Em que pese somente na história mais recente tenha se verificado a instituição dos direitos fundamentais em sua concepção moderna, a doutrina então conhecida como “direitos dos homens” — que teve grande relevância para o constitucionalismo — nasceu na Antiguidade, momento em que se verificou diretrizes fundamentais da vida e da existência humana [1].
No século 13, firmou-se a ideia de que existiam direitos inerentes à condição humana, inaugurando, assim, um pensamento jusnaturalista. Todavia, somente na segunda metade da Idade Média foi possível observar os direitos fundamentais de maneira formalizada, através de documentos escritos [2].
Do ponto de vista histórico, diversas Declarações e Constituições, a exemplo da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789), da Constituição Americana (1787) e da Constituição Francesa (1791) reconheceram os direitos civis, políticos e sociais, embora ainda não houvesse uma preocupação em se estabelecer postulados para garantir que esses direitos fossem aplicados em sua plenitude às pessoas com deficiência.
Foi na contemporaneidade que se passou a observar explicitamente a elaboração de normas e de diretrizes voltadas a assegurar às pessoas com deficiência o acesso ao ambiente social e econômico.
Neste sentido, na década de 1970, a Organização das Nações Unidas (ONU) publicou a Declaração de Deficientes Mentais e estabeleceu o Ano Internacional da Pessoa com Deficiência (AIPD). Na ocasião, editou diversos regramentos que visavam, por meio de esforços nacionais e internacionais, proporcionar a essas pessoas não só assistência adequada, mas também oferecer-lhes oportunidade para o trabalho de maneira a assegurar-lhes plena integração social.
No Brasil, a Constituição de 1988 cuidou de estabelecer não só direitos fundamentais basilares à proteção dos direitos da pessoa com deficiência, à dignidade da pessoa humana e ao direito à igualdade, mas também, elencou direitos (fundamentais) sociais, como a proibição de qualquer discriminação no tocante ao salário e aos critérios de admissão do trabalhador com deficiência [3].
O Brasil também é signatário de um marco internacional relevante, a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência de 2007, aprovada pelo Congresso e promulgada pelo Decreto nº 6.949/2009.
No plano infraconstitucional, a Lei nº 13.146/2015 inovou ao estabelecer um pacto social: o de trazer tanto a responsabilidade do Estado quanto de toda a sociedade no intuito de possibilitar o acesso ao trabalho das pessoas com deficiência, em um ambiente acessível e inclusivo, garantindo-lhes igualdade de oportunidades em relação às demais pessoas.
No âmbito econômico, a discussão gira em torno de se implementar mecanismos que permitam a efetiva inclusão de pessoas com deficiência no mercado de trabalho, de maneira a garantir-lhes emancipação e concretude dos direitos assegurados pela legislação pátria.
Tendo em vista que a inclusão social é dever de todos, e que os setores econômicos devem contribuir para efetivá-la, a Lei nº 8.213/1991 estabeleceu às empresas a obrigatoriedade de preencherem parte de seus quadros com pessoas com deficiência e/ou reabilitadas.
Ultrapassadas mais de duas décadas da publicação da lei de cotas, o tema guarda relevância na medida em que os números apurados por meio de levantamentos recentes sobre a questão ainda demonstram uma subparticipação de pessoas com deficiência na força de trabalho.
A recente Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) promovida e publicada pelo IBGE em 2023 indica que, dos 17,5 milhões de pessoas com deficiência em idade economicamente ativa, somente 5,1 milhões compõem efetivamente a força de trabalho.
Isto é, mais de 12 milhões de brasileiros com deficiência estão fora do mercado de trabalho — aproximadamente quatro milhões de homens e sete milhões de mulheres [4].
Os números apontam a necessidade de se instituir, cada vez mais, políticas públicas e ações afirmativas que visem garantir o adequado acesso de brasileiros e brasileiras com deficiência ao mercado de trabalho, de maneira a garantir seu pleno acesso social.
Para tanto, é necessário se valer não só da legislação, mas também da fiscalização e, em alguns cenários, da própria tutela jurisdicional, de modo a promover ferramentas concretizadoras dos direitos das pessoas com deficiência. Todavia, essas ferramentas não podem extrapolar os aspectos legais definidos no arcabouçou legislativo explicitado.
É neste contexto que o Tribunal Regional do Trabalho do Espírito Santo (17ª Região) resolveu definir, em junho de 2023, na Súmula nº 63, entendimento contrário à matéria pacificada no âmbito do Tribunal Superior Trabalho, por meio da Subseção I da Seção Especializada em Dissídios Individuais (SDI-1), desde 2017 [5], ao editar o seguinte verbete:
“DISPENSA DE PESSOA COM DEFICIÊNCIA OU REABILITADA. NECESSIDADE DE COMPROVAR A CONTRATAÇÃO SUBSTITUTIVA DE EMPREGADO NAS MESMAS CONDIÇÕES E O ATENDIMENTO DO PERCENTUAL MÍNIMO PREVISTO NA LEI. NULIDADE. INTERPRETAÇÃO DO ARTIGO 93 e §1º DA LEI Nº 8.213/91. A dispensa de empregado reabilitado ou com deficiência somente é válida se observadas, cumulativamente, a cota legal e a prévia contratação de outro trabalhador em semelhantes condições. Uma vez não atendidas tais exigências, a dispensa é nula e devida é a reintegração. Interpretação teleológica do artigo 93, caput, e §1º, da Lei 8.213 /91.”
Como se observa, o setor empresarial capixaba deverá atender, obrigatoriamente, ao menos três condições objetivas para validar a dispensa de qualquer trabalhador enquadrado como “pessoa com deficiência” ou “reabilitada pelo INSS”: 1) cumprimento da cota legal prevista nos percentuais do artigo 93 da Lei nº 8.213/1991; 2) contratação prévia de outro trabalhador reabilitado pelo INSS ou PCD, e 3) em condições semelhantes.
Na fundamentação do seu voto, a relatora do Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas nº 0000427-32.2022.5.17.0000, que ensejou a edição da súmula em referência, a desembargadora Wanda Lucia Costa Leite Franca Decuzzi, justificou:
“à luz da função social da empresa e dos princípios fundantes da ordem econômica, ambos com sede constitucional e também à luz da interpretação literal e teleológica do art. 93 em destaque – que não seja a imposição de manter o emprego da pessoa reabilitada ou com deficiência enquanto não contratado substituto em situação semelhante, independentemente da empresa obedecer ao percentual mínimo.”
Contudo, rege o artigo 93, §1º, da Lei nº 8.213/1991, com redação alterada pela Lei nº 13.146/2015:
“Artigo 93. A empresa com 100 ou mais empregados está obrigada a preencher de 2% a 5% dos seus cargos com beneficiários reabilitados ou pessoas portadoras de deficiência, habilitadas, na seguinte proporção:
[…]
§1o A dispensa de pessoa com deficiência ou de beneficiário reabilitado da Previdência Social ao final de contrato por prazo determinado de mais de 90 dias e a dispensa imotivada em contrato por prazo indeterminado somente poderão ocorrer após a contratação de outro trabalhador com deficiência ou beneficiário reabilitado da Previdência Social.”
Da leitura do dispositivo, observa-se que o TRT da 17ª Região, equivocadamente, ressuscitou a redação do artigo 93, §1º, da Lei nº 8.213/1991, ao impor a contratação de trabalhadores em “condições semelhantes”.
O antigo brocardo jurídico lex posterior derogat legi priori, na lição de Maria Helena Diniz [6], dispõe que, na hipótese de duas normas do mesmo nível ou escalão, a última prevalece sobre o anterior. Trata-se de princípio jurídico fundamental, embora não previsto em norma positiva. No caso brasileiro, a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Lindb) também regulamenta a questão (artigo 2º, §1º) [7].
Neste aspecto, portanto, o entendimento do TRT da 17ª Região afronta literalmente os princípios constitucionais da separação de poderes (art. 2º da CF/1988) e da legalidade (artigo 5º, II, da CF/1988), considerando a imposição de contratação de trabalhador reabilitado pelo INSS ou PCD em situação semelhante.
Mas não é só. A Súmula capixaba impõe ainda o requisito cumulatividade, ou seja, independentemente de a empresa já cumprir a cota, isto é, o seu percentual de contratação superar os percentuais mínimos previstos no artigo 93 da Lei nº 8.213/1991, o seu poder potestativo de desligar não poderá ser exercido, na contramão de outro direito fundamental do empregador, previsto no artigo 7º, I, da Constituição.
Neste sentido, extrai-se de parte do fundamento do IRDR[8] que resultou na publicação da Súmula em referência, o entendimento de que qualquer movimentação — louvável e cumprindo o papel social determinado pela própria legislação constitucional e infraconstitucional — das empresas em contratar pessoas com deficiência em percentual superior ao estabelecido pela legislação é ato de mero liberalidade, logo, sujeito aos três requisitos cumulativos estabelecidos acima.
Em uma abreviada reflexão, entende-se que essa garantia poderá acarretar um desaceleramento de contratações de profissionais com deficiência acima dos percentuais legais, na medida em que se estabelece não só um ônus financeiro com a contratação prévia, mas também, uma verdadeira limitação à estratégia empresarial ao mitigar o direito potestativo do empregador.
Importante registrar que a matéria foi apreciada em diversas oportunidades pela SBDI-1 do TST (órgão responsável por unificar o entendimento entre as turmas do TST), desde 2017, que consolidou o entendimento de que os PCDs possuem uma garantia subjetiva e temporária de emprego, mas que limita o direito potestativo do empregador de dispensar seus empregados, objetivando proteger o grupo de empregados reabilitados ou portadores de deficiência.
Desse modo, a garantia de emprego para o trabalhador demitido em desrespeito à cota mínima é apenas indireta, isto é, não há como exigir que as empresas contratem substituto em condição semelhante, desde que mantenha em seu quadro o percentual fixado no artigo 93 da Lei nº 8.213/1991.
Segundo o ex-ministro do TST Alberto Luiz Bresciani de Fontan Pereira [9], “tal exigência não se extrai nem do teor expresso do texto legal, nem da teleologia da norma”.
Diante disso, entende-se que, como fonte de integração, a Súmula nº 63 não pode substituir a própria lei, através de técnica equivocada hermenêutica. Carlos Maximiliano [10] ressalva que ao intérprete “[…] é obrigatório observar a lei, não o seguir determinada jurisprudência: non, exemplis sed legbus judicandum est ‘julgue-se em obediências às leis, não às decisões de casos semelhantes’ (sic)”.
Trata-se, na verdade, da aplicação pura do princípio fundamental da separação dos poderes ou da teoria da tripartição dos poderes, defendida por Montesquieu e esculpida no artigo 2º da Constituição Federal de 1988.
Na visão de Carlos Zangrando [11], a jurisprudência não deve ser tratada, erroneamente, como fonte formal e criadora de direito, já que no próprio sistema anglo-saxão, a vinculação do binding precedents, base do sistema do case law, ou precedent system, não possui natureza absoluta.
Por isso, adverte o magistrado Fábio Rodrigues Gomes [12]: “se os juízes resolverem invadir, dia sim, outro também, o espaço de deliberação tipicamente parlamentar (de criação normativa), enfrentaremos sérios problemas institucionais”.
Apesar da invocação de princípios constitucionais importantes pelo TRT Capixaba, como a valorização do trabalho humano, a função social da propriedade e a busca do pleno emprego (artigo 170, III e VIII, da CF/1988), é preciso prudência para se encontrar soluções que, longe de destruírem a economia de mercado, possam canalizá-la e concretizar os princípios constitucionais como um todo, ainda que essa conciliação seja, muitas vezes, dificílima.
Neste particular, perfeita a advertência de Arnaldo Wald [13] de que “ao Direito cabe a difícil função que lhe atribui Carnelutti, ou seja, a função se submeter a economia à ética, sem destruir os mecanismos de mercado”.
Em síntese, a presente contribuição ao debate não pretende, sob qualquer hipótese, se opor à efetivação dos direitos fundamentais das pessoas com deficiência. O que se almeja é evitar o desvirtuamento funcional de um direito subjetivo. A lei, por sua vez, expressa bem a questão ao prever, em sua aplicação, que deve o juiz atender os fins sociais a que ela se dirige e as exigências do bem comum (artigo 5º, Lindb), e que a invocação de fontes supletivas deve se dar “de maneira que nenhum interesse de classe ou particular prevaleça sobre o interesse público (artigo 8º, parte final, CLT)” [14]. Fora destes parâmetros, a utilização exagerada, despropositada ou excessiva de algum direito configura abuso no sentido etimológico da palavra (do latim abusus).
[1] SILVA FILHO, José Carlos Moreira da. Os direitos sociais enquanto direitos fundamentais no ordenamento jurídico brasileiro. Revista Brasileira de Direito Constitucional, nº 7, v. 2, jan.-jun. 2006, p. 26.
Renata Padilha é advogada, pessoa com deficiência, pós-graduada lato sensu em Direito Público e mestre em Direitos e Garantias Fundamentais pela Faculdade de Direito de Vitória (FDV).
José Bispo dos Santos Filho é advogado, pós-graduado lato sensu em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), título de especialista e pós-graduado lato sensu em Gestão de Relação do Trabalho pela Fundação Dom Cabral (FDC).