Foi objeto de ampla divulgação no mercado a submissão à apreciação do Congresso do Projeto de Lei nº 2.925/2023, que visa a alterar a “Lei nº 6.385, de 7 de dezembro de 1976, e a Lei nº 6.404, de 15 de dezembro de 1976, para dispor sobre a transparência em processos arbitrais e o sistema de tutela privada de direitos de investidores do mercado de valores mobiliários”.
De forma geral, o PL tem por propósito incrementar as ferramentas à disposição da CVM (Comissão de Valores Mobiliários) e dos investidores em geral para fins de responsabilizar e punir administradores de companhias e demais agentes do mercado que possam estar envolvidos em atos ilícitos, que venham a ocasionar danos para investidores ou para o mercado.
Nessa linha, no âmbito do incremento dos poderes de fiscalização e de polícia da autarquia, que funciona como “xerife” do mercado de capitais brasileiro, o Projeto de Lei passa a fixar a possibilidade da CVM “realizar inspeção, na sede social, no estabelecimento, no escritório, na filial ou na sucursal da empresa investigada, de estoques, de objetos, de papéis de qualquer natureza, de livros comerciais, de computadores e de arquivos eletrônicos, e extrair ou requisitar cópias de quaisquer documentos ou dados eletrônicos” [1]. Amplia-se, assim, o rol de medidas passiveis de execução pela própria CVM para apurar a conduta daqueles que estão sob sua regulação, de maneira a, diretamente, levantar informações e dados sobre as irregularidades sob investigação.
De forma ainda mais incisiva, o PL passa a prever, ainda, a prerrogativa de a CVM requerer “ao Poder Judiciário mandado de busca e apreensão de objetos, de papéis de qualquer natureza, de livros comerciais, de computadores e de arquivos magnéticos de empresa ou de pessoa física, no interesse de inquérito ou processo administrativo” [2], assim como “vista e cópia de inquéritos policiais, de ações judiciais de qualquer natureza, de inquéritos e de processos administrativos instaurados por outros entes federativos, observadas pela Comissão de Valores Mobiliários as mesmas restrições de sigilo eventualmente estabelecidas nos procedimentos de origem” [3].
Ademais, tais informações levantadas pela autarquia não mais ficariam restritas ao ambiente fiscalizatório e regulador do mercado de capitais, podendo a CVM “compartilhar com as autoridades monetárias e fiscais o acesso a informações sujeitas a sigilo, observadas pela Comissão de Valores Mobiliários e pelas referidas autoridades as mesmas restrições de sigilo perante terceiros aplicáveis às informações em sua origem”.
Não é necessário maior aprofundamento para se constatar que, a partir de tais medidas, a autarquia passa a ter maiores alternativas e mecanismos para fins de, efetivamente, responsabilizar os agentes de mercado sujeitos à sua fiscalização, dispondo de outros meios para apurar supostas irregularidades em mercado.
Não bastasse a oferta de instrumentos mais eficazes e, por que não, intrusivos para a fiscalização da CVM, a aprimorar e intensificar os meios para a responsabilização administrativa desses agentes econômicos, o PL se preocupa, ainda, em disciplinar, em detalhes, os mecanismos para a responsabilização civil, perante o Poder Judiciário ou em sede arbitral, dos diferentes agentes envolvidos com a administração, controle e gestão das companhias brasileiras.
Com efeito, o PL, em sua redação atual, provoca verdadeira revolução no regime jurídico aplicável para fins de responsabilização civil de acionistas, administradores e acionistas controladores de sociedades anônimas brasileiras, como evidencia, de forma direta, o texto de encaminhamento do PL, por parte do ministro da Fazenda, ao presidente da República [4]:
Submeto à sua apreciação minuta de Projeto de Lei com o objetivo de aperfeiçoar os mecanismos de tutela privada de direitos de acionistas minoritários contra prejuízos causados por atos ilícitos de acionistas controladores e administradores de companhias abertas, visando a conferir maior segurança jurídica para investidores do mercado de capitais.
Nesse sentido, o artigo 2º do PL introduz os artigos 27-G, 27-H e 27-I na Lei do Mercado de Valores Mobiliários brasileiro, disciplinando, de maneira direta, os mecanismos para fins de responsabilização civil dos administradores, acionistas e controladores de emissores de valores mobiliários brasileiros, por danos causados ao mercado ou seus investidores em decorrência de ação ou omissão dos emissores em infração à legislação e à regulamentação do mercado de valores mobiliários.
Nesse sentido, para além das normas que estabelecem os deveres fiduciários dos administradores de companhias (artigos 153 a 157 da Lei das S.A.) e as diretrizes para fins de responsabilização desses agentes (artigos 116, 158, 159 e 246, da Lei das S.A.), com a redação do PL, passariam a existir normas jurídicas a fixar a responsabilidade direta de administradores e acionistas por danos causados a investidores em mercado.
As vítimas de tais danos poderiam, diante da redação proposta no PL, deduzir, em seus nomes ou no interesse de investidores de classe e com características semelhantes, aquilo que o PL denomina “ação civil coletiva de responsabilidade pelos danos decorrentes de infrações à legislação ou à regulamentação do mercado de valores mobiliários”, perante o Poder Judiciário ou em sede arbitral, ofertando-se a ação a mais ampla gama de transparência possível em mercado, via comunicação obrigatória ao mercado. A propositura da ação coletiva, inclusive, não impediria aos demais interessados que propusessem ação de indenização a título individual, desde que não tenham intervindo no processo como litisconsortes.
Nessa demanda coletiva, a condenação carrega efeitos ainda mais intensos na esfera de responsabilidade dos agentes econômicos envolvidos, podendo ser genérica, com o reconhecimento da responsabilidade dos réus pelos danos e o estabelecimento de parâmetros claros e precisos para o cálculo das indenizações individuais, fazendo coisa julgada erga omnes, exceto quanto aos investidores que tiverem optado pela propositura de ações individuais; e determinando a obrigação dos réus de pagar aos autores da ação prêmio (numa acepção não securitária) de vinte por cento sobre o valor da indenização, do qual serão descontados os honorários de sucumbência.
Mesmo que os prejudicados diretos não se movimentem, o PL busca assegurar a eficácia das medidas nele contempladas, prevendo que, “decorrido o prazo de um ano sem habilitação de interessados em número compatível com a gravidade do dano, a liquidação e a execução da sentença poderão ser promovidas pelos autores da ação, pelo Ministério Público ou pela Comissão de Valores Mobiliários, hipótese em que a indenização será revertida para o fundo de que trata o artigo 13 da Lei nº 7.347, de 24 de julho de 1985”.
O PL também prevê a revisão das normas contidas na Lei nº 6.404/76 para a responsabilização de administradores de sociedades anônimas, abrangendo, dessa forma, também as entidades de capital fechado, não emissoras de valores mobiliários ou sujeitas ao teor da Lei nº 6.385/76 e à fiscalização da CVM, tornando ainda mais abrangente o regime de ampla responsabilidade tratado aqui.
Amplia-se, por exemplo, o rol de legitimados a propor ação social, caso a assembleia geral da companhia delibere não promover a ação, sendo certo que o administrador, uma vez condenado, além de reparar o dano e arcar com as custas e as despesas do processo, também pagará prêmio de vinte por cento ao autor da ação, calculado sobre o valor total da indenização devida, do qual serão descontados os honorários de sucumbência.
Propõe-se, ainda, a reforma do artigo 246 da Lei das S.A., estabelecendo-se regras mais rígidas para a responsabilização civil do acionista controlador por danos causados à companhia por atos praticados com infração ao disposto nos artigo 116 e artigo 117 da Lei das S.A., estabelecendo a legitimidade mais ampla de acionistas minoritários para a propositura, de forma direta, desta medida. Nesse caso, também, o acionista controlador, uma vez condenado, além de reparar o dano e arcar com as custas e as despesas do processo, deverá pagar prêmio nos termos mencionados.
Percebe-se a intenção do legislador de, ao propor as diretrizes previstas no PL, enrijecer, de forma significativa, o regime de responsabilidade civil de administradores e controladores no direito societário brasileiro [5]. Nesse contexto, surge a seguinte indagação: como ficarão as apólices de seguro D&O em vigor quando da eventual edição dessa reforma legislativa? As seguradoras estão preparadas para remodelar o produto, com vistas a adequá-lo, sob a perspectiva atuarial, financeira e jurídica, à nova leva de medidas e de responsabilidades a serem criadas para os segurados desse relevante produto?
Ao que parece, o PL em questão pretende trazer ao nosso ordenamento jurídico figura bem próxima às conhecidas class actions dos Estados Unidos que, como se sabe, potencializam de maneira enorme os riscos financeiros que pesam sobre o patrimônio pessoal dos administradores.
Como consequência disto, é comum observar nos clausulados D&O brasileiros exclusão expressa para essas class actions, originadas nos Estados Unidos e Canadá, considerando as diferenças entre os sistemas de responsabilidade dos administradores (os seus pressupostos) e, adicionalmente, o quanto, pecuniariamente, esse risco representa.
Não há dúvida, assim, de que o regime de responsabilidade de administradores tende a enrijecer-se ainda mais, caso o PL venha a converter-se em lei. Caberá ao mercado segurador analisar as suas consequências de maneira bem próxima.
Ilan Goldberg é sócio fundador de Chalfin, Goldberg & Vainboim Advogados Associados, advogado, parecerista, doutor em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), mestre em Regulação e Concorrência pela Universidade Cândido Mendes (Ucam), pós-graduado em Direito Empresarial LLM pelo Ibmec, professor na FGV Direito Rio, FGV Conhecimento, Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (Emerj) e na Escola de Negócios e Seguros (ENS-Funenseg) e membro dos Conselhos Editoriais da Revista de Direito Civil Contemporâneo (RDCC) e da Revista Jurídica da CNSeg.
Claudio Miranda é advogado e sócio do escritório Chalfin, Goldberg, Vainboim.