529.
Ainda, pondera que por força do artigo 83 da Lei Complementar nº 75, de 20 de maio de 1993 (Lei Complementar 75), compete ao MPT a defesa dos direitos sociais constitucionalmente garantidos, sendo atribuição deste a defesa das relações de trabalho. Ou seja, na eventualidade de ser apurada violação ao emprego, seria do MPT o direito e o dever de intervir em prol das relações de trabalho.
O nosso entendimento é de que, com base no regime jurídico vigente, não está no escopo de atuação do Cade a proteção do emprego uma vez que: a) os preceitos constitucionais, no contexto da defesa da livre concorrência, não atraem tal incumbência ao Cade [3]; b) a Lei 12.529 não inclui o emprego como fator de possível infração à ordem econômica ou utiliza como critério para a proibição de ato de concentração; c) a defesa dos direitos sociais e das relações de emprego, é de legitimidade do MPT; e d) consequentemente, sobretudo em razão de decisão proferida pelo STF trazendo maior proteção às dispensas coletivas, o Cade não deveria estar obrigado a solicitar informações aos sindicatos representantes das categorias de trabalhadores.
Como estabelecido pelo artigo 186 [4] da Constituição Federal, a função social da propriedade será cumprida quando a utilização da propriedade for realizada com aproveitamento adequado à sua área, o uso dos recursos naturais se der sem prejuízo à preservação do meio ambiente, e não houver a violação das relações de trabalho na atividade explorada, que deverá beneficiar o proprietário, os trabalhadores e, consequentemente, a sociedade como um todo [5].
Apesar de o artigo 186 da CF fazer menção à observância das normas trabalhistas, para fins da defesa da livre concorrência e da manutenção do corolário da livre iniciativa, tal critério deverá ser aplicado em harmonia à eficiência da exploração da atividade empresarial, especialmente considerando que negócios saudáveis são potencialmente geradores de mais empregos.
Com efeito, o artigo 1º [6] da Lei 12.529 estabelece ter por finalidades: 1) estruturar o SBDC e 2) dispor sobre a “prevenção e a repressão às infrações contra a ordem econômica”, sendo, neste contexto, orientada pelos ditames constitucionais. O legislador direcionou a aplicação dos princípios constitucionais com o único fim de preservar a ordem econômica, que é concebida pela livre concorrência e livre iniciativa.
Ora, a livre iniciativa refere-se à liberdade de empreender e conduzir atividades econômicas sem excessiva interferência do Estado, organizando-se de maneira livre. Caso contrário, estaríamos não em uma sociedade capitalista, mas em um mercado dirigido pela força estatal, o que não é consagrado no nosso ordenamento (além de ser um equívoco histórico de proporções gigantescas).
Por essa razão, a menção à função social da propriedade na Lei 12.529 não poderá ser interpretada de forma a conferir ao Cade o poder e a legitimidade para analisar questões trabalhistas e utilizar tais fatores como base das suas decisões no âmbito de procedimento de ato de concentração econômica.
Nem mesmo as técnicas de hermenêutica sistemática poderiam nos conduzir à outra conclusão. A Lei 12.529 não é estruturada a partir de preceitos trabalhistas, mas sim puramente econômicos que são, sim, tecnicamente mensuráveis, em que pese o MPT usar aspas como técnica de dissuadir e para contrapor essas situações.
Por isso, além de transgredir as diretrizes do princípio da legalidade [7], a eventual rejeição ou imposição de condicionante de caráter trabalhista em ato de concentração não encontra respaldo em qualquer dos dispositivos da Lei 12.529. Caso o legislador quisesse tal analise, estaria expressamente consignado essa necessidade.
Por força do artigo 36 [8] da Lei 12.529, são consideradas infrações à ordem econômica os atos que produzem ou possam produzir os seguintes efeitos, dentre outros: 1) limitação ou prejuízo da livre concorrência ou livre iniciativa; 2) domínio de mercado relevante; 3) aumento arbitrário de lucros; e 4) exercício abusivo de posição dominante.
Note que o impacto nas relações trabalhistas não está listado entre as hipóteses de infração à ordem econômica.
Tampouco há na Lei 12.529 a proibição à aprovação de ato de concentração com base em fundamentos trabalhistas. Como previsto no artigo 88 [9] da Lei 12.529, serão proibidos os atos de concentração que impliquem eliminação de concorrência. Contudo, excepcionalmente, a eliminação da concorrência poderá ser autorizada se for necessária para aumentar a produtividade ou competitividade, melhorar a qualidade de bens ou serviços, ou propiciar a eficiência do mercado [10].
Desta forma, se para o aumento da eficiência do mercado for necessário o fechamento de estabelecimentos ociosos, como ocorreu na fusão entre Citrosuco e Citrovita, o Cade não só carece de poderes para impedir que sejam feitas demissões, como poderá utilizar deste fato como critério favorável à aprovação do ato de concentração. É o que prevê a legislação especial.
Por outro lado, independentemente do procedimento de ato de concentração econômica, se houver abusos de cunho trabalhista perpetrados pela sociedade, caberá ao MPT intervir em prol da coletividade. Vale frisar: a intervenção do Cade no exemplo somente seria atraída se o abuso de direito se enquadrasse em uma das hipóteses de infração à ordem econômica, conforme previsto no artigo 36 da Lei 12.529.
É assim pois o regime jurídico brasileiro é instituído a partir da descentralização da função jurisdicional do Estado [11], sendo a tentativa de empoderamento do Cade para a defesa de relações trabalhistas violação à autonomia e relevância do próprio MPT.
Como prescreve o artigo 1º [12] da Lei Complementar 75, é do Ministério Público a “[incumbência da] defesa da ordem jurídica, do regime democrático, dos interesses sociais e dos interesses individuais indisponíveis” O artigo 2º [13] da Lei Complementar 75 ainda acrescenta aos poderes do Ministério Público a tomada das “medidas necessárias para garantir o respeito dos Poderes Públicos”.
E mais especificamente, o artigo 83 [14] da Lei Complementar 75 estabelece ser competência de o MPT promover as medidas necessárias para defesa de interesses coletivos, “quando desrespeitados os direitos sociais constitucionalmente garantidos”.
Desta forma, em tese, ao invés de ajuizar ação pública para impor ao Cade a obrigatoriedade de defender relações de emprego e rejeitar atos de concentração econômica com base em fundamentos trabalhistas, o MPT deveria tomar as medidas necessárias para que o Cade se ativesse às suas funções concorrenciais e não se tornasse excessivamente poderoso e, consequentemente, transgressor da descentralização dos poderes.
Vejam, não estamos aqui defendendo que a atuação do Cade é perfeita e somos críticos em determinadas situações [15]. Contudo, não é possível admitir uma construção jurisprudencial que vá de encontro ao que se determina expressamente a lei.
Noutro giro, com relação à obrigatoriedade de solicitar informações aos sindicatos, entendemos ser medida absolutamente despicienda. Não caberia ao Cade realizar qualquer juízo de valor acerca de possíveis ajustes nos quadros das empresas envolvidas, quando os próprios entes sindicais são legitimados para a proteção dos trabalhadores, em especial após o STF ter decidido pela imprescindibilidade da participação prévia de sindicatos nos casos de demissão coletiva (RE 999435), com repercussão geral reconhecida (Tema 638). Evidente a sobreposição de poderes com possíveis decisões conflitantes, aumentando a insegurança jurídica.
Aliás, a insegurança jurídica e outros efeitos do acórdão do TRT prometem prejudicar a atratividade das operações de concentração. Se o acórdão proferido pelo TRT não for reformado pelos recursos ainda cabíveis, é de se esperar que o volume de tais operações seja impactado também em razão da morosidade a ser ocasionada pela adaptação do Cade e envolvimento sindical.
Se mantida alteração de escopo de atuação do Cade, a apuração dos impactos se materializará no tempo, mas é razoável imaginar que os efeitos resultantes da falta de segurança jurídica e burocratização dos procedimentos não são propícios ao fomento das operações de concentração.
Os autores deste ensaio estimam que os pontos controvertidos serão superados de acordo com os melhores interesses da sociedade brasileira, muito provavelmente quando esse assunto for suscitado perante o TST ou STF.
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[1] Artigo 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: III – função social da propriedade; VII – redução das desigualdades regionais e sociais; VIII – busca do pleno emprego;
[2] DE MELLO, Celso Antônio Bandeira. Curso de Direito Administrativo, 27ª edição, Malheiros Editores Ltda: São Paulo, 2010, pág. 100.
[3] Nessa esteira, é importante notar que o termo “função social” é citado apenas uma única vez na Lei do 12.529.
[4] Artigo 186. A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos: I – aproveitamento racional e adequado; II – utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; III – observância das disposições que regulam as relações de trabalho; IV – exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.
[5] É o que consigna o próprio acórdão do TRT ao se utilizar das lições de Arnaldo Sussekind para definir a função social do trabalho. Citação: SUSSEKIND, Arnaldo et al. Instituições de Direito de Trabalho. 12. Ed. São Paulo: LTr, 1991, p.134.
[6] Artigo 1º Esta Lei estrutura o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência – SBDC e dispõe sobre a prevenção e a repressão às infrações contra a ordem econômica, orientada pelos ditames constitucionais de liberdade de iniciativa, livre concorrência, função social da propriedade, defesa dos consumidores e repressão ao abuso do poder econômico.
[7] Conforme argumentado pelo Cade.
[8] Artigo 36. Constituem infração da ordem econômica, independentemente de culpa, os atos sob qualquer forma manifestados, que tenham por objeto ou possam produzir os seguintes efeitos, ainda que não sejam alcançados: I – limitar, falsear ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência ou a livre iniciativa; II – dominar mercado relevante de bens ou serviços; III – aumentar arbitrariamente os lucros; e IV – exercer de forma abusiva posição dominante.
[9] Artigo 88. §5º Serão proibidos os atos de concentração que impliquem eliminação da concorrência em parte substancial de mercado relevante, que possam criar ou reforçar uma posição dominante ou que possam resultar na dominação de mercado relevante de bens ou serviços, ressalvado o disposto no §6º deste artigo.
[10] Artigo 88. §6º Os atos a que se refere o §5º deste artigo poderão ser autorizados, desde que sejam observados os limites estritamente necessários para atingir os seguintes objetivos: I – cumulada ou alternativamente: a) aumentar a produtividade ou a competitividade; b) melhorar a qualidade de bens ou serviços; ou c) propiciar a eficiência e o desenvolvimento tecnológico ou econômico;
[11] Constituição da República, artigo 2º São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.
[12] Artigo 1º O Ministério Público da União, organizado por esta lei Complementar, é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático, dos interesses sociais e dos interesses individuais indisponíveis.
[13] Artigo 2º Incumbem ao Ministério Público as medidas necessárias para garantir o respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados pela Constituição Federal.
[14] Artigo 83. Compete ao Ministério Público do Trabalho o exercício das seguintes atribuições junto aos órgãos da Justiça do Trabalho: I – promover as ações que lhe sejam atribuídas pela Constituição Federal e pelas leis trabalhistas; III – promover a ação civil pública no âmbito da Justiça do Trabalho, para defesa de interesses coletivos, quando desrespeitados os direitos sociais constitucionalmente garantidos;
[15] Nessa esteira, vide artigo Cade, cadê a inflação? publicado em 2022, disponível em: https://valor.globo.com/
Fernando Zanotti Schneider é sócio da Abe Advogados e responsável pelas áreas societária, M&A e Contratos e Negociações Complexas e associado ao Instituto Brasileiro Governança Corporativa (IBGC).
Fernanda Garcez é sócia da Abe Advogados e responsável pela área trabalhista, especialista e Mestre em Direito do Trabalho pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e membro do Instituto dos Advogados de São Paulo (Iasp).
Bruno Lopes Filho é advogado da Abe Advogados e atua na área de Direito Empresarial com foco em Societário, Fusões e Aquisições e Contratos.