Há aproximadamente um ano, escrevi aqui nesta ConJur sobre a novidade trazida pelo constituinte por meio da Emenda Constitucional (EC) nº 125/22, por meio da qual instituiu o requisito da “relevância” para a admissão de recursos especiais.
No texto, denominado “Emenda da relevância demandará profunda mudança de cultura no litígio”, nos limitamos a dissertar sobre os pontos positivos da alteração promovida no texto constitucional, destacando que as benesses pretendidas pelo constituinte por meio de tal emenda apenas seriam vistas na prática caso se observasse uma maior responsabilidade por parte dos Tribunais locais na análise de mérito das causas.
Alguns dias antes, esta ConJur também publicou texto do sempre irrepreensível Lenio Streck sobre a EC nº 125/22, oportunidade na qual o professor sinalizou alguns pontos de preocupação acerca da mudança pretendida pelo constituinte, dentre elas o requisito de que a causa deve ultrapassar o valor de 500 salários mínimos para ser considerada relevante [1].
Desde então, muito pouco se falou na chamada emenda da relevância, especialmente após o STJ aprovar o Enunciado Administrativo nº 8 com a seguinte redação: “A indicação, no recurso especial, dos fundamentos de relevância da questão de direito federal infraconstitucional somente será exigida em recursos interpostos contra acórdãos publicados após a data de entrada em vigor da lei regulamentadora prevista no artigo 105, parágrafo 2º, da Constituição Federal”.
Até então, o que se via eram manifestações confusas nas petições de recursos especiais sobre o requisito da relevância, especialmente porque muitos acreditaram que, em razão do termo “relevância”, deveriam demonstrar o interesse social, jurídico ou financeiro da lide — tal como ocorre na “repercussão geral” —, quando, na verdade, o texto constitucional em nenhum momento exigiu tal demonstração ou equiparou o filtro da relevância ao da repercussão geral. Em verdade, o artigo 105, §3º, da Constituição, incluído pela EC nº 125/22, é taxativo sobre o que o constituinte considerou ser relevante ou não.
Apesar da emenda em comento estar seguindo, por ora, o roteiro cultural brasileiro das “leis que não pegam”, fato é que ainda existirá amplo espaço para discussão da matéria até que seja a EC nº 125/22 enfim regulamentada por lei, que é o que propomos no presente texto. Para tanto, tomaremos como ponto de partida a crítica iniciada por Streck no texto mencionado anteriormente, acerca do critério “valor” como indicativo de relevância.
Primeiramente, é importante dizer que é absolutamente pertinente a lembrança do professor Lenio sobre o objetivo institucional do STJ como “Tribunal da Cidadania” e como tal papel estaria sendo relegado caso apenas causas com valor superior a 500 salários-mínimos (isto é, R$ 651 mil até abril de 2023) sejam julgados pela Corte.
Em um país em que, de acordo com estudos realizados pelo IBGE, cerca de 70% dos trabalhadores de carteira assinada ganham no máximo dois salários mínimos, o filtro da relevância para causas que superem o valor de 500 salários-mínimos mostra-se bastante excludente, privilegiando apenas uma pequena parcela da população e retirando por completo a nobre alcunha de Tribunal da Cidadania conquistada pelo STJ.
Não é preciso muito para se concluir que há graves problemas no critério, especialmente quando analisado sob o ponto de vista de princípios fundamentais do direito, como isonomia e acesso à justiça.
Mas não é apenas por esse ponto que peca o constituinte ao eleger o critério de valor econômico como requisito de admissibilidade do recurso especial.
É que a prática com o “semelhante” (e aqui usamos aspas pois, como mencionado anteriormente, até agora tal identidade não se justificou) requisito da “repercussão geral”, necessário à admissão dos recursos extraordinários, mostra que o valor da causa é absolutamente irrelevante para “separar o joio do trigo”, que parece ser o objetivo do constituinte com a EC nº 125/22.
Veja-se, por exemplo, o Tema nº 891 das repercussões gerais, no qual o STF firmou entendimento de que “É inconstitucional o artigo 1º da Lei 9.960/2000, que instituiu a Taxa de Serviços Administrativos – TSA, por não definir de forma específica o fato gerador da exação”. O julgamento ocorreu a partir de ação declaratória ajuizada em 2013, com valor da causa de “apenas” R$ 9.956,23, o que, à época, representava aproximadamente 15 salários-mínimos.
Igualmente, cite-se o Tema nº 1.140 das repercussões gerais, oportunidade na qual a Corte Suprema analisou relevante questão sobre a extensão da regra de imunidade tributária de concessionárias privadas de serviços públicos. Na origem, a lide teve início com o ajuizamento de execução fiscal pelo município de São Paulo em 2019, no valor de R$ 5.509,18. Isto é, pouco mais do que cinco salários-mínimos.
Poderíamos citar ainda diversos precedentes julgados pelo STF sob a sistemática das repercussões gerais que não passariam pelo filtro de relevância do STJ, porém acreditamos que os exemplos acima já são suficientes para ilustrar o que queremos concluir: o valor da causa não define a sua relevância, especialmente em tribunais que possuem a função de pacificação/unificação da jurisprudência nacional.
Com isso, por mais que a emenda constitucional já tenha sido publicada e a alteração do seu texto não seja indicada por se tratar de trâmite politicamente muito custoso ao Congresso, fato é que ainda há tempo para que o legislador ordinário tente remediar a questão ao regulamentá-la.
Como? Em nossa opinião, de modo a “aproveitar” o que já está posto na EC nº 125/22 e na tentativa de harmonizar a questão do “valor econômico” com a defesa da cidadania própria ao STJ, poderia o legislador definir que os 500 salários-mínimos não se referem especificamente à causa em julgamento, mas sim à sua relevância econômica em âmbito nacional. Ou seja, cumpriria à parte demonstrar a já conhecida “transcendência” da causa dos interesses individuais das partes, havendo um valor muito maior envolvido, já que a questão de direito em julgamento poderá afetar outras causas.
Do contrário, o que se observará na prática será o STJ se tornando um Tribunal engessado, excludente e que poderá perder oportunidades importantes de pacificar a jurisprudência nacional, apenas porque o recurso especial em análise esbarrou em aspecto formal que em nada se comunica com a sociedade brasileira como um todo.