O ato normativo do Conselho Nacional de Justiça que instituiu o revezamento com base em gênero nas promoções por merecimento nas cortes de segunda instância, aprovado na última terça-feira (28/9), veio para corrigir injustiças históricas e pode ter caráter pedagógico para outras carreiras e também para o exercício da própria magistratura. No entanto, apesar das boas intenções, é possível interpretar a norma como inconstitucional, por extrapolar as atribuições previstas na Carta Magna.
A desembargadora aposentada do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) Kenarik Boujikian é das mais enfáticas ao afirmar que o CNJ deu um passo importante para dar efetividade ao princípio constitucional da igualdade, enfrentando a questão estrutural do preconceito contra as mulheres.
“Espera-se que todos os tribunais e magistrados possam compreender que as questões que têm como cerne o patriarcado refletem no cotidiano das juízas”, disse ela. A magistrada aposentada lembra que, em um passado não tão distante, os concursos da magistratura no TJ-SP tinham as provas identificadas, o que fez com que muitas mulheres sequer tenham conseguido ingressar na carreira.
A professora Fabiana Severi, da USP de Ribeirão Preto, pesquisadora de questões de gênero no Judiciário, considera que o primeiro impacto da nova regra é ter inserido o conceito de paridade no debate jurídico, no que pode ser o primeiro passo para a ampliação da discussão para outras carreiras públicas.
Em segundo lugar, Severi aponta o caráter pedagógico da mudança na forma como as próprias magistradas podem passar a ver as questões estruturais de discriminação de gênero durante o exercício da profissão. Ela narra que, ao longo de suas pesquisas acadêmicas, bem como nas de outras colegas com as quais mantém contato, um aspecto sempre presente foi o de as próprias juízas entrevistadas não reconhecerem situações de discriminação.
“Nossos estudos tentam explicar esse não reconhecimento das discriminações. Até porque elas não são propriamente legais: não é a norma que determina que juízes e juízas terão tratamento diferente na carreira. O argumento principal é de que as regras são neutras, mas quando são aplicadas acabam funcionando de modo a privilegiar os homens em detrimento das mulheres. É uma discriminação indireta — pelos efeitos da norma, e não pelo texto.”
Exatamente esse foi o ponto destacado por Daniel Sarmento, cujo parecer pro bono ajudou a embasar o debate a respeito do ato normativo no CNJ. “Acho que foi uma decisão fundamental, que promoveu a igualdade de gênero no Judiciário, buscando combater a discriminação indireta — aquela que não é explicítica ou proposital — contra as mulheres na carreira da magistratura. Além de promover os direitos das juízas, a medida tornará os tribunais mais plurais, e por isso mais democráticos.”
Fabiana Severi diz que o próprio processo de construção da norma já foi um passo nessa direção, ao proporcionar um momento de epifania para várias das magistradas envolvidas, que ela chamou de “letramento”: “Uma espécie de ampliação do reconhecimento dessas sutis discriminações que perpassam a carreira da magistratura, e isso é um ganho muito grande.”
Kenarik acredita que essa sensibilização deve afetar inclusive os colegas homens daqui para a frente. “Imprescindível que todos os magistrados compreendam a imperiosidade de julgar com os olhos voltados para o gênero, como fez o STF, ao tratar das mulheres encarceradas e conceder HC coletivo. Esse precisa ser um exercício diário.”
Taís Ferracini, presidente da Associação dos Juízes Federais de São Paulo e Mato Grosso do Sul (Ajufesp) e juíza da 14ª Turma Recursal da Justiça Federal de São Paulo, ressalta que essa conscientização e a inclusão de grupos considerados minoritários são tarefas complexas. “Promover a inclusão de grupos historicamente excluídos de espaços de poder é uma tarefa complexa e que requer múltiplas estratégias. A resolução recém-aprovada pelo CNJ é uma dessas estratégias. É importante deixar muito claro que essa pluralidade de visões trazida pela diversidade é um elemento de legitimidade do Poder Judiciário e traz também maior representatividade da sociedade nos órgãos julgadores.”
Boas intenções
A defesa da constitucionalidade do ato normativo do CNJ baseia-se na aplicação do princípio da isonomia, previsto no artigo 5º da Constituição. No entanto, apesar de ser uma iniciativa louvável para a correção de desigualdades históricas, a norma pode ter incorrido na ofensa a outros princípios constitucionais, como o que prevê os critérios de promoção da magistratura e o que delimita as atribuições do próprio CNJ.
A constitucionalista Vera Chemim explica que o artigo 93 da Carta Magna, nos incisos II, alíneas “a”, “b”, “c”, “d” e “e”, III e IV, expressa claramente os critérios para a promoção da magistratura. “Conforme se pode constatar, eles remetem à antiguidade e merecimento de forma alternada, além da exigência de tempo de magistratura no que se refere ao merecimento da promoção.”
Abaixo da CF, as normas se restringem ao que está delimitado: a Lei da Magistratura Nacional (LC 35/1979) disciplina em seus artigos 80 a 83 a aplicação dos critérios de antiguidade e merecimento, em consonância com a Constituição. A Resolução 106/2010 do CNJ, que foi alterada agora, também aborda os mesmos critérios, e também se limita a seguir os parâmetros expressos na Carta Magna.
Além disso, o parágrafo 4º do artigo 103-B da Constituição prevê expressamente as competências do Conselho Nacional de Justiça do ponto de vista administrativo e de pessoal, “não alcançando, todavia, a iniciativa de criar um critério de promoção da magistratura”, segundo a constitucionalista.
“É preciso que fique bem claro que a intenção de alternância de gênero como critério de promoção de magistrados é louvável do ponto de vista do mérito, uma vez que satisfaz o princípio da isonomia, proporcionando a igualdade entre gêneros no âmbito da magistratura”, ressalva ela.
No entanto, a função de “legislar” sobre o tema é da competência do Poder Legislativo. Para a especialista, a demanda deveria ter sido requisitada ao Congresso para que tomasse as providências necessárias pela via do projeto de emenda à Constituição (PEC).
A mesma avaliação tem o desembargador federal aposentado e professor da UFPE Francisco de Queiroz Cavalcanti, que, em artigo publicado pela revista eletrônica Consultos Juídico, destaca que a alteração trazida pelo CNJ não adensa as normas já existentes, mas as modifica. “Admitir tal possibilidade seria desconstruir toda a estrutura normativa existente no Brasil. Seria aceitar a produção de normas jurídicas primárias por ‘orgãos não legislativos’.”