Este texto questiona a omissão da lei processual em assegurar, à parte vencedora em primeira instância, a oportunidade de sustentar oralmente no julgamento da remessa necessária da sentença proferida “contra a União, os estados, o Distrito Federal, os municípios e suas respectivas autarquias e fundações de direito público“, no mais das vezes, “sujeita ao duplo grau de jurisdição, não produzindo efeito senão depois de confirmada pelo tribunal” [1] [2].
Afora as hipóteses de incidência da regra e algumas ressalvas, o CPC/2015 não disciplina minuciosamente a espécie, de modo que a discussão aqui proposta perpassa os contornos da remessa necessária definidos na jurisprudência do STJ (Superior Tribunal de Justiça).
Nas súmulas, o tribunal assentou que o efeito devolutivo da remessa alcança, inclusive, os honorários de sucumbência [3]; que as decisões por maioria no julgamento da remessa não ensejavam os embargos infringentes do CPC/1973 [4], interpretação hoje consolidada expressamente no artigo 942, §4º, II, do CPC; que a remessa é compulsória quando se tratar de sentença ilíquida [5]; e que incide à remessa a vedação ao reformatio in pejus [6], ressalvando-se, “quando a alteração da sentença, em sede de remessa necessária ou recurso voluntário, se dá em razão de matéria de ordem pública“, como, v.g., a legitimidade da Fazenda [7].
A omissão da Fazenda Pública em apelar não gera preclusão lógica de eventual recurso às instâncias extraordinárias, e, no julgamento da remessa, são cognoscíveis todas as questões que poderiam ser apreciadas de ofício pelo juízo de primeiro grau [8]. É dizer: em razão de sua translatividade ampla, a remessa não se encontra limitada aos fundamentos de eventual recurso voluntário [9].
Ainda de acordo com a jurisprudência do STJ, “os pressupostos normativos para a dispensa do reexame têm natureza estritamente econômica e são aferidos, não pelos elementos da demanda (petição inicial ou valor da causa), e sim pelos que decorrem da sentença que a julga” [10]; é a data da sentença o termo de incidência da regra, de modo que as modificações à lei processual posteriores à propositura da ação se aplicam quando de sua prolação [11]; se o valor envolvido se encontrar manifestamente contido pelos parâmetros legais, a iliquidez do julgado não atrai a remessa necessária, a despeito do teor da Súmula 490/STJ [12]; não há remessa necessária na fase de execução [13]; e os recursos especiais interpostos contra acórdãos proferidos na espécie também estão sujeitos aos requisitos próprios da instância extraordinária, como o prequestionamento [14]. Nas ações cíveis por ato de improbidade administrativa, a sentença de procedência não está sujeita ao reexame necessário [15], ao passo que a sentença que isenta os réus de responsabilidade, está [16].
Ocorre que, embora a confirmação da sentença contra a Fazenda Pública como requisito de sua eficácia seja questão há muito consolidada no Direito Processual Civil [17], o artigo 937 do CPC não assegura expressamente a sustentação oral no procedimento de julgamento da remessa. Donde a presente proposta de refletir se o direito à sustentação oral na ocasião do julgamento, faculdade processual decorrente da garantia constitucional ao contraditório e à ampla defesa, é, de fato, passível de restrição pela omissão do Código de Processo Civil ou por norma regimental. Essa reflexão encontra provocação no artigo 45 do Regimento Interno do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, que concentra a maior carga de trabalho aos magistrados de segundo grau do país [18], segundo o qual “não haverá sustentação oral no julgamento de remessa necessária“.
Consulta aos regimentos internos dos demais tribunais regionais federais revela que apenas no TRF-1 há essa vedação expressa; os normativos dos tribunais da 2ª, 3ª e 5ª região não vedam, mas não autorizam a sustentação; o da 4ª Região, não trata explicitamente da remessa, mas, ao listar as hipóteses de cabimento da sustentação, ignora a espécie; assim como o recentíssimo RITRF6, que só garante sustentação oral “nas hipóteses previstas nos incisos I a VIII do art. 937 do Código de Processo Civil, (…) e nas hipóteses do § 2º-B e seus incisos, do art. 7º da Lei n. 8.906/1994“. Nos tribunais de justiça estaduais, há mais casos em que o regimento interno não assegura nem veda explicitamente a sustentação oral em remessa necessária, mas há, também, casos tanto de permissão quanto de vedação expressa.
Seja qual for a disciplina do respectivo regimento, entretanto, a questão é que todos os tribunais estaduais e regionais julgam processos submetidos ao duplo grau compulsório, de modo que a omissão do CPC abala a unidade e a integridade do processo civil ao permitir que, no procedimento compulsório da remessa necessária, alguns tribunais de apelação ouçam as partes na ocasião do reexame da causa, e outros não.
Releva notar que, ao tratar da sustentação oral, o Código de 1973 aludia a recurso, sem especificar as espécies processuais em que a intervenção era cabível, negando-a expressamente nos agravos de instrumento. Sob vigência daquele Código, o Superior Tribunal de Justiça julgou o REsp 493.862, em que assegurou à Fazenda Pública o direito de sustentar oralmente no julgamento da remessa, a despeito da falta de previsão legal expressa e, no caso, de recurso voluntário. Conforme o julgado, dada a convergência de efeitos do julgamento da apelação e da remessa necessária, o vocábulo recurso no permissivo legal então vigente deveria “ser interpretado em sentido amplo” [19].
O novo código, de sua vez, explicitou a garantia de sustentação oral em uma dezena de recursos, ações e incidentes, como em agravo de instrumento relativo a tutela provisória ou em julgamento de mérito de rescisórias, reclamações e mandados de segurança; mas, como se disse, não tratou da remessa no ponto. Certo é que, sensível à necessidade de permitir às partes a exposição dos fatos fundamentos de direito ao tribunal, acentuada pela jurisprudência do STJ, o Código atual ampliou as hipóteses de manifestação oral na ocasião do julgamento. E ainda permite os regimentos a autorizarem-na em outras espécies [20].
Há, com efeito, diversos precedentes do Supremo Tribunal que anularam julgamentos em razão da supressão da oportunidade quando prevista em lei, “tendo em vista os postulados do contraditório e da ampla defesa” [21]; e a jurisprudência do STJ reputa, no mesmo sentido, que a garantia legal de sustentação oral substantiva “dever imposto, de forma cogente, a todos os tribunais, em observância aos princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa” [22].
A despeito da falta de previsão legal expressa de sustentação oral no julgamento da remessa necessária, é preciso ter em conta que o caminho procedimental do feito sentenciado contra a Fazenda Pública se bifurca a partir da postura — ativa ou não — da parte vencida. Interposta apelação, pode a parte recorrida manifestar-se por escrito, em contrarrazões, e, na ocasião do julgamento, oralmente; mas, caso a Fazenda mantenha-se inerte os autos são imediatamente remetidos ao tribunal. Ou seja: na remessa necessária, enquanto a Fazenda Pública se beneficia da regra que a autoriza a manter-se inerte, ao vencedor não se assegura, sequer, uma única oportunidade de defender a manutenção da sentença.
É certo que, no mais das vezes, à míngua de impugnação, a sentença se sustenta por si. Não obstante, a remessa submete ao tribunal todas as matérias de fato e de direito que poderiam ter sido levadas em conta pelo juízo sentenciante, ainda que este tenha encontrado fundamentação suficiente apenas em parte da matéria de conhecimento. O seguinte trecho do voto-condutor do REsp 905.771, julgado pela Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça, sob a relatoria do saudoso ministro Teori Zavascki, aponta a hipótese que motiva os presentes questionamentos:
“Isso significa dizer que, quando há reexame necessário, o eventual recurso de apelação da Fazenda não inova e muito menos amplia o âmbito de cognição ou os efeitos do julgamento do segundo grau. Na prática, ele representa, simplesmente, um reforço de argumentação em prol das teses fazendárias, as quais, independentemente da interposição do recurso, compõem o objeto cognitivo do Tribunal, que manterá ou modificará a sentença. O que não se pode negar é que, havendo reexame necessário, a reforma da sentença é hipótese sempre possível e que não pode ser desprezada, mesmo na ausência de apelação” [23].
Essa hipótese de modificação da sentença — sempre possível e que não pode ser desprezada — coloca em xeque a legitimidade do procedimento, por deixar de assegurar ao beneficiário a oportunidade de sustentar no julgamento as razões para sua manutenção. Ora, conforme explicita o CPC, até mesmo o acolhimento de embargos de declaração pressupõe a manifestação da parte contrária, sob pena de nulidade [24], afinal, o artigo 9º do Código atual elevou à condição de norma fundamental do processo civil a garantia de que “não se proferirá decisão contra uma das partes sem que ela seja previamente ouvida“.
E mais: a Fazenda tem a garantia de que, no reexame obrigatório, não haverá risco de que sua situação seja agravada [25], enquanto o vencedor em primeira instância não tem essa prerrogativa e fica sujeito à possibilidade de reversão da sentença que lhe foi favorável, sem oportunidade de deduzir perante o tribunal as suas razões.
Entendemos que esse privilégio processual é mais um elemento que cria um inadequado desequilíbrio entre as partes, porque desrespeita a garantia da isonomia no exercício do contraditório, também prevista no artigo 7º do CPC, o qual assegura às partes não apenas paridade de tratamento, mas, sobretudo, paridade de armas [26].
Quanto a esse ponto, é preciso observar que o Supremo Tribunal Federal já deixou expresso, em julgamento realizado sob o regime da repercussão geral, que “as exceções ao princípio da paridade de armas apenas têm lugar quando houver fundamento razoável baseado na necessidade de remediar um desequilíbrio entre as partes, e devem ser interpretadas de modo restritivo, conforme a parêmia exceptiones sunt strictissimae interpretationis” [27].
Sendo assim, salvo melhor juízo, a omissão do Código de Processo Civil e as disposições dos regimentos internos não podem servir para negar a sustentação oral. Ademais, se se admite que a sustentação na remessa necessária só seria cabível se houvesse previsão regimental expressa, é de se questionar a legitimidade da delegação do Código de Processo Civil para que os tribunais de apelação disciplinem esse procedimento compulsório, afinal, é privativa da União a competência para legislar sobre processo [28].
Em conclusão, entendemos que, seja em decorrência da omissão do Código de Processo Civil ou até mesmo por vedação regimental expressa, a supressão da oportunidade de o beneficiário sustentar oralmente as razões para manutenção da sentença sujeita a reexame necessário inviabiliza o exercício pleno do contraditório e da ampla defesa no procedimento compulsório.
[3] Súmula 325/STJ: “A remessa oficial devolve ao Tribunal o reexame de todas as parcelas da condenação suportadas pela Fazenda Pública, inclusive dos honorários de advogado“. Não obstante, a jurisprudência realça que, a despeito de condenação em honorários de sucumbência, a sentença sem resolução de mérito não está sujeita ao duplo grau compulsório (cf. AgRg no AREsp 335.868/CE, rel. Min. Herman Benjamin, 2ª Turma, DJe de 9.12.13).
[4] Súmula 390/STJ: “Nas decisões por maioria, em reexame necessário, não se admitem embargos infringentes.”
[5] Súmula 490/STJ: “A dispensa de reexame necessário, quando o valor da condenação ou do direito controvertido for inferior a sessenta salários mínimos, não se aplica a sentenças ilíquidas.”
[6] Súmula 45/STJ: “No reexame necessário, é defeso, ao Tribunal, agravar a condenação imposta à Fazenda Pública.”
[7] AgRg no REsp 1.261.397/MA, rel. min. Arnaldo Esteves Lima, 1ª Turma, DJe de 3.10.12. No mesmo sentido, AgInt no REsp 1.649.788, rel. Min. Og Fernandes, 2ª Turma, DJe de 14.8.20.
[12] AgInt no REsp 1.705.814/RJ, rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, 1ª Turma, DJe de 4.9.20; AgInt no REsp 1.873.359/PR, rel. Min. Gurgel de Faria, 1ª Turma, DJe de 17.9.20; EDcl no REsp 1.891.064/MG, rel. Min. Herman Benjamin, 2ª Turma, DJe de 18.12.20; AgInt no AREsp 1.807.306/RN, rel. Ministro Mauro Campbell Marques, 2ª Turma, DJe de 2.9.21.