Aos poucos, a população e os governantes vão compreendendo um pouco mais do poder e risco da ausência de regulação das big techs. No ano passado, por exemplo, o TSE (Tribunal Superior Eleitoral) se viu estrangulado pela dificuldade de remoção de conteúdo e pela falta de colaboração das empresas.
Meta e Google tornaram-se o Leviatã de Hobbes, um estado paralelo. Instituições privadas — e, por assim serem, a elas não é reservada plena liberdade de agir — que ditam o que pode ou não circular na web. Há tempos que tem sido assim. Educam, fazem lobby e esperneiam quando o Estado — legítimo a regular — tenta impor algumas regras.
O Projeto de Lei (PL) 2.630/20 — conhecido como o PL das Fake News — possui defeitos e é necessário discuti-los com mais calma, sem dúvidas. Entretanto, da campanha iniciada pela Google, com publicações direcionadas, impulsionamento orgânico fraudulento e publicidades obscuras, não podemos passar a tê-los como os paladinos da liberdade de expressão.
Quem faz busca no Google hoje perceberá que incluíram um link para seu posicionamento sobre o PL das Fake News, com chamadas bem alarmistas, gerando o medo na população de que a “internet não será a mesma”. Esse poder das big techs podemos discutir em outro momento e, para isso, sugiro a leitura da obra de Shoshana Zuboff, A Era do Capitalismo de Vigilância.
A Google, sobretudo, revolta-se contra o PL 2.630, resumidamente, porque ele retira dela a liberdade de remover o que bem entender sem dar satisfação a ninguém e a obriga a remunerar por conteúdo de direito autoral. Quanto a essa segunda parte, reconheço, é legítima a queixa, até pelo fato de muitos produtores de conteúdo se valerem das ferramentas para serem conhecidos. Os jornais, igualmente, aprenderam a monetizar e usar as redes para atrair clientes leitores.
Diz a nota da Google que “a criação de uma legislação de internet com o potencial de impactar a vida de milhões de brasileiros e empresas todos os dias precisa ser feita de uma maneira colaborativa e construtiva. (…) Na prática, como resultado do PL 2630, as plataformas ficariam impedidas de remover conteúdo jornalístico com afirmações falsas como ‘A vacina de Covid-19 irá modificar o DNA dos seres humanos’, ou seja, continuariam disponíveis na busca do Google e no YouTube, gerando ainda mais desinformação”.
Concordo. A internet tem essa característica maravilhosa de construção conjunta, descentralizada. Todavia, embora a passagem seja apelativa — no sentido pretendido pela Google — as plataformas nunca foram impedidas de remover conteúdo, contas ou perfis em redes sociais que bem entendessem, sem qualquer critério claro, transparente. Aliás, nos últimos anos, diversas contas — muitas sequer envolvidas em pleito eleitoral — foram removidas sem que ao titular fosse garantido o direito de saber qual a conduta que violou. Às vezes, um post desavisado, denunciado, torna-se motivo para o algoritmo remover uma conta inteira. Isso gera prejuízos não só à liberdade de expressão, mas também econômicos, dado que muitos auferem sua subsistência a partir ou incentivada pelas redes sociais.
O PL fala em transparência e prevê que as redes precisarão garantir a defesa e informar ao usuário as razões da remoção. Nada demais. Está na Constituição, no Código de Defesa do Consumidor, no Marco Civil da Internet e na Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais: dever de transparência.
Outros aspectos do PL são preocupantes. A entidade de supervisão, precisamente apelidada de Ministério da Verdade, era algo extremamente preocupante e antidemocrático. Era, porque há notícia de que foi removida do texto que será submetido à aprovação. Amém!
Ademais, estender imunidade parlamentar, impedindo que esses tenham suas contas ou conteúdos removidos, ainda que ilícitos, parece-me arriscado e, de fato, poderá contribuir para a disseminação da desinformação.
Entretanto, é hora de uma legislação que exija mais transparência das big techs. Poderia resumir-se a isso e, assim, haveria mecanismos melhores para poder fiscalizar remoção abusiva ou conivência com conteúdo ilícito.
Rafael Maciel é advogado, especialista em Direito Digital e Proteção de Dados Pessoais, Autor do livro Manual Prático sobre a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais e professor e também membro da International Association of Privacy Professionals (Iapp).