Pedro Gurek: Caso Americanas e o delito de administração infiel

A fraude bilionária envolvendo operações de risco sacado na Americanas S.A. já não é mais novidade, sobretudo porque, para além dos procedimentos administrativos no âmbito da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), o Ministério Público Federal (MPF) investiga eventual prática do crime de insider trading, enquanto as ditas “inconsistências contábeis” deram ensejo à abertura de Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) própria do caso.

O que se tratava apenas de uma simples reclassificação de linhas, revelou a maior fraude corporativa dos últimos tempos. Tal afirmação encontra amparo no comunicado de Fato Relevante divulgado pela empresa em 13 de junho de 2023, que deu publicidade às conclusões do relatório elaborado pelo comitê de investigação independente sobre a existência de, no mínimo, três tipos de fraudes: (1) em contratos de verba de propaganda cooperada (VPC) e instrumento similares, artificialmente criados para melhorar os resultados da empresa; (2) operações de financiamento de capital de giro sem as devidas aprovações societárias e (3) operações de financiamento de compras (risco sacado, forfait ou confirming).

De fato, não se ignora que se trata de um relatório preliminar, bem como as investigações estão longe de terminar. Todavia, a estimativa apresentada pela própria empresa no processo de recuperação judicial apresenta um rombo de, aproximadamente, R$ 40 bilhões, lesando, assim, pequenos e grandes credores, bem como acionistas minoritários.

A quantia assusta, especialmente por ter passado despercebida por tanto tempo e em várias camadas de supervisão e enforcement, isto é: mecanismos de compliance interno, entidades autorreguladoras (Aniba, B3) e órgãos reguladores (CVM).

Por isso mesmo, é possível afirmar que a fraude exigiu muito mais do que um equívoco de natureza contábil, pois, para que rombo bilionário não fosse identificado ao longo do tempo, é necessária uma ação deliberada por mais de uma pessoa na administração da companhia, em especial os tomadores de decisão — cuja autoria e responsabilidade deverão ser delineadas com o avanço das investigações.

Daí, então, é forçoso reconhecer a dificuldade na atribuição de responsabilidade nos delitos praticados em estruturas empresariais, dada a complexidade organizacional que decorre dos modernos modelos de gestão — os quais, cada vez mais exigem processos colaborativos e tomadas de decisão compartilhada —, impondo obrigações e poderes distintos aos diretores, gestores e controladores.

Em outras palavras, agora, é possível identificar com mais clareza os indícios da fraude e o seu resultado, mas não o(s) repensável(eis). Isso porque, na prática, como o direito penal veda a responsabilização objetiva em razão do cargo/função, a subsunção do fato ao tipo penal e demonstração do seu respectivo elemento subjetivo (dolo ou culpa), não é tarefa simples.

Seja como for, para além de uma possível caracterização do delito de insider trading (artigo 27-D, da Lei n° 6.385/76), observa-se que as condutas delineadas no relatório do comitê de investigação independente, a priori, encontram correspondência típica no artigo 177, §1°, inciso I, do CP (fraude e abusos na fundação ou administração de sociedade por ações).

Ocorre que, em meio a tudo isso, está em andamento a CPI da Americanas, na qual ex-diretores e membros de auditorias estão sendo ouvidos para apresentarem as suas respectivas versões. É nesse contexto que foi proposto o PL 2.091/2023, o qual altera a Lei n° 6.385/76, para tipificar novos crimes cometidos no mercado de capitais e, entre eles, o artigo 27-J, denominado administração infiel, que prevê punição para aquele que prejudicar os interesses de acionistas ou investidores ao não empregar com diligência os deveres impostos por lei.

O projeto apresenta como justificativa a (1) quantidade de pequenos investidores que perderam as suas economias; (2) diversas falhas relacionadas a um dever de cuidado; e (3) a ausência de consunção típica da lei penal aos crimes cometidos na gestão do mercado de capitais.

Aqui, embora se reconheça a pertinência da proposta, ainda assim o texto apresentado merece maior reflexão. Isso porque, atualmente, não há no Brasil uma tipificação da infidelidade patrimonial (ou administração infiel), como ocorre, por exemplo, na Itália (Infidelitá patrimoniale), Portugal (Infidelidade), Espanha (Administración desleal) e Alemanha (Untreue); onde, segundo GRECO (2013, p. 14), grande parte dos escândalos do moderno direito alemão vêm sendo enquadrados (v.g., Mannesnmann/Vodafone).

Isso, por si só, já revela a importância da correta criminalização destas condutas no âmbito do Direito Penal Econômico, pois foi este tipo penal que justificou, por exemplo, tanto a punição dos responsáveis pela crise do subprime (2008) e a quebra do Lehman Brothers, quanto as acusações do FIFAGATE (2015), tendo, assim, grande relevo em atividades econômicas, financeiras e comerciais.

Em suma, trata-se de uma modalidade especialmente grave de agressão interna, ou seja, aquela praticada por quem tutela ou administra patrimônio alheio, excluindo-se, aqui, meras desventuras negociais e insucessos (Leite e Teixeira, 2017, p. 20/22).

No Brasil, até então, ações desta natureza são punidas setorialmente e de maneira fragmentada, pois “fraudes” e “desvios” podem ser punidos sob diversas rubricas; ora exigindo uma inadequada interpretação contra o réu, ora não apreendendo integralmente a estrutura fundamental da administração infiel (Leite e Teixeira, 2017, p. 45).

Não por acaso, Rodrigo de Grandis (2018, p. 25) afirma que existe uma lacuna de punibilidade mais evidente em agressões ao patrimônio alheio no ambiente do Direito Societário que não se inserem no raio de proteção dos tipos penais existentes.

Como já adiantado, até então, no caso da Americanas S.A. o crime que mais se aproxima da ideia de infidelidade é aquele previsto no artigo 177, §1°, inciso I, do CP, mas que apreende, tão somente, sociedades por ações e ignora a malversação do patrimônio em outras estruturas (v.g. sociedades anônimas).

Com efeito, a ideia aqui não é propor a resolução de um problema complexo a partir de um novo tipo penal, mas, observando a voluntas legislatoris, evitar que este seja apenas mais um tipo penal lançado ao vento como resposta a um caso específico.

Por isso mesmo, considerando as intensas discussões envolvendo a criminalidade econômica no Brasil (CPI da Americanas, dos Criptoativos e Fute), todas visando a criação de novos tipos penais, talvez seja o momento de seguir a sugestão de Alaor Leite e Adriano Teixeira (2017, p. 56) e criar definitivamente uma teoria da parte especial do direito penal patrimonial e econômico, descriminalizando e readequando tipos penais existentes a partir de uma concepção geral, seguindo o brocardo do menos é mais.

 


Referências

GRANDIS, Rodrigo de. O delito de infidelidade patrimonial e o direito penal brasileiro. Tese (Doutorado). Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018.

GRECO, Luis (Coord.) Estudos de Direito Penal, Direito Processual Penal e Filosofia do. Direito. São Paulo: Marcial Pons, 2013.

LEITE, Alaor; TEIXEIRA, Adriano. O principal delito econômico da moderna sociedade industrial: observações introdutórias sobre o crime de infidelidade patrimonial. Revista do Instituto Brasileiro de Direito Penal Econômico, n. 1, Org. Luiz Antônio Câmara, Bibiana Fontella, Florianópolis: Empório do Direito, 2017.

SCHÜNEMANN, Bernd. A chamada “crise financeira”: falha sistêmica ou criminalidade globalmente organizada. In: GRECO, Luis (Coord.) Estudos de Direito Penal, Direito Processual Penal e Filosofia do. Direito. São Paulo: Marcial Pons, 2013.

Pedro Gurek é sócio do Sade & Gritz Advogados, ex-assessor do MPPR, especialista em Direito Penal Econômico e pós-graduando em Direito Penal e Criminologia pelo Instituto de Criminologia e Política Criminal (ICPC).

Consultor Júridico

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