O populismo é uma realidade do mundo contemporâneo e, ao longo de mais de um século, ceifou milhares de vidas, de acordo com a avaliação do advogado-geral da União, Jorge Messias, feita nesta segunda-feira (26/6), durante painel do XI Fórum Jurídico de Lisboa.
Messias ponderou que, nas últimas décadas, o termo populismo ganhou um sentido pejorativo e foi empregado de forma reduzida na classificação de políticas alegadamente irresponsáveis e insustentáveis. Ele lembrou o Consenso de Washington, o conjunto de recomendações econômicas para a contenção da crise da década de 80, que visava a propalar a conduta econômica neoliberal em países subdesenvolvidos, especialmente os da América Latina.
“Ele mirava, então, nos subsídios de tarifas públicas, gastos estatais elevados, protecionismo e controles de fronteira. De acordo com economistas liberais, tais intervenções governamentais seriam corrigidas, no entanto, pelos agentes econômicos, que acabariam por impor as políticas sustentáveis de livre-mercado. Se até mesmo a libra esterlina havia sucumbido à especulação financeira, não havia mesmo alternativa: o Estado deveria recolher-se da cena econômica e social.”
A liberalização irrestrita, porém, não cumpriu suas promessas. As reduções dos impostos sobre renda e propriedade, lembrou Messias, apenas aumentaram a desigualdade, tendo pouco impactado o crescimento econômico. E a abertura financeira trouxe instabilidades sucessivas.
“Essa era econômica parece ter entrado em colapso em setembro de 2008, junto com o sistema financeiro global. Os bancos eram grandes demais para falir; os partidos políticos, nem tanto. Observou-se, então, a transformação radical dos sistemas políticos, com o fortalecimento ou emergência de novos líderes e partidos populistas ao redor do mundo.”
Messias destacou que líderes populistas costumam ter pouco apreço pelo papel das oposições. “Minorias e setores com capacidade de organização própria são por vezes tratados pela propaganda populista como verdadeiros inimigos a serem eliminados. As bases populistas estão quase sempre prontas para disciplinar, quando não atacar violentamente, as massas rebeldes e etnias minoritárias.”
Democracia em xeque
O painel foi mediado pelo presidente do Tribunal de Contas da União, Bruno Dantas. Ao abrir a discussão, ele lembrou que o Brasil viveu uma experiência de tensionamento da democracia ao longo do governo de Jair Bolsonaro, mas ressaltou que esse é um problema de muitos países.
“Países democráticos podem combater e resistir a intentadas populistas criando uma cultura de instituições fortes. Foram instituições fortes que permitiram às democracias americana, inglesa e brasileira resistir.”
Dantas fez um alerta sobre o populismo fiscal, uma política que identificou já como presidente da corte de contas: “É uma estratégia política que busca obter apoio popular por meio da implementação de medidas econômicas irresponsáveis e insustentáveis, sem considerar devidamente as consequências de longo prazo, como o aumento da dívida pública e a instabilidade econômica”.
Demais participantes
Professor catedrático da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Carlos Blanco de Morais lembrou que o populismo é um fenômeno de massas que pode comportar qualquer ideologia. “Acredito que devem ser escrutinados movimentos dessa natureza, à direita ou à esquerda, que apelam a violência, insurreição, a destruição e ocupação de terras de propriedade pública e privada, a violação da liberdade alheia, a contestação de resultados eleitorais sem a apresentação de qualquer fundamento.”
Membro do Academic Senate da Università degli Studi di Milano, a professora Lorenza Violini afirmou que o populismo e o constitucionalismo são filhos distintos de uma mesma mãe. “Tanto o populismo quanto o constitucionalismo se baseiam em um profundo sentimento de desconfiança do poder, o que determina a necessidade de impor limites para neutralizar os riscos que o exercício deles implicam à sociedade.”
Segundo a professora, líderes populistas se esforçam para apresentarem-se de uma forma compatível com a linguagem clássica do constitucionalismo, mas, ao mesmo tempo, reinterpretam as características conceituais e criam outras similares.
Doutor em História Moderna e Contemporânea pelo Centro de Estudos Internacionais do Instituto Universitário de Lisboa, Riccardo Marchi acredita que é necessário deixar clara a diferenciação entre o populismo e o fascismo, que comumente, segundo ele, têm sido misturados em conceitos. Ele explicou que, no populismo, o povo vive em comunidade homogênea virtuosa, enquanto no fascismo há uma massa moldada em nação pela elite. Segundo Marchi, o conceito de nação no populismo está ligado à identidade desse povo, e, no fascismo, a nação é uma comunidade de destino espiritual. O Estado, no populismo, é um órgão administrado e burocrático que deve ser controlado pelo povo, enquanto no fascismo trata-se de uma arquitetura política que se sobrepõe ao povo.
“A democracia para os populistas é um regime ideal, não na vertente representativa. Para fascistas, ela é um regime criticável. É antidemocrático por definição o fascista. Populismo e fascismo são dois fenômenos e desafios diferentes à democracia contemporânea.”
Procuradora federal da Advocacia-Geral da União, Tarsila Ribeiro Marques Fernandes explicou os conceitos de democracias defensiva e militante. Segundo ela, a defensiva, que é uma evolução da militante, possui viés menos político.
Citando o pesquisador alemão Karl Loewenstein, ela disse que “instituições democráticas precisam ter instrumentos, ainda que aparentemente antidemocráticos, para defender a democracia”.
O evento
Esta edição do Fórum Jurídico de Lisboa tem como mote principal “Governança e Constitucionalismo Digital”. O evento é organizado pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), pelo Instituto de Ciências Jurídico-Políticas da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (ICJP) e pelo Centro de Inovação, Administração e Pesquisa do Judiciário da FGV Conhecimento (CIAPJ/FGV)
Ao longo de três dias, a programação conta com 12 painéis e 22 mesas de discussão sobre temas da maior relevância para os estudos atuais do Direito — entre eles debates sobre mudanças climáticas, desafios da inteligência artificial, eficácia da recuperação judicial no Brasil e meios alternativos de resolução de conflitos.
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