Em 25 de outubro de 2021, após intensa discussão e polêmica, foi publicada e entrou em vigor a Lei nº 14.230/2021, que alterou radicalmente a Lei nº 8.429/1992, sendo razoável considerar a nova legislação quase como que uma Lei própria de Improbidade Administrativa, visto que houve alterações em praticamente todos os artigos.
Sabe-se que tal mudança legislativa se deu em parte em razão de uma percepção do uso político — e por vezes até mesmo eleitoral — do ajuizamento de ações de improbidade, inclusive notando o ministro Alexandre de Moraes, em seu voto [1] no ARE 843.989, que “na Audiência Pública na Comissão de Constituição e Justiça, inicialmente aqui mencionada, o ministro Mauro Campbell Marques, Presidente da Comissão de Juristas, informou que nas audiências na Câmara dos Deputados, foi suscitado que as ações contra detentores de mandato tendem a ‘adormecer’ no judiciário, só vindo a imprimir um ritmo novo nos processos judiciais a partir do momento em que se deflagram processos eleitorais”.
Em artigo publicado nesta revista [2], chegou-se a afirmar que haveria uma prática presente na atuação de alguns profissionais do Ministério Público de anteceder e suceder o ajuizamento de uma Ação de Improbidade por “ampla divulgação, com a finalidade de carrear ao acusado todos os ônus de imagem decorrentes da acusação”.
É mesmo patente que, muito embora o artigo 5º, LVII, da Constituição Federal de 1988 assegure o direito à presunção de inocência, dispondo que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”, na realidade tal garantia se estende — quando muito — ao Poder Judiciário, inexistindo na opinião pública qualquer tipo de presunção nesse sentido, mas sim, ao contrário, persistindo ainda uma presunção de culpabilidade de todos aqueles que foram meramente acusados e cujo processo ainda está em andamento.
À título de exemplo que demonstra bem tal percepção, aplicável não apenas aos réus em ações penais, mas também no âmbito da improbidade administrativa, suficiente relembrar o episódio em que um candidato à Presidência da República, nas eleições de 2018, em entrevista ao Jornal Nacional, acabou por discutir com o jornalista William Bonner acerca do status de réu do presidente do Partido Democrático Trabalhista.
Em tal ocasião, contrapondo o jornalista acerca de eventual contradição das críticas do candidato a casos de corrupção com sua ligação ao referido presidente do PDT, réu por improbidade administrativa, o candidato preferiu contestar que o presidente partidário realmente seria réu, momento em que pareceu ser esquecida qualquer tipo de presunção de não culpabilidade, tendo em vista que no âmbito da opinião pública realmente a presunção é inversa.
Com a evolução e democratização dos meios de comunicação — mais de 80% da população brasileira tendo acesso à internet [3] —, tal presunção inversa tende a se alastrar com ainda maior velocidade e com o potencial de prejuízos gravíssimos para a imagem e para a honra dos prejudicados, ainda que inocentes.
Nesse contexto, a discussão acerca do segredo de justiça e da limitação ao princípio da publicidade no âmbito das ações de improbidade administrativa ganha especial relevância. Isso porque, realizando uma análise principiológica mais ampla e considerando os direitos dos indiciados, especialmente dos agentes públicos, faz-se necessária considerável cautela para que permaneça resguardada, além da presunção de inocência, a dignidade da pessoa humana, a honra e a intimidade dos acusados.
Anteriormente à Lei nº 14.230/2021, o procedimento das ações de improbidade administrativa, após o inquérito — facultativo —, se iniciava com o ajuizamento da ação, constando na redação antiga do §6º do artigo 17 da Lei nº 8.429/1992 que a ação seria “instruída com documentos ou justificação que contenham indícios suficientes da existência do ato de improbidade ou com razões fundamentadas da impossibilidade de apresentação de qualquer dessas provas”.
Havia a previsão de notificação para manifestação prévia do requerido, antes mesmo de o juiz decidir se receberia ou rejeitaria a inicial, de modo que no regime legal anterior a decisão de recebimento da inicial se dava já com o contraditório formado, após ter sido exercida defesa e apresentadas justificações (sem prejuízo da posterior contestação).
Em tal sistemática, havia bastante coerência na defesa da limitação do princípio da publicidade — com a consequente aplicação do segredo de justiça — nessa fase inicial do processo, anteriormente ao recebimento da inicial pelo juiz, de forma a resguardar a garantia da intimidade do acusado e seu estado de inocência, principalmente nesse estágio processual de mero ajuizamento, em que não havia sequer a comprovação de mínimos indícios, mas já sendo aplicável a inconstitucional “presunção de culpabilidade” anteriormente mencionada.
Com efeito, a chamada Convenção de Mérida — Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção, vigente no Brasil por meio do Decreto nº 5.687/2006 —, inclusive, em seu artigo 10, letra “a”, expressamente alerta acerca da necessidade do “devido respeito à proteção da intimidade e dos documentos pessoais”.
Na redação anterior da Lei de Improbidade Administrativa, assim, havia bastante razoabilidade em argumentar no sentido de que o processo permanecesse em segredo de justiça automático desde o ajuizamento da petição inicial até o trânsito em julgado da decisão de recebimento da inicial — já tendo sido apresentada a defesa prévia —, decisão em que necessitaria ser fundamentada as razões autorizativas da publicidade, mesmo que, para tanto, eventualmente fosse necessária uma alteração legislativa.
Com a Lei nº 14.230/2021, todavia, houve drástica transformação no trâmite judicial das ações de improbidade: não há mais qualquer manifestação prévia dos requeridos em momento anterior ao recebimento da inicial, ao que agora o contraditório apenas se estabelece diretamente com a contestação.
No entanto, enquanto anteriormente o juiz praticamente não exercia nenhum juízo acerca dos fatos previamente à primeira manifestação dos requeridos, com a nova legislação há expressa previsão no §6º-B do artigo 17 que a inicial deverá ser rejeitada não só nos casos normais de indeferimento da inicial previstos no CPC, mas também quando a inicial não preencher os requisitos dos incisos I e II do §6º do mencionado artigo, ou ainda quando manifestamente inexistente o ato de improbidade imputado.
Houve, realmente, um endurecimento dos requisitos da inicial, pois o §6º prevê a necessidade — sob pena de rejeição antes mesmo da Contestação — de “individualizar a conduta do réu e apontar os elementos probatórios mínimos que demonstrem a ocorrência das hipóteses dos artigos 9º, 10 e 11 desta Lei e de sua autoria, salvo impossibilidade devidamente fundamentada”, bem como de ser a inicial “instruída com documentos ou justificação que contenham indícios suficientes da veracidade dos fatos e do dolo imputado ou com razões fundamentadas da impossibilidade de apresentação de qualquer dessas provas, observada a legislação vigente, inclusive as disposições constantes dos arts. 77 e 80 da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil)”.
Percebe-se que, apesar da eliminação da defesa prévia do ordenamento jurídico (nas ações de improbidade), houve uma contrapartida que deveria dificultar o recebimento de iniciais temerárias e que serviriam meramente para prejudicar a imagem e intimidade dos acusados sem que existentes mínimos indícios de atos ímprobos, ao que se poderia questionar acerca de se ainda seria suficiente o segredo de justiça apenas até o recebimento da inicial (como defendido no vigor da redação anterior da Lei de Improbidade Administrativa).
Apesar dos novos requisitos para a inicial, o fato do recebimento desta se dar sem qualquer manifestação prévia dos réus ainda torna bastante factível que a publicização das ações gere graves, e desproporcionais, danos à imagem dos demandados, visto que poderia ser plenamente possível o imediato reconhecimento da inexistência de improbidade pela análise até mesmo superficial da manifestação defensiva.
Afinal, muito embora no regime legal anterior não fosse necessária uma análise exauriente do mérito pelo juízo, a jurisprudência era uníssona no sentido da “necessidade de fundamentação da decisão que recebe a petição inicial da Ação de Improbidade Administrativa” [4], visto que “o exame das questões aduzidas no contraditório preliminar, que antecede o recebimento da petição inicial da ação civil de improbidade (§§ 8º e 9º do artigo 17), assume relevância ímpar, à medida em que o magistrado, convencido da inexistência do ato de improbidade, da improcedência da ação ou da inadequação da via eleita, pode, inclusive, rejeitar a ação (§8º, artigo 17), ensejando a extinção do processo” [5].
Ora, havia previsão legal expressa no sentido de que a manifestação prévia poderia inclusive ser instruída com documentos, que poderiam de pronto afastar a percepção de que haveriam indícios de atos ímprobos, o que reforça o fato de que, apesar do aparente endurecimento dos requisitos da inicial, no regime legal atual é plenamente possível que sejam recebidas ações de improbidade que jamais seriam na antiga redação da lei, por serem de fácil refutação com o exercício do contraditório.
Enquanto anteriormente a legislação previa que “da decisão que receber a petição inicial caberá agravo de instrumento” (redação original do artigo 17, §10, da Lei de Improbidade Administrativa), atualmente a previsão é que “das decisões interlocutórias caberá agravo de instrumento, inclusive da decisão que rejeitar questões preliminares suscitadas pelo réu em sua contestação” (artigo 17, §21, da Lei de Improbidade Administrativa).
Nesse contexto, nos parece mais pertinente o entendimento no sentido de que o processo permaneça sob segredo de justiça ao menos até que seja proferida a decisão atualmente prevista no artigo 17, §10-C, da Lei de Improbidade Administrativa, momento em que “o juiz proferirá decisão na qual indicará com precisão a tipificação do ato de improbidade administrativa imputável ao réu”, a partir de então devendo prevalecer — ao menos em regra — o princípio da publicidade.
Assim, haverá uma compatibilização mais adequada da necessidade de proteção da moralidade pública e do direito da sociedade à informação com os direitos e garantias fundamentais dos acusados, de modo a — em consonância com o espírito da Lei nº 14.230/2021 — pelo menos minar o uso político das ações de improbidade, impedindo uma manipulação da opinião pública com a divulgação indevida do ajuizamento de ações de improbidades em que não foram demonstrados mínimos indícios da prática de atos ímprobos.
Afinal, não negando a importância do princípio da publicidade, a dignidade da pessoa humana, enquanto fundamento da ordem constitucional brasileira, deve sempre servir de balizador da interpretação, de modo que necessário levar em consideração o grave prejuízo à imagem e honra dos indevidamente expostos como presumidamente (não no Direito, mas na opinião pública) culpados de atos ímprobos, mesmo que inexista qualquer lastro probatório para tanto.
A medida acima proposta, de decretar o segredo de justiça nas ações de improbidade até que concretizado o contraditório e analisadas as razões — ainda que não de forma completa, o que só ocorrerá na sentença —, sequer traz efetivos prejuízos ao direito à informação da sociedade, já que haverá a publicidade anteriormente à instrução probatória, fase por vezes mais prolongada do processo, de forma a ser a solução mais compatível com a dignidade da pessoa humana, realizando um sopesamento entre o princípio da publicidade e os da honra, imagem e presunção de inocência, mitigando eventuais danos aos mencionados direitos constitucionais, o que, por si só, possui peso suficiente para justificar a restrição temporária à publicidade.
Pedro Augusto Souza Bastos de Almeida é sócio proprietário do escritório Couto, Girão, Bastos & Câmara Advogados e pós-graduado em Direito Público e em Licitações e Contratações Públicas.
José Lauro Seixas Lima é sócio proprietário do escritório Braga, Lincoln e Seixas Advogados, mestre em Direito e pós-graduado em Direito Tributário e Processo Civil.
Vitor Silvestre Granja é membro do escritório Braga, Lincoln e Seixas Advogados, mestrando em Penal pela Universidade de Lisboa/PT e pós-graduado em Direito Penal Econômico.